33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 241
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- Capítulo 241 - Sexagésima Sexta Página do Diário
Sexagésima Sexta Página do Diário
Fugir quando se está cansado é uma das piores coisas que já fiz. Se contabilizar o desgaste espiritual e os ferimentos que começavam a sangrar de vez em quando, me obrigando a fechá-los com o Rancor, que logo se desfazia, eu estava para cair de cara no chão e deixar minha alma encontrar a plenitude do universo.
Mas não. Eu tinha acabado de presenciar uma declaração formal de guerra, precisava chegar à Montanha Solitária o quanto antes. O problema era que estávamos contornando a fronteira dos reinos do Sul e de Prata por dentro do território do primeiro, o que atrasava tudo ainda mais.
Pernoitamos em uma fazenda, sem sermos percebidos pelos donos, era questão de segurança para nós e eles. Não consegui dormir devido a adrenalina que ainda percorria meu corpo, já Haroldo parecia estar tão acostumado a uma vida agitada, que pegou no sono e só acordou no outro dia.
Roubamos alguns ovos do galinheiro e comemos eles crus, depois seguimos sempre em direção ao Leste. Não demorou muito para que chegássemos na fronteira, onde encontramos um grupo de comerciantes que costumava fazer a rota do Reino do norte ao Reino do Sul passando por Parva, de alguma forma, Haroldo conhecia alguns deles e ganhamos roupas melhores e limpas.
Eles também nos deram comida que não estava crua e uma carona até um vilarejo próximo. Mesmo indo na direção contrária, foi o melhor que poderia ter acontecido.
Ao chegar no vilarejo, que meu pai também parecia conhecer todo mundo, fomos para uma estalagem e aguardamos até que alguém nos procurou. Já era noite, passou mais de um dia desde que fugimos deixando Leonardo e os corpos dos soldados do Sul com os inimigos do Reino de Prata. Enfim o sono estava me convencendo a fechar os olhos e relaxar, quando alguém chegou e me cumprimentou.
— Olá, senhor Deco! — disse um jovem esguio, com início de calvície — É um prazer conhecê-lo!
Normalmente as pessoas que sabiam meu nome eram próximos a mim ou queriam me matar, torci que fosse algum aliado.
— Meu nome é Pre-Ah, sou um dos Ratos que trabalham para Adênia sob suas ordens, senhor. — Ele continuou — Fomos avisados que o senhor e seu pai estavam por essa região, e estamos ansiosos por ajudá-los.
Sinceramente, era estranho ser chamado de senhor por alguém que, claramente, era mais velho do que eu. Mesmo assim, a sensação de poder que a palavra “ senhor” passava era demais para eu recusar a formalidade.
Pre-Ah conseguiu alojamento, comida e um transporte para meu pai e eu. Após uma noite de sono leve, me acordando com qualquer mínimo barulho, pegamos um coche, mais confortável que a carroça habitual das minhas viagens, e seguimos rumo à Montanha Solitária.
Somente depois que cruzamos a fronteira do Sul com o Leste, o ar foi se tornando mais quente e úmido, as paisagens desérticas foram substituídas por planícies cobertas por culturas agrícolas e animais pastando e as vilas simples e bucólicas, é que consegui relaxar de verdade e dormir.
Como sempre, tive pesadelos horríveis com os gritos daqueles que morreram por minha causa, sejam minhas vítimas ou os que eu não pude salvar. Não dava para dormir bem vendo o rosto de cada um que vi morrer na minha frente nos últimos anos, e não eram poucos.
Umas quatro horas de sono foram o suficiente para meu corpo ter o descanso de recuperação e minha mente voltar ao estado de alerta permanente que eu me mantinha. Ainda havia uma longa estrada pela frente, e mais uma vez o sol estava se pondo.
Pernoitamos em uma cidadezinha a meio caminho da Montanha Solitária, e mesmo não sendo o meu lar, eu sabia que estava no Leste, e me permiti aproveitar o momento. Comi e bebi o suficiente, nem muito que me deixasse lento, nem pouco que fosse insuficiente.
Na guerra, era comum que os soldados se alimentassem do mínimo para sobreviverem, devido às dificuldades de logística. Eu queria estar nutrido para o início dessa guerra, já que não tinha ideia de qual seria a sua duração.
O nome da cidade que passamos aquela noite era Timboz, um nome que vinha do pequeno rio que cortava a cidade ao meio e era fonte de água para a população, pescadores e agricultores que irrigavam as suas plantações.
Timboz era uma cidade pequena, com pessoas simples e alegres, me fez desejar uma vida tranquila. Naquela noite, vendo as famílias na praça, as crianças correndo, todos em uma paz de espírito, senti vontade de viver no campo, criar galinhas e ter uma rede atada debaixo de uma árvore.
Não sei porque pensei nisso, mas senti que seria uma vida perfeita.
Depois de tantos anos lutando e sem saber o que eu queria para o futuro, finalmente decidi que a minha vida perfeita seria estar em um lugar tranquilo com as pessoas que mais amo.
Primeiro eu tinha que acabar com uma guerra que acabei de ajudar a começar.
Estávamos jantando numa taverna, eu me sentei de forma a comer assistindo as pessoas lá fora, igual a “Caverna de Platão”. Como se tudo que eu conhecesse sobre a felicidade real fosse as sombras na parede.
E como desgraça pouca nós chamamos de final de semana, nosso contato com os ratos trouxe notícias de que Parva, a cidade que Adênia e meus outros irmãos estavam cuidando, havia sido atacada dois dias antes, coincidindo com o meu encontro com as tropas do Reino de Prata.
Segundo as informações mais recentes que ele tinha, a cidade não tinha caído, e Adênia estava bem. Foram muitas as baixas em ambos os lados, então consideraram um empate. Mas eu entendia como uma vitória inimiga, já que tinham matado pessoas que se alistaram inspiradas em mim.
Enquanto eu estava lutando na fronteira com o Sul, atacaram a fronteira com o Leste. Sem contar que Zang-Nee, um dos líderes do Sul, estava morto, deixando nossos aliados com menos poder de defesa.
— Eles são lunáticos? — pensei em voz alta.
— Uma dupla declaração de guerra, — meu pai explicou — eles devem saber ou supor que há uma aliança entre o Leste e o Sul. Apesar de ser apenas um pacto de não-agressão, já é o suficiente para os prateados ficarem irritados.
O nosso informante só se apresentou, deu a má notícia e foi embora.
— Porque eles desejam tanto essa guerra? — reclamei.
— Muitos motivos, e cada um tem o seu. — Haroldo falou com calma — O rei desejava expandir os territórios e aumentar sua influência, mas eu matei ele. Agora, Flek, o príncipe herdeiro deseja conquistar os reinos vizinhos para “honrar o pai”…
— Pura baboseira! — reclamei de novo.
— Só que os nobres vêem nessa baboseira uma oportunidade de lucrar, obter novas terras e escravos, aumentar suas influências sobre os cidadãos…
— Ou seja, só quem sai perdendo são os pobres e civis?
— Eu diria que quem mais tem a perder são os soldados, que morrem em batalha ou carregam traumas mentais para o resto da vida. — Nessa parte ele me deu uma olhada forte — Eu sei que você carrega muita dor do que teve que passar até hoje.
— Não quero falar disso…
— É normal, homens seguram seus traumas e seguem em frente para proteger o sorriso de quem amam. Se eu fosse desistir na primeira vez que tive pesadelos, teria cometido suicidio há quatro séculos.
— Minha única preocupação é o futuro, o passado não pode ser mudado. — Olhei mais uma vez para o lado de fora da taverna onde jantávamos.
Meu pai percebeu que eu invejava a felicidade daquelas pessoas.
— André, não se preocupe, — Ele disse — quando tudo isso acabar, nós poderemos ter uma vida feliz igual a deles.