33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 244
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- Capítulo 244 - Sexagésima Nona Página do Diário
Sexagésima Nona Página do Diário
Era mais de meio dia quando chegamos a uma vila pequena isolada. As casas, ou melhor, casebres, eram feitos de barro e cobertos com palha, não havia ruas, as casas foram feitas em uma disposição aleatória, e animais andavam livremente pelos quintais.
Não tinha muro, cerca ou jardins, de vez em quando podia ser visto uma ou outra horta suspensa ou uma vaca amarrada, mas a maioria das coisas e animais estava livre pelo ambiente. As crianças também pareciam bem livres, como se não soubessem que uma guerra acontecia ali ao lado.
As pessoas que viviam ali pareciam ser bem simples, muito pobres, inclusive. Era bem diferente da visão de Reino de Prata que eu conhecia, lá na capital. Como era o horário do almoço, alguns camponeses estavam voltando de suas roças, carregando enxadas e foices nos ombros, e pingando suor devido ao cansaço.
Pelas peles queimadas, era fácil concluir que a rotina camponesa daquelas pessoas era a base da manutenção familiar e da, certamente pouca, economia da vila. Alguns olhos cansados encararam a mim e minhas irmãs, mas nada mais que isso. Eles queriam apenas chegar em suas casas e se alimentar, não muito diferente de nós três.
— Essa vila é pobre, precisa de ajuda, mas o reino está mais preocupado em fornecer alimentos para soldados em uma guerra desnecessária… — Shiduu balbuciou.
— Existem pessoas que, por estarem no poder, acham que todos têm uma vida boa e feliz. — respondi — Ou ainda, que acham que temos a obrigação de servir a eles apenas por termos menos oportunidades na vida.
— Você ainda guarda mágoas?
— Muitas!
— Odeias essas pessoas aqui por serem do Reino de Prata?
Pela primeira vez eu parei para pensar naquilo. Passei tanto tempo odiando e tendo preconceito com as pessoas do Reino de Prata, mas nem todos eram filhos da puta como o pessoal da capital, na verdade, a maioria dos merecia meu ódio também exploravam as pessoas mais pobres do próprio reino.
Meu ódio era causado por uma meia dúzia de babacas que se diziam nobres, mas acabou respingando em pessoas inocentes, que apenas compartilhavam uma terra natal com os verdadeiros vilões da minha história.
E se pensasse bem, eu tinha pessoas bem próximas a mim e que eu confiava muito, que eram do Reino de Prata. Não podia esquecer que foi no pior lugar que encontrei as melhores pessoas, os Ratos, que me acolheram e me ensinaram a sobreviver em um das piores cidades desse mundo para crianças órfãs.
Aquelas eram pessoas pobres, independente de suas nacionalidades. Podiam até ter sofrido algum tipo de lavagem cerebral para odiar o Leste, mas não tirava o fato de que eram exploradas e lutavam diariamente pela sobrevivência de suas famílias.
Uma vila como aquela era um bom lugar para usar como ponto de apoio na missão. Ficava fora da rota principal, em segurança contra a guerra, e ao mesmo tempo era perto da fronteira para o caso de uma fuga desesperada.
Todas as opções mostravam que aquele era um bom lugar para começarmos.
Tive uma ideia de como conseguir informações e a confiança dos moradores do lugar. Pedi para Shiduu ficar esperando à distância enquanto fui com Surii no que parecia ser o mercado local, que não passava de uma casa de madeira com férias coisas penduradas em uma janela larga.
Como seria burrice nos infiltrar no território inimigo com dinheiro do Leste, andávamos com algumas moedas de bronze do Reino de Prata para o caso precisar comprar algo. Levei três comigo e deixei o resto com Shiduu.
Colocando uma das moedas em cima do balcão, olhei para o velho barbudo que me encarava, sentado. Não falei nada, apenas apontei para um pedaço de carne seca pendurado, rodeado de moscas que o desejavam, mas não conseguiam pousar devido a camada de sal no exterior.
— Tu quer um pedaço de charque? — O velho olhou para mim, depois para a moeda e por fim, para a carne.
— Quero… — falei baixo, fingindo ser tímido.
O homem levantou e pegou a moeda que eu tinha colocado sobre o balcão. Antes de pegar a carne, deu uma olhada em Shiduu, que fazia seu papel de irmã mais velha, encostada em uma árvore, vigilante, como se protegesse seus dois irmãozinhos à distância.
— Esse pedaço é suficiente para os três? — O velho me entregou a carne, sem tirar os olhos de Shiduu.
— A “Shi” não está com fome, ela não come muito… — Ainda bem que lembrei que era comum, na cidade de Prata, que as pessoas tivessem um nome de apenas uma sílaba — Não desde que nossos pais morreram…
— Ela não me parece desnutrida para quem come tão pouco. — O velho estreitou os olhos.
Dessa vez tive que pensar rápido.
— O noivo dela foi mandado pra cá pra guerra, aí a gente veio junto para ajudar nos serviços e eles davam comida, mas agora não tem o que fazer e a gente não pode mais comer lá.
— Então… vocês, tão jovens, estavam trabalhando para o exército em troca de comida? — O velho homem coçou a barba grisalha — Tem gente muito má a ponto de explorar crianças em uma guerra…
O homem pôs a moeda sobre o balcão e empurrou em minha direção.
— Não vou cobrar pela carne, pode levar.
— Eeeh… eu posso usar moeda para comprar outro pedaço? — perguntei e dei uma olhada de canto de olho para Shiduu.
É claro que tínhamos comida, não era meu objetivo me aproveitar da boa vontade de um idoso pobre de uma vila isolada. Shiduu tinha deixado as nossas provisões à base de carne desidratada bem escondida antes de entrarmos na vila.
Enquanto ele pegava o segundo pedaço de charque, jurei internamente que pagaria aquela bondade um dia, e faria o possível para a guerra não causar dano à sua vila.
— Muito obrigado! — Sorri com sinceridade para o velho e, voltando ao personagem, peguei Surii pela mão e corremos até Shiduu.
Enquanto contava como tinha ido o meu plano de ganhar a confiança do velho, dava umas olhadas com um sorriso, como se tivesse contando que ele foi generoso. Isso era importante para o homem achar que éramos mesmo jovens órfãos e carentes.
Com aquele breve contato, eu tinha garantido um ponto de apoio para a nossa missão. Ainda tinha muito trabalho a ser feito, então comemos a carne seca, que não estava tão ruim quanto imaginei, e partimos rumo ao sul, para a estrada principal.
O próximo passo era estudar o melhor local para a abordagem que faríamos ao sistema de logística inimigo. Para isso, mapear o terreno era fundamental, e manter a discrição era crucial. Nos passamos por jovens do vilarejo sem nome que adotamos como base temporária e rumamos ao objetivo.
Os ventos de esperança estavam soprando a nosso favor. Eu estava animado por uma missão de sabotagem, onde ninguém precisaria morrer. Estava feliz de verdade em poder ajudar as pessoas a viverem mais um pouco.
E também tinha aprendido uma lição valiosa: Se ater a preconceitos por causa dos meus traumas passados era um caminho que faria mal a mim e a pessoas que eu não tive a chance de conhecer.
Isso me fez desejar mudar o mundo. Fazer deste, um lugar onde as pessoas carentes pudessem viver de forma digna.