33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 252
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- Capítulo 252 - Septuagésima Segunda Página do Diário
Septuagésima Segunda Página do Diário
Fui levado ao Conde.
Era o mesmo homem que eu vi reclamando dos nobres da capital. Dessa vez, observando mais de perto, observei os olhos cansados pela idade, além de uns fios grisalhos no cabelo perfeitamente penteado para o lado e no bigode bem desenhado, contornando a boca.
A postura perfeita mostrava que ele tinha disciplina militar, e suas roupas apresentavam um leve sinal de desgaste, indicando que, apesar de ser um nobre, não estava no melhor das condições financeiras.
Esse era o tipo de homem que estava disposto a mudar o mundo. Vendo como os serviçais aparentavam estar bem e felizes, o Conde deveria ser um patrão gentil e não o típico explorador de trabalho braçal.
Era uma surpresa para mim, encontrar pessoas aparentemente boas no Reino de Prata, principalmente depois de todas as misérias que passei. Analisando todas as variáveis que vi, defini o meu personagem.
Lembrei das aulas de sotaque, onde fizemos várias imitações e personagens caricatos. É claro que não levei a sério, pois na época não imaginava o quanto poderia ser útil. E agora estava eu, fazendo o sotaque rural do Reino de Cristal, fingindo ser um soldado raso que havia desertado.
Eu havia repassado a história de fundo várias vezes com Shiduu, então estava preparado para convencer o Conde. Me puseram de joelhos, com as mãos amarradas nas costas. Também amarraram meus pés, o que me desequilibrava um pouco, mas liberei um pouco de Rancor para cortar as cordas se chegasse ao ponto de precisar lutar.
— Então, você é o desertor? — O Conde falou pesadamente.
— Sou obrigado a lutar por um Reino que não seja o meu? — Levantei a cabeça e o encarei.
O homem não respondeu de imediato, apenas coçou o queixo.
— Sabe que a punição para deserção é a morte, não sabe? — Ele questionou após uns segundos.
— Morrer aqui, lá na batalha ou em uma prisão… — Fiz uma pausa dramática — Qual a diferença?
Essa minha pergunta tirou uma risada sincera do homem.
— E honra? Já ouviu falar?
— Honra é uma fantasia inventada por pessoas como você, que ficam na segurança de suas casas, enquanto pessoas como eu são obrigadas a morrer em batalhas que VOCÊS inventaram!
— É isso que você pensa? — Agora ele estava sério, e ao mesmo tempo, parecia me analisar melhor — Sabe que posso simplesmente matá-lo aqui ou mandá-lo de volta à linha de frente. Melhor escolher bem as suas palavras.
Era hora de fazer brilhar o personagem que inventei.
— Quer saber o que eu penso de guerra e honra? — Caprichei no drama, como se segurasse o choro — Ninguém nesse mundo se importou comigo por muito tempo, e quando finalmente encontrei alguém que me estendeu a mão, inventam uma guerra e me tiram o pouco que eu tive de felicidade em uma vida curta, me mandam para a guerra, para enfrentar aqueles monstros insanos do Leste. Onde está a honra em morrer pelas mãos dos SEUS inimigos?
Coloquei um pouco da minha “verdade” no personagem, isso o tornava mais crível.
— Você lutou contra o exército do Leste? — O homem pareceu interessado, o que indicava que a minha atuação estava funcionando.
— Luta? Aquilo não foi luta, foi um massacre unilateral! Vi todos que eu conhecia morrendo como porcos no abatedouro e não pude fazer nada! Meu capitão, o homem que me criou, morreu para que eu sobrevivesse e fugisse, por isso eu repito? morrer aqui ou lá, não faz diferença! Qualquer forma anularia o sacrifício dele…
Eu sabia que o interesse do homem era em relação aos soldados do Leste, mas precisava caprichar na atuação. E pelo visto funcionou, já que ele se agachou até que seus olhos estivessem ao mesmo nível dos meus.
— Me fale mais sobre esses “monstros insanos” do Leste.
— O que quer que eu diga? Que eles não temem a morte? Que eles lutam à noite como se vissem através da escuridão? Ou que eles venceram um exército dez vezes mais numeroso? Ou ainda, que eles venceram um cerco abandonando a segurança dos muros da cidade e nos enfrentando?
O homem parecia cada vez mais interessado na minha história.
— Tem alguém que me interessa nessa história: Deco, do Leste. Por acaso ele estava lá?
Eu? O que ele poderia querer comigo? Será que tinha descoberto o meu disfarce e estava brincando comigo? Na dúvida forcei o Rancor nas cordas que me prendiam e me preparei para uma possível luta.
— Já ouvi falar dele, mas nunca o vi. Pelo que entendi, os soldados do Reino de Prata tem certo medo dele…
— Ah, sim… — Havia um sorriso sob aquele bigode penteado — Ele é uma das poucas pessoas que põe medo nos idiotas da capital. Uma pena que não fui convidado ao casamento do Príncipe Flek, porque esse tal Deco fez uma baguncinha lá…
— E você queria enfrentá-lo?
— Eu queria recrutá-lo! — Agora ele sorria genuinamente — Alguém que bota medo nos engomadinhos da capital, anda por aí sem medo, liberta escravos… Esse é o tipo de pessoa que nós precisamos ao nosso lado.
— Nós?
O sorriso dele congelou por um segundo.
— Me empolguei. Desculpe.
— Se o que deseja é saber dele, as notícias no acampamento informaram que ele enfrentou as forças da fronteira sul. Não entendi muito bem como ocorreu, mas as especulações eram de que um dos três lordes do Sul morreu no combate.
— Um dos três? — O conde coçou a barba — Long-Hua?
— Não, era outro nome… — Eu sabia exatamente o nome, mas não queria parecer muito inteligente.
— Zang-Nee?
— Isso! Acho que era esse o nome!
— Que os deuses o tenham. O conheci, era um grande homem.
Isso eu tinha que concordar. Se não fosse por Leonardo e Van-Nee, ele ainda estaria vivo.
— Você me traz notícias interessantes, e o medo da morte é normal. Mesmo que eu não possa te deixar ir, vou te mostrar algo interessante. — O conde falou, em seguida se dirigiu aos guardas — Soltem ele!
Assim que me liberaram das cordas, o Conde pediu que eu o seguisse até a sacada do seu escritório, de onde pude ver uma grande plantação de macieiras. Cada árvore daqueles parecia muito bem cuidada e dava para ver que estavam carregadas de frutas.
As maçãs que começavam a ficar avermelhadas, moldavam a copa das plantas em uma beleza que eu não conseguia imaginar. E cada planta estava perfeitamente disposta em linhas retas, formando corredores longos de macieiras.
— Já ouviu falar dos Hassos? — O conde perguntou.
— Não. O que é isso?
Na verdade eu já tinha ouvido falar. Os Hassos foram um povo que viveu na fronteira entre o Leste e o Reino de Prata há muito tempo, mas foram exterminados cerca de cem anos antes. Tudo que se sabia sobre a cultura deles era de serem muito violentos.
— Os Hassos se estabeleceram nessa região, vindos do Leste. — O conde explicou — Eles fugiram de lá e vieram para cá. E quando chegaram, mataram todos que viviam aqui, roubaram e queimaram o que puderam, afirmando que esse seria seu novo império. Meu avô foi enviado para combater os Hassos, e assim o fez. Segundo os registros, eram dez Hassos para cada soldado de prata, e mesmo assim meu avô venceu. Três mil e quinhentos Hassos foram mortos naquele dia, não sobrando nenhum para contar a história. E sobre a cova de cada um deles, meu avô plantou uma macieira.
Agora eu entendia o significado do plantio de maçãs. E acho que nunca mais vou comer maçãs na vida, vai que são adubadas com Hassos…
— Por que está me contando isso? — perguntei.
— Porque meu avô venceu o último dos povos selvagens, meu pai lutou na unificação do Reino de Prata, se livrando das milícias pela segurança do reino, e eu servi metade da minha vida contra as rotas de contrabandos que tentavam cruzar a fronteira ilegalmente. Agora meu filho está nas linhas de frente, enquanto os nobres da capital e seus filhos estão na segurança da capital.
— Isso o revolta?
— Mas é claro. Como você mesmo disse, honra serve para matar pessoas inocentes, enquanto os verdadeiros culpados estão na segurança dos seus lares.
— E por que está me contando isso?
— Porque eu tenho uma missão para você: Ache outros nobres das províncias e convença-os a atacar a capital, e eu comandarei o ataque. Além de mim, dezenas de outros nobres de fora da capital devem estar insatisfeitos com essa guerra.
Eu não sabia se aquilo era real ou um teste.
— Faça isso e terá sua liberdade.