3552 Sem Memórias - Capítulo 1
O cheiro de carne queimada entrava nas minhas narinas, eu sentia uma forte tontura e enjoo. Para onde quer que olhasse, ali estavam os corpos carbonizados, as casas em chamas e o fogo azul que aniquilava quem se aproximava. Aquela destruição tinha um responsável e ele estava na minha frente.
Semelhante a um dragão, cuspia fogo, possuía asas, mas não era um dragão. A cabeça do monstro era semelhante a de um leopardo, seus olhos eram como os de serpentes, sua pele escamosa como a de lagartos, suas asas como as de morcegos, e suas patas eram como as de um leão. E ainda possuia certas características únicas, tal como a da sua longa cauda com espinhos na ponta prontos para proteger suas costas.
Tremi de medo, não sabia o que era aquilo, nem tinha ideia do que havia acontecido ao meu redor. Eu queria correr, mas meu corpo congelou, não havia chance para mim, a morte era a única escolha.
E então um rapaz rodeado por diversas correntes apontou para a besta e falou:
— Aquele é o seu alvo, mate-o.
— O quê?
Entendi sua ordem, mas como ele esperava que tal coisa fosse morta? Ainda mais por mim?
— Em dois dias a guerra vai começar, você não é a última esperança, mas não faça com que eu tenha que a usar.
Olhei para seu rosto, mas não havia um, seus olhos, boca, nariz e quaisquer outras expressões faciais eram inexistentes.
Assustado, acordei, tudo não havia passado de um pesadelo. No mundo real, eu estava sozinho em uma clareira dentro da floresta. À minha volta havia uma fogueira apagada e uma mochila de couro desgastada. O sol acabava de nascer no horizonte, prenunciando uma manhã sem nuvens no céu.
Tentei me lembrar de como havia chegado ali, mas não havia o que lembrar. Minha mente estava vazia, não tinha informações do meu nome, da minha família nem de mais nada. Quem eu era? O que fazia ali? Tudo era um enorme vazio.
Procurei por algum vestígio sobre meu passado na mochila. Dentro dela, muitas mudas de roupas, alguns frascos com um líquido incolor dentro e uma bússola com a seguinte inscrição: “Siga sempre para o norte, não se desvie.” Aquela era a única pista que eu tinha e eu devia me segurar nela.
De toda a paisagem, o que mais me chamava a atenção era uma grande teia que se projetava em duas árvores, estas com mais de vinte metros de altura, deve-se denotar. Olhei pensativo, qual seria a espécie de aranha que construa tal teia? E onde ela estava agora?
Caminhei por um bom tempo naquela floresta, eu refletia a cada momento na tentativa de relembrar algo, apenas para revisar o sonho do dragão novamente. Por seguir a bússola, cheguei até um rio largo e caudaloso, na qual a água transparente colidia com as rochas. Podia-se ver os peixes que nadavam pelo local e os pássaros com voos rasantes em busca da sua caça.
Só havia uma única maneira mais ou menos segura de atravessar o rio: uma velha ponte de pedra em ruínas. Pelo seu estado, ela não via manutenção há muitos e muitos anos. Sem opções, atravessei com extremo cuidado para não cair, enquanto algumas pedras se soltavam.
Metade da ponte havia sido cruzada quando algo estranho ocorreu. Os pássaros que antes pescavam na água, fugiram em debandada. Em seguida, as árvores começaram a tremer e o chão também. Da floresta, a dona daquela teia da clareira apareceu.
Uma aranha, porém com mais de seis vezes minha altura, seu peso era tanto que a ponte tremia com a sua caminhada. Ao ver toda aquela beleza que, ao mesmo tempo, era aterrorizante, fiquei imóvel, eu admirava aquela beleza monstruosa, minhas pernas não se mexiam, estava atônito, não sabia o que fazer em tal situação inesperada. Minha face era um misto de terror e curiosidade.
Ela olhou para mim com aquela centena de olhos e eu entendi imediatamente sua intenção. Disparei em uma arrancada, entrei na floresta da margem oposta, meu objetivo era despistar a criatura no fundo da mata. Não podia estar mais errado.
Numa fúria descomunal, ela atravessou o rio, a velha ponte foi destruída de uma vez por todas pela aranha. Galhos e troncos atrapalhavam minha passagem, enquanto a aranha os esmagava. Eu corria rápido, mas ela era ainda mais veloz.
Uma vasta planície substituiu todos os obstáculos da floresta. Agora eu estava livre para correr desimpedidamente. Meu fôlego se esvaziava, mas o meu perseguidor se mantinha firme e focado.
Não havia esperança para mim…
Um único tiro de canhão cortou o ar. O impacto arrancou a cabeça da criatura e caiu aos meus pés. Um líquido branco viscoso saía do membro decepado, era muito semelhante ao que possuía em minha mochila.
Até esse momento, a sensação de fuga estava fresca no meu corpo. Desgastado, caí no chão e retomei meu fôlego e energia. No final tudo acabou bem, como um milagre, devo acrescentar.
Mas quem havia sido o meu milagre? Revirei meus olhos na procura da de onde veio tal tiro preciso e não demorei muito para avistar um tanque de guerra mais ao longe. Era a ele que eu devia agradecer. Eu gostaria, mas estava sem nenhuma força para acometer tal ação.
O veículo se aproximou, e dentro dele um homem ruivo com o rifle em punho saltou para fora e apontou a arma para mim. Continuei deitado na terra, cansado.
Ele se aproximou de mim, me chutou e gritou:
— Fica de pé e coloca as mãos para cima.
— Que isso, não fiz nada, quanta agressividade — respondi ao levantar.
— Droga, Jonnhy, no que você estava mirando? Como podemos vender a mercadoria se ela está esparramada pelo chão.
— Deixe seu irmão em paz, ele matou o cranyus e salvou o garoto, tudo acabou bem — Outro homem saiu do tanque.
Esse homem era bem diferente do primeiro e não portava nenhuma arma. Ele tinha um corpo musculoso, forte, seu bigode impunha um enorme respeito. Sua insígnia possuía uma estrela prateada de oito pontas, bem diferente do homem que me rendeu.
— Agradeço por isso, senhor, não sei o que seria de mim.
— Me diga o que faz fora das cúpulas? — indagou o oficial.
— Fora de onde?
— Vai se fazer de desentendido?
— Do que raios você está falando.
— Achei ele muito metido, Roberson. Não seria melhor chamar logo o jipe e prender o desertor? — intrometeu-se o soldado.
— Desertores fugiriam ao ver nosso tanque, ele é diferente — O oficial pegou o seu rádio — Temos um protocolo 23-19 aqui, por favor envie uma patrulha para averiguar a situação.
— O que querem dizer com diferente? — questionei.
— Não é do seu interesse. Vou ser direto, o que faz aqui do lado de fora?
— Não é do seu interesse — respondi a ele da mesma maneira.
— Lembre-se quem tem a arma aqui, por favor responda a maldita pergunta.
— Eu não sei.
— Como não sabe.
— Eu simplesmente não sei, eu saí da floresta e acabei vagando por aí fugindo daquilo — apontei para a criatura decapitada.
— E antes disso? O que fazia na floresta das almas?
— Não lembro de nada antes disso.
— Como não se lembra de nada? — espantou-se o soldado.
— Não lembrando, é tão difícil assim me entender? Minha primeira memória é acordar em uma clareira e aí… Aí a criatura começou a me perseguir…
— Me dê a mochila — ordenou o oficial.
Ele a vasculhou, tirou tudo o que havia dentro, sua atenção se focou naqueles frascos brancos, os mesmos que pareciam ser o sangue do bicho que estava no chão momentos antes.
— Onde arranjou isso? — intimidou ele — Esse composto tão refinado só pode ser encontrado na União.
— Encontrei na mochila.
— Vamos ver se você é um mentiroso.
Não acreditei quando o mesmo abriu o frasco e bebeu todo o líquido de um dos frascos. Ele aproximou-se de mim, tocou na minha testa e um rosto de surpresa e preocupação tomou conta dele.
— Mas o que raios? É pior do que imaginei. Peço desculpas, parece que você fala verdades.
— Eu não lhe disse?
— Agora acredito. Prazer, Major Roberson. Você não tem um nome, o que é uma pena.
Aquela mudança repentina de humor e resposta me trouxe mais dúvidas sobre o que realmente acontecia. Por qual motivo ele havia bebido tal líquido? Por que acreditar em mim?
— Prazer, eu sou Bener — cumprimentou o soldado com a arma de forma tão repentina que cortou o meu pensamento sobre Roberson.
— Roberson, você pode explicar alguma coisa? O que tem essa bebida? Por que perguntaram o que eu fazia do lado de fora? Fora de onde? — comecei a fazer uma enxurrada de perguntas.
— Calma, tudo será respondido no seu devido tempo. Primeiro devo levá-lo até o acampamento, o local correto para tudo ser esclarecido.
A contragosto concordei, nunca tive e nem tenho muita paciência, imagine nessa época na qual eu estava desesperado. Um jipe apareceu e nos levou até o acampamento. Bener e o piloto do tanque ficaram para trás com um caminhão para levar os restos da criatura. Para eles, a criatura era normal, mas eu, semelhante deles, era tratado como algo anormal.
O acampamento ficava a pouco mais de quinze minutos de viagem, no final da planície, quando se chega nos imensos penhascos que dividem as planícies das montanhas. Era um local grande, com muitos veículos posicionados na entrada, todos com armas de grande calibre em sua caçamba. Até mesmo armas antiaéreas estavam presentes. Em que guerra eles lutavam? Era mesmo seguro permanecer com eles?
Dentro dele, a movimentação era frenética. As tendas eram desarmadas e carcaças de criaturas desconhecidas e exóticas eram colocadas em caminhões. Destas, algumas incluíam aranhas iguais às que havia me perseguido.
Saí do veículo algemado sem motivo algum. Sobre os olhares dos outros soldados fui colocado em uma tenda com duas cadeiras. Sentei em uma cadeira e Roberson pegou outra e sentou-se na minha frente, e nós dois ficamos mudos por um bom tempo. O tédio me matava, tinha que tirar a tensão.
— Achei bem curioso o local, estamos em guerra? — indaguei.
— Estamos em guerra há dois mil anos, e essa merda nunca vai parar, entenda.
— Com quem?
— Como assim com quem? Você identifica as coisas, sabe o que é um tanque, um carro, um pássaro e não sabe o que é um cranyus?
— Não eu não sei, essas coisas são comuns, cranyus são coisas desconhecidas…
— Todo dia arrisco minha vida e a do meu batalhão para matar essas coisas e você que estava do lado de fora não sabe o que são eles? — irritou-se Roberson.
— Deixe o garoto, ele vai entender tudo agora — Um homem loiro apareceu na entrada da tenda.
Seu uniforme estava amassado e com a gola aberta, um desleixo total para um soldado. Na mão direita ele segurava duas garrafas de vidro. Ao vê-lo, Roberson levantou-se da cadeira e fez uma continência.
— General Drake, aqui está o garoto.
— Gostaria de conversar com você primeiro.
Roberson saiu da tenda e começou a discutir alguma coisa com o general do lado de fora, eu não consegui escutar nada com a barulheira do acampamento. A conversa acabou com um rosto preocupado de Drake e um cumprimento de mãos de ambos.
Drake entrou e se sentou onde estava Roberson anteriormente. Ele abriu minhas algemas e me deu uma das garrafas. A contragosto, bebi e senti uma sensação incrível em minha boca, aquilo era um néctar divino.
— Sem nome, sem história, o que você é? — perguntou ele.
— Nada e você o que é?
— General Drake, líder da sexta divisão de extermínio. Alguém que saiu do nada e chegou ao topo. É isso que eu sou.
— Seu objetivo aqui não é contar vantagem para mim, vocês querem saber de algo e me tratam como criminoso.
— Inteligente e perspicaz, gosto disso.
— O que querem saber?
— Roberson o encontrou do lado de fora das cúpulas, qual o motivo disso?
— Ainda estamos fora das cúpulas?
Drake confirmou com um sorriso sarcástico.
— Então vocês também estão fora, qual o motivo de vocês?
— Caça, estamos caçando.
Juntei os fatos e compreendi finalmente. Eles caçavam aquelas criaturas, eram perigosos e caso meu pensamento estivesse correto, eu tinha que sair dali o mais rápido possível. Dançar conforme a dança, foi o que decidi, de maneira cínica resolvi mentir.
— Caçando? Caçando o quê? O que existe de tão perigoso do lado de fora.
— Quer mesmo saber?
— Claro, minha vida está em jogo.
— Então vamos começar do início…