A Adaga de Ouro - Capítulo 6
Thomas andou até onde estava o homem de branco. Ele vestia um jaleco e tinha um rosto amigável, com uma barba cobrindo parte do queixo.
O homem estava conversando com alguns soldados, por isso, o menino esperou.
Depois que os soldados foram embora, ao invés de Thomas abordá-lo, o próprio, ao perceber o jovem, se dispôs:
— E aí, garoto? De boa? Tá querendo alguma coisa?
O rapaz estranhou e ficou surpreso quando o homem começou a falar. Diferente do que indicava sua aparência, ele falava muito informalmente.
— Não! Quero dizer, sim! — exclamou, ainda surpreso com o jeito que foi abordado.
— Então… o que tu quer?
— É que eu ouvi falar que o senhor é um guia. Queria perguntar algumas coisas…
— Pera aí, pera aí! Tá me achando com cara de velho, é? Não é senhor não! Meu nome é Konrad! — gritou, irritado.
— Ah! Perdão! Eu não queria te ofender. Só quis ser respeitoso. Se não quiser que eu te chame assim, não chamarei mais.
— Fazer o quê… essas crianças sempre falam assim comigo. Eu tenho só vinte e dois anos, ok?! Ainda sou jovem! Essa barba aqui não significa nada!
— Desculpa, ó super jovem Konrad! — Ao perceber que o homem ignorou totalmente seu educado pedido de desculpas anterior, falou de forma irônica.
— Tá de boa, já são águas passadas, meu amigo! — Levou a ironia como elogio e perguntou mais uma vez — Que que tu quer? Pó falar.
— Eu queria algumas informações.
— Belê, mas que tipo de informação? Eu trabalho com nome e endereço. Só “quero informação” não quer dizer nada.
— É… informação… tipo de informação? — Ficou confuso com a resposta que recebeu.
— Relaxa, meu amigo! Tô só tirando uma com a tua cara. Tu chegou agora, né? Vou explicar pra tu como as coisas funcionam por aqui e mostrar o lugar. Mas antes, tô te devendo uma apresentação mais suave, já que agora tu é meu parceiro. Meu nome é Konrad e, como se pá já te mandaram o papo, tu pode me chamar de guia ou o que quiser, mas eu não sou nada disso. Antes eu era só um funcionário público qualquer… daí eu… isso não importa! Vamo indo! A gente tem um tour pra fazer! — respondeu, já caminhando e acenando para pedir que Thomas o acompanhasse.
— Claro — falou, seguindo Konrad.
Saíram do pátio principal, onde havia várias tendas montadas, provavelmente para os cidadãos evacuados, e andaram pelo abrigo.
Konrad abriu a boca no caminho:
— Quando tu quiser saber alguma coisa é só perguntar pra mim, beleza? Confio que tô sabendo o suficiente do que rola por aqui pra explicar ao menos o básico pra tu — Parou de andar e depois apontou para uma pequena edificação perto do estacionamento onde Thomas estava com o general. — Tá vendo aquilo ali? É a base do exército. Não pensa em entrar sem autorização. Lá eles fazem uns negócios muito doidos. Só vai lá se tu quiser alguma coisa séria tipo treinar e tals. Tem um andar subterrâneo também.
— Eu imaginei. Vi um oficial entrar aí antes. Foi ele que me trouxe pra cá.
— Um oficial? De quem tu tá falando? Os oficiais quase não saem de lá de dentro.
— Paul. General Paul.
— O-o ge-general Ebersbach?! Você deve tá é maluco! Esse cara é o maior figurão. Ele é tipo o manda-chuva daqui e grande parte das tropas do país tão na mão dele. E tu me diz que ele que te trouxe pra cá?! Acho que eu acreditaria até mais se me dissesse que foi o papa, mas uma das pessoas que não poderiam sair daqui numa situação crítica como essa é justamente ele. O cara é como um pilar dessa base, tá ligado? Ele quem estava por trás da organização desse abrigo. Pensar que ele saiu numa situação dessas é doideira demais pra qualquer um acreditar — tagarelou bem rápido.
— Você não tem nenhuma informação sobre essa repentina saída dele? Pensei que era um tipo de funcionário aqui. Talvez até um cientista, já que te vi conversando com uns soldados casualmente antes… também tem esse jaleco.
— Ué? Que que tem? Aqueles soldados são meus parças e eu só gosto de usar jaleco.
“Ele é bem estranho”
— Ok… — Decidiu não questionar.
— Vamo continuar! Ainda tem muito pra gente ver! Hoho! — disse, forçando risos e continuou a andar pelo local parando de vez em quando para mostrar algumas coisas para Thomas.
━─━─━─━─∞◆∞━─━─━─━─━
“Na verdade, olhando agora, ele é um cara bem legal, apesar de ter esse jeito esquisito. Parece que todo mundo por aqui já o conhece.”, pensou ao observar que as pessoas e os soldados o cumprimentavam por onde quer que os dois passassem.
Não pôde deixar de ficar intrigado e resolveu perguntar:
— Como você é tão conhecido por aqui e tem tanta informação se esse abrigo foi montado hoje?
— Ih! Boa pergunta, parceiro. Eu só troquei uma ideia com quanta gente deu e me esforcei pra ficar atualizado de tudo. Mas, cê sabe, eu não sei de tudo daqui não. Aquele apelido de guia não cola muito porque são os oficiais que na real sabem das coisas… e eita! É mesmo! Esqueci de perguntar teu nome!
— É Thomas. E não se preocupa muito com isso. Até agora você me mostrou bastante coisa. Obrigado.
— Que nada! É o que a gente faz pelos parceiros! — Deu um tapa de leve nas costas do garoto e continuou a falar. — Nosso passeio tá pra acabar. Antes da gente se separar, preciso te passar um papo.
— Que tipo de “papo”?
— Só ia te falar sobre como funciona a questão da comida, das roupas e das tendas.
— Eu sou todo ouvidos.
— Belê! Então… pra tudo isso tu vai ter que assinar um documento lá na área de atendimento que te mostrei antes. Tem umas questões nisso aí, mas se tu for lá vão te explicar melhor.
— Valeu, Konrad. — falou informalmente, contagiado pelo homem.
— Nada não. Já falei que tu é meu parça. Tô saindo fora agora… toca aqui! — Abriu a mão para um high five¹, que foi correspondido pelo garoto, e depois saiu andando, acenando de costas e dizendo. — A gente se vê por aí, Thommy.
“Thommy, hein? Quando foi que ficamos tão íntimos? E pensar que existem pessoas assim, capazes de fazer amizades em instantes. Isso é bem assustador. Agora, acho melhor dar uma olhada nessa questão do documento…”, ponderou e seguiu caminhando até o local.
Chegando lá, se deparou com uma fila de pessoas, então teve que esperar a sua vez. Não havia tantas pessoas, por sorte. Já era tarde da noite.
Logo chegou a sua vez e foi atendido.
A atendente era uma moça bem vestida, mas tinha o rosto de alguém que não estava acostumado a fazer aquilo. Disse com voz monótona:
— O que deseja?
— Me disseram que eu devo assinar um documento para a questão das roupas, alimentos e tendas.
— Sim. É uma papelada básica com um questionário. Fazemos isso para ter um certo controle. — Pegou duas folhas presas por um grampo e colocou no balcão.
— Entendi, mas antes de eu assinar, pode me responder uma pergunta? Estou curioso sobre algo.
— Claro, se estiver dentro de meus conhecimentos.
— Por que vocês utilizam papel para os documentos? Eu sinceramente não acho o método mais eficiente para controle, já que há sistemas avançados desenvolvidos para isso, como o HoloSpeicher, por exemplo.
— Olha, essa pergunta tem muito a ver com a nossa sociedade. Eu entendo que crianças da sua geração talvez achem isso estranho e ineficiente, mas se observar, grande parte de nós ainda utiliza o papel e a escrita manual. Eu diria que ainda somos muito grafocêntricos², embora eu concorde com a sua visão de que os sistemas são mais eficientes. Por mim, eu colocaria tudo direto em um sistema, mas me deram esses papéis e disseram para usá-los e só então passar para o sistema. Como eu tenho um emprego a manter, tive que seguir as ordens.
— É, faz sentido. Por acaso você tem uma caneta?
— Tem uma bem aí — disse, apontando para um porta caneta no balcão.
— Eu nem percebi. Obrigado. — Pegou a caneta e começou a escrever na papelada. Se sentiu enferrujado, pois nem na escola tinha o costume de escrever.
“É nesses momentos que eu percebo o quão dependente me tornei da tecnologia. O que a atendente disse faz total sentido. Acontece que a minha geração se acomodou com a tecnologia a esse ponto. Agora entendo porque alguns professores, apesar de terem que passar os conteúdos para o HoloSpeicher, ainda preferiam escrever na lousa. De qualquer forma, nem estou com meu transmissor aqui mesmo. Deixei dentro da mochila e tive que abandonar ela para correr.”, pensou enquanto respondia o questionário.
Eram questões simples. Apenas perguntavam quantos dependentes tinha, quantas roupas precisaria, o tamanho, quanto normalmente comia e algumas informações pessoais básicas como nome, endereço, estado civil e outras coisas típicas de documentos governamentais.
Alguns minutos depois e finalmente terminou. Assim, entregou para a atendente, que abriu a boca após guardar as folhas:
— Essas perguntas são usadas para determinar a quantidade de recursos que você necessita. As informações que você deu serão verificadas periodicamente e você precisará atualizá-las sempre que houver alguma mudança. No mais, não precisa se preocupar. As roupas poderão ser retiradas por você assim que mostrar esse comprovante na central de reconhecimento — Entregou um broche de metal com o símbolo do exército. — O mesmo vale para a tenda. No caso das comidas, elas serão entregues em horários específicos, então só a partir de amanhã. Além disso, você pode também comer no refeitório.
— Então eu já posso ir? — perguntou, enquanto prendia o broche em sua blusa.
— Não, só um segundo, preciso escanear seu rosto e passar para o sistema junto com o resto das informações. — Ela pegou um pequeno aparelho que, ao ser movimentado para cima e para baixo, lançou um feixe de luz no rosto do garoto. Em seguida, fez o mesmo com o documento e continuou a falar. — Agora você já pode ir. Aconselho que já vá retirar as suas roupas e pegar uma tenda.
— Tudo na central de reconhecimento, certo?
— Sim. É ali na frente. — Apontou para o local.
— Agradeço — disse e caminhou rapidamente para a central.
━─━─━─━─∞◆∞━─━─━─━─━
Ao chegar, foi imediatamente recebido por um soldado armado, que viu seu broche, escaneou seu rosto com um aparelho e permitiu sua entrada no local, dizendo:
— As roupas estão no armazém. Alguém vai te guiar até lá e te mostrar. Você pode pegar até oito peças comuns e cinco íntimas. No inverno, provavelmente darão roupas de frio, então não se preocupe por enquanto. A lavagem fica por sua conta. Tem máquinas com horários agendados por aqui. Em relação à tenda… pode pegar qualquer uma que não esteja marcada com uma placa ou qualquer coisa do tipo. Essas já pertencem a alguém. Também aconselho que marque em algum lugar para avisar que a sua tenda está ocupada.
O recinto era como uma base militar por fora e, ao entrar acompanhado por um outro soldado, percebeu que por dentro, era um local pequeno.
Só havia alguns cômodos e uma escada que levava a um andar subterrâneo. Eles andaram até ela e chegaram num lugar espaçoso parecido com um bunker³.
Ali havia um estoque enorme de roupas em caixas.
Em cada uma das caixas havia uma placa relativa ao tamanho das vestimentas contidas nelas.
O soldado instruiu o garoto e observou ele pegar peça por peça.
Thomas pegou as roupas mais casuais que encontrou, com exceção de um sobretudo azul com detalhes dourados porque achou legal, apesar de nem ser do seu tamanho, e uma capa azul escuro que nem sabia para que usaria, mas de alguma forma o atraiu. Isso totalizou três mudas de roupa.
Todas as roupas eram dobradas e embaladas por um tipo de plástico.
Depois disso, os dois saíram do lugar e o homem que o estava acompanhando se despediu.
Antes de se acomodar em uma tenda, foi até o soldado que guardava a entrada e perguntou:
— Tem algum marcador ou qualquer coisa que eu possa usar para marcar a ocupação da minha tenda?
— Por que sempre me perguntam isso quando eu só digo aquilo porque é o que me passaram? Não é como se eu tivesse um estoque de marcadores, placas ou algo assim — suspirou, mas logo em seguida puxou um marcador permanente, uma folha de papel dobrada e uma fita adesiva do bolso. — Aqui.
“Por que alguém teria tudo isso guardado em um bolso?! E ele não estava agora há pouco reclamando, como se não tivesse sempre essas coisas?”, estranhou, mas aceitou pegar os itens, guardou-os num dos bolsos de sua calça e andou até a área das tendas ainda com as roupas em mãos.
Escolheu uma aleatória que não estava marcada e deixou as roupas dentro dela.
Depois retirou os itens do bolso, colocou a folha de papel no chão e o usou como apoio para escrever com o marcador as seguintes palavras: “Pertence a Thomas Lange.”
Só faltou colar o papel com a fita adesiva numa parte visível da tenda, então, o fez.
Agora já não havia mais o que fazer, então simplesmente entrou dentro da tenda e dormiu.
━─━─━─━─∞◆∞━─━─━─━─━
Notas
¹ “O high five (em português: toca aqui) é um gesto de mão que ocorre quando duas pessoas simultaneamente levantam uma mão cada, aproximadamente na altura da cabeça, e empurram, deslizam ou batem a palma da mão contra a palma da outra pessoa” (Wikipedia)
² Palavra derivada da corrente ideológica grafocentrismo, que pressupõe uma elitização da escrita à mão, isto é, o manuscrito é mais valorizado do que qualquer outra forma de escrever. Grafocêntrico é algo que segue essa corrente ideológica então, nesse caso, a atendente quis dizer que a sociedade ainda escreve majoritariamente à mão mesmo tendo tecnologia para evitar isso.
³ Uma espécie de abrigo subterrâneo feito de materiais extremamente resistentes e elaborado para suportar todo tipo de desastre e guerra.