A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 11
A esquadra mercenária congelou. A figura aracnídea os encarava sem mover uma única parte do seu corpo, deixando seu mestre em êxtase.
— Isso é… uma Filha de Kolur? — Laviel gaguejou.
O guia estava em choque ao ver o monstro se revelar. Desde quando interrogou o louco, o leifanês sabia que algo estava estranho. Ainda assim, a realidade que o fitava era grande demais para sua mente.
Mercenários e aranha se olharam sem que nenhum dos lados tomasse a iniciativa. Os soldados da Noligre tentaram mostrar firmeza, mas o medo em seus rostos mostrava que era uma máscara. A aranha, por sua vez, manteve-se imóvel, à espera de uma ordem de seu mestre.
— Estrangeiros e cães republicanos, tremam diante da décima oitava Filha de Kolur! — Astovi gritou em triunfo.
A espinha dos guerreiros congelou ao ver a criatura dar um passo. Porém, para sua surpresa, aplausos vieram de suas fileiras e interromperam a tensão. Todos os mercenários procuraram o louco que fizera tamanha tolice, encontrando seu capitão com um sorriso na cara.
— Excelente teatro, beato! — Cefas disse como se estivesse em um espetáculo. — Mas você não engana esse soldado aqui.
— O que está fazendo?! — Laviel o agarrou pelos ombros. O oficial agiu com brutalidade para se livrar do homem, quase o empurrando.
— Os humanos da Tautânia são descendência de Kolur. Quando Faor criou os homens para consertar o mundo depois dos elfos estragarem tudo, ele concedeu a vocês a honra de manipularem o Vivo e Intocável. Emoções, sentidos, memórias, sonhos… Quase todos os seus feiticeiros são ilusionistas. Soldados! Nada do que está em frente de vocês é real. Trata-se de um truque da vista, ilusões não podem nos ferir!
Os mercenários ouviram as palavras do seu capitão, mas elas foram insuficientes para quebrar seu nervosismo. A maioria conhecia a história da origem dos homens, bem como os poderes dados pelo Pai dos Homens aos tautaneses. Ainda sim, sentiam que a aberração de oito patas era uma ameaça.
— Capitão — Laviel persistia —, se essa coisa for mesmo uma Filha de Kolur, então ela vai matar a gente, sendo ilusão ou não!
— Poupe-me das suas superstições, Laviel. Dê mais ouvidos a razão e menos a lunáticos!
Era uma situação estranha. De um lado, a criatura parecia real e seu mestre aparentava confiança. Por outro, Cefas exalava convicção em suas palavras. Duas verdades se digladiaram, mas só uma era a realidade.
— Se tens tanta certeza que se trata de uma ilusão, por que não fazemos um “teste”? — perguntou Astovi.
O oficial manteve-se cético. Ele estava certo de que se tratava de um blefe do frade para se safar.
Já o beato mostrava um sorriso macabro para a tropa. Ele ergueu sua destra para o alto, deixando a aranha agitada. No último momento, a tropa escolheu ser fiel ao capitão, formando uma linha ao redor do seu líder.
— Vamos, minha filha! Mostre como você consegue cantar!
A criatura recuou como se preparasse um salto. Os mercenários apontaram suas armas em resposta. Eles olharam para a figura confiante de Cefas, esperando por suas ordens.
O monstro abriu sua boca e lançou um berro agudo. O som rasgou pelas orelhas dos soldados, de uma forma tão poderosa que sentiram suas cabeças pesarem.
Era uma melodia demoníaca. Tentaram tapar suas orelhas para que a tortura cessasse, mas o barulho estridente persistia em atormentar suas mentes. A sinfonia infernal vinha de dentro, causando-lhes uma dor que atravessava seus crânios feito uma flecha. Tudo que desejavam era o fim daquela maldição.
Tadeu estava quase de joelhos. Enquanto tapava as orelhas, sentiu um líquido escorrer do ouvido para uma de suas mãos. Viu a cor escura do fluido brilhante ao tomar coragem para olhar. Sangue.
— Ela consegue controlar a visão e a audição — Astovi provocou enquanto o brado do monstro cessava. — Ainda precisa de mais provas, mercenário?
A pergunta de Astovi fez a criatura interromper o seu brado. Ao fim do grito, os soldados sentiam suas cabeças pesarem, quase os lançando ao chão. Seus ouvidos apitavam em um som parecido com o de uma chaleira.
— Maldito… — Tevoul tentou erguer a voz contra Astovi, mas a dor de cabeça pulsante o impediu.
Tadeu correu para ajudá-lo, por pouco evitando que ele caísse. Os dois olharam para o frade exaltado com furor no rosto.
— Que tipo de maldição aquele desalmado criou?! — perguntou Tadeu.
— Ele realmente fez… Filhas de Kolur são as feiticeiras de Carasovi. O tirano usou elas como arma de guerra contra a Quarta Aliança.
— Aquela criança é uma feiticeira desse nível?!
Ainda tonto e com a cabeça latejando de dor, Tevoul foi obrigado a confirmar, mesmo que tentasse mentir para si. Aceitar significava admitir seu provável destino.
— Filha! — o frade gritou. — Acabe com isso!
A aranha se preparou para outro bote. Os mercenários, agora cambaleantes, voltaram a apontar suas armas para a coisa. Porém, sua confiança estava destruída. Tudo o que restava era o medo da próxima cartada cruel da criatura.
— Mirem nas pernas! — gritou o capitão. — Fogo!
A fumaça se levantou com o grito dos mosquetes. A grossa neblina de pólvora ocultou a coisa, causando um certo alívio. Porém, ao mesmo tempo que escondia o ser, a fumaça criava uma cortinada de pura incerteza. O ser poderia ter sumido, contudo também havia a chance de que estivesse lá, esperando-os.
O vento afastou a névoa, dando aos olhos do grupo o contorno das árvores e da estrada conforme dissipava a neblina. A via clareou sob o luar e trouxe seu medos à realidade. A silhueta de oito patas se desenhou por trás da fumaça, revelando-se a distância de poucos passos do primeiro da linha. Estava intacta. Com suas duas patas da frente, apontava aos seus corações aflitos.
Os soldados levantaram suas armas. Uma legião de baionetas apontou para a coisa, mas faltou bravura para o primeiro golpe.
Pela coragem ou pela estupidez, um mercenário se aproximou do aracnídeo, atraindo sua atenção. Com seu mosquete, golpeou uma das pernas da criatura, mas falhou. Sua arma atravessou o corpo da aranha, mostrando sua estranha natureza. Era intocável. Seu corpo parecia ser feito de puro ar, totalmente intangível a mãos humanas.
O homem voltou para a linha com a face destruída. O monstro o fitou com seus quatro pares de olhos. Ela chiava enquanto batia as quelíceras da boca, exalando sua fúria pelo ataque.
Ele saiu da linha em disparada, na vã esperança de escapar do destino. A perna esquerda do monstro despencou do céu para seu corpo. Um grito por socorro soou após o impacto, silenciado pelos sons bizarros da criatura que festejava o abate.
A aranha ergueu sua perna para o alto, revelando sua vítima empalada. Ele se debatia na vã esperança de se libertar do julgo da criatura, mas o ser desconhecia a piedade.
O solo tremeu com o impacto da perna no solo. O soldado foi lançado contra a lama da estrada, desgarrando-se da coisa que o matou.
O corpo do mercenário ainda dava espasmos de vida, mas era tarde. Com um buraco gigantesco em suas costas, lentamente perdeu seus sentidos.
Tomados pela ira, os soldados da Noligre atacaram a criatura por todos os lados. Dois soldados se aproximaram da aranha pela sua direita, mas seus golpes foram tão inefetivos quanto os do caído. Em resposta, a aranha lançou um golpe horizontal, ferindo-os pelo torso.
Cefas e sua comitiva correram para a aberração. Com sua espada erguida ao ar, tentava reerguer o moral dos soldados.
— Ilusionistas precisam estar no monstro! — ele gritou. — Ataquem todas as pernas, a pirralha tem que estar lá!
Os mercenários golpearam-na por suas pernas, torso e face, mas nada funcionava. Todo golpe transpassava aquele corpo fantasmagórico. Enquanto isso, a aranha golpeava os soldados sem qualquer piedade, cortando e empalando a carne de todo que ousasse desafiá-la.
Tevoul tentou estocar a criatura em uma de suas pernas centrais com a baioneta, mas, como o resto, seu golpe cruzou a aranha. Depois, teve que ser rápido para evadir do contra-ataque que mirou sua perna esquerda.
Com um salto para trás, quase se desequilibrou ao pousar. Quando encarou o monstro de volta, sua espinha gelou. Dezenas de corpos estavam ao redor da coisa, todos feridos ou já mortos. Pior ainda, naquele instante, a atenção da criatura era toda sua.
A aranha avançou em passos ligeiros. Usando sua perna destra da frente, desferiu um forte golpe horizontal que lançou o mercenário para trás. O soldado deixou um uivo de dor escapar após o choque com o chão.
— Tevoul! — Tadeu gritou desesperado ao ver o colega voar.
Por um milagre, a criatura falhou em feri-lo mortalmente. Tevoul tentou se erguer após o impacto, mas seu corpo dolorido o pôs no chão antes de alinhar os joelhos. Tomando sua arma como uma muleta, o mercenário fez nova tentativa, dessa vez com sucesso.
Ao ver sua presa fragilizada, a aranha correu na sua direção. Ao ver o mostro partir para lhe caçar, o soldado ruivo apertou a arma entre seus dedos. Preparou-se para uma peleja que já sabia do resultado. Estava com medo, mas evitava a emoção. Reconhecimento era menos importante para ele do que para Tadeu, mas ainda desejava um final lembrado pela luta.
“Então vai ser assim?”, pensou. “E eu com medo de um boi com ferrão na calda.”
O mercenário recordou-se dos momentos de missões passadas. Lembrou da rebelião da Javera que Tadeu tanto falava para lhe zombar, bem como de outras aventuras que só a vida de mercenário foi capaz de lhe proporcionar.
A criatura parou em frente ao soldado, com suas duas pernas em forma de ferrões erguidas. Enquanto um sorriso aparecia no rosto de Tevoul, sua mente aceitava o destino.
Um estampido rasgou o ar noturno. Assim como antes, a bala atravessou a criatura, mas a obrigou a voltar-se para o novo desafiante.
Tadeu havia rasgado um cartucho de papel com a boca e colocava a pólvora na caçoleta da arma fumaçante. Após isso, pôs pólvora e bala dentro do cano e golpeou a arma contra o chão.
— Enfrente alguém que esteja de pé, imunda!
Agindo por puro impulso, Tadeu engatilhou a espingarda e atirou outra vez conta o corpo ilusório. Ao ver o novo duelista, a coisa ignorou Tevoul, tornando seu foco para o soldado moreno.
Mesmo que chamar a atenção da coisa tivesse sido seu plano, a estratégia de Tadeu acabava ali. Nem havia passado em sua cabeça o que fazer depois de atrair o bicho para si.
A aranha correu na direção do soldado, mas um novo um disparo interrompeu sua carga. À sua esquerda, por trás de uma grossa camada de fumaça, Cefas segurava sua pistola descarregada. Ao seu lado, Leto, Alen e Laviel mostravam-se exaustos da peleja.
— Belo espetáculo com os soldados, desgraçada. Mas que tal enfrentar um capitão?
A criatura dividiu-se entre três possíveis vítimas. Estava indecisa em qual dos três escolher, alternando-se entre olhar para Tevoul, Tadeu e Cefas. Os guerreiros da Noligre, por sua vez, tentavam cada um atrair a atenção da criatura para salvar seus colegas.
Mas a dúvida da criatura encerrou-se logo. Ao voltar-se novamente para Tevoul, tomou a decisão de ir para o mais enfraquecido dos três e disparou em sua direção.
Cefas e Tadeu insultaram a aranha na vã tentativa de salvar o ruivo. O soldado viu a reação dos colegas e sorriu. Naquele instante, sentiu-se grato por ter tido companheiros tão leais. Mais uma vez, apertou seu mosquete com força para lutar, por mais que já aceitasse o que viria.
A aranha causou um calafrio em Tevoul ao atravessar uma de suas pernas intocáveis pelo mercenário. Para o ruivo, foi como o toque de um fantasma. Sentiu cócegas partindo do seu pescoço para o resto do corpo, em um choque estranhamente agradável.
Quando acabou, sentiu uma pressão apertar sua cabeça, fazendo-o levar as mãos à cabeça. Após uma breve vertigem, tomou coragem para abrir os olhos.
Estava vivo. Seus colegas estavam largados no chão, porém, o cenário sangrento havia sumido. A aranha desapareceu junto de seu mestre maluco feito um pesadelo que cessa ao acordar.
Trotes de um cavalo apressado ecoaram pela noite. Os soldados procuraram pela fonte do barulho e, ao olhar para a estrada, viram um alazão negro cortar as trevas a todo galope. Suas pisadas lançavam lama para o alto enquanto seus músculos faziam todo esforço possível para tirar seu dono do campo de batalha.
Atrás do cavaleiro, voavam as madeixas de uma criança loira.