A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 12
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- Capítulo 12 - “Somos os mortos; ainda há poucos dias, vivos”
A lua iluminou o campo de batalha, destacando a pele pálida dos corpos ao redor da estrada. Apenas seis homens haviam sobrevivido ao ataque. A tropa se agrupou após a derrota, cada um tentando se pôr de pé à sua maneira.
Mortos os cercavam por todos os lados, mas a visão sangrenta havia desaparecido. De uma maneira bizarra, os cadáveres estavam intactos, sem qualquer ferida ou sangue. Deitavam-se com as pálpebras fechadas, similar a anciões que falecem em seu sono. Exalavam uma estranha sensação de paz.
— Isso não faz o menor sentido! — gritou Leto. — Tinha sangue e braços por toda parte, mas todos estão inteiros!
— Tudo parou de fazer sentido no momento que a aranha feriu o primeiro de nós, cabo — disse Cefas. — Ilusões não deveriam conseguir machucar alguém, são truques da mente.
Do outro lado da rua, Tadeu, Tevoul e Alen examinavam um dos caídos. Foi fácil reconhecê-lo, uma vez que a cena do soldado empalado pela perna do monstro ainda amaldiçoava suas mentes.
Eles tinham memórias claras do imenso furo em seu torso, porém, assim como o resto, seu corpo estava imaculado. Qualquer sinal da ferida que o matou desapareceu junto da sua assassina.
— Que maluquice… — Alen comentou. — Será que a barriga dele tá inteira?
— Não, isso deve ser um truque também — Tevoul concluiu. Ele pôs a mão no queixo e, depois de pensar no que fazer, encarou o colega. — Deve ter uma ferida no lugar onde ele foi acertado. Abra o uniforme dele.
Alen fez uma cara de nojo. Ele encarou o ruivo com o rosto vacilante, o que lhe causou estranheza. Mesmo que o corpo parecesse intacto, o soldado tinha esgotado sua cota diária de sangue após o combate.
— Não sei se quero correr o risco de ver as tripas do defunto — Alen tentou rir enquanto coçava a cabeça.
Ele fitou Tevoul. Quase caiu para trás ao ver o soldado com a testa franzida e os dedos impacientes. Em um último esforço, buscou ajuda para Tadeu, que revirou os olhos.
— Francamente… — resmungou o mercenário moreno.
Tadeu se pôs ao lado direito do cadáver e abriu os primeiros botões do uniforme verde. Enquanto o fazia, mirou a vista para Alen, que olhava a direção oposta.
“Por que quis ser soldado, então?”
Após a casaca verde, Tevoul o ajudou a desabotoar a camisa branca que o homem vestia por baixo. Assim como o uniforme, a peça de roupa estava intocada. Tiraram cada botão com cuidado e abriram os dois lados da veste.
Em vez da esperada imagem visceral, os dois viram a barriga do homem coberta por uma enorme mancha negra, similar a um hematoma. Veias enegrecidas estavam desenhadas ao redor da circunferência da ferida para o resto do seu corpo, como galhos de uma árvore que perdeu suas folhas.
— A donzela já pode olhar — Tevoul falou para Alen.
O mercenário ignorou o desrespeito e sentou-se ao lado de Tadeu. Logo começou a contemplar a ferida em estranho fascínio.
— É do tamanho do furo que aquela coisa fez.
— Será que é algum tipo de assinatura? — perguntou Tadeu.
— Não, isso é só como ela usa seu poder — respondeu Laviel, atraindo a atenção do trio. — A aranha não controla só a ilusão da vista, mas também o tato.
— Então é como se os nervos dele tivessem sentido a dor do golpe? — o ruivo perguntou e o cabo assentiu.
— Sim, as Filhas de Kolur matam dessa forma — O olhar de Laviel perdeu o rumo enquanto explicava. Sua voz soava amassada. — Quando a ilusão o feriu, ela causou dor suficiente para que morresse. Não importa o quão forte a vítima for, ela sentirá uma dor tão profunda que acabará morta.
Os três mercenários engoliram seco. Era um destino cruel o bastante para fazer o mais bravo dos homens se acovardar.
— Três Artes de feitiçaria diferentes?! — Cefas perguntou enquanto se aproximava. — Grandes mestres das Artes dos Primogênitos precisam de anos para controlar duas Artes e alguns ainda falham. Quer me dizer que uma criança consegue controlar perfeitamente três?!
— Não tenho que dizer nada, capitão. O senhor viu.
As palavras foram como uma facada no peito para o oficial. Ele escondia do resto, mas, desde o início da luta, lamentava ter duvidado do guia. Perguntava-se como teria sido diferente se ele lhe desse ouvidos na hora. Sua descrença havia custado a vida de seus homens, mesmo que indiretamente.
— Aquela pirralha… — Leto se mostrava possesso. — Eu vou matá-la. — Sua mão, segurando um sabre, começou a tremer. Tomado pela ira, arremessou a arma para a direção em que a garota escapou. — Eu vou te matar, pirralha imunda! Vou arrancar suas as tripas e a do desgraçado que você protege!
O cabo tomou um mosquete das mãos de um caído e andou em direção a rua. Ele puxou o gatilho, erguendo uma grossa nuvem de fumaça. Depois, jogou a arma contra o chão, quebrando a coronha.
O grupo arregalou os olhos ao ver o descontrole do praça. Cefas se levantou e o encarou com a face rígida.
— Leto! — exclamou. — Mantenha-se no seu lugar!
O cabo engoliu seco, tendo que pôr todo o seu ódio através da garganta.
“Esse homem não tem autocontrole?”, questionou-se o capitão. — Anote tudo o que viu aqui. O Conselho Republicano precisa saber o que aconteceu com o máximo de detalhes. Aproveite para falar com os outros sobreviventes e pegar a versão de cada um. Quero isso pronto em dois dias.
Leto detestava o papel de secretário, mas assentiu ao comando do capitão.
Cefas fechou a mão e apertou seus dedos até que doessem. Lastimava a morte de seus homens na mesma intensidade que amaldiçoava Astovi. Mesmo sem fazer ideia do tamanho da loucura do frade, o capitão tinha uma certeza: os próximos dias seriam dolorosos.
***
A noite cruel acabou com os primeiros raios de sol em Jorodar. Os mercenários da 4ª Companhia do 2º Batalhão mal conseguiram pregar seus olhos após o fatídico combate contra o frade e a garota, passando a maior parte da hora noturna acordados. Mesmo assim, mantiveram suas tarefas matinais no quartel.
Vestindo apenas a camisa branca, suas calças cinzas de serviço e suas botas negras, Tadeu varria um dos corredores da instalação regimental. Ele tentava se focar na sua tarefa, tentando ignorar o que aconteceu no dia anterior.
Tevoul se aproximou do colega vestindo o sobretudo de campanha bege da Noligre. Ao contrário de sua extroversão cotidiana, o mercenário mostrava uma face séria e abatida. Parecia ter ficado uma semana inteira sem pregar os olhos.
— Preferiria levar um tiro de mosquete do que ter que enfrentar uma coisa assim de novo — Tevoul comentou.
— Não sei do que você está falando, Tevoul. Todo mudo sabe que ilusões não podem nos ferir.
— Sem sarcasmo, Tadeu, hoje não. — Ele levou as mãos ao rosto e massageou os olhos. — Se eu ouvir alguém falar isso de novo, eu faço questão de atirar na testa do desgraçado.
— Boa sorte com o capitão Orleno. Foi ele que decidiu lutar com o frade.
— Eu sou um bom atirador, todo mundo elogia isso em mim. Com aquela testa expandida dele vai ficar até mais fácil.
Ao contrário de rir, Tadeu manteve-se ocupado com a vassoura. O ruivo já esperava tal reação. Ele sabia que o senso de humor de todos os mercenários demoraria a florescer outra vez.
— Posso ter dito isso, mas o capitão não tem culpa — Tadeu concluiu enquanto interrompia a limpeza. — Ele não tinha como saber que o frade faria algo daquele tipo. O beato que é o culpado.
— É, eu sei disso. Se bem que ele não agiu só. Ele teve uma assistente.
— A menina… — O jovem parou para refletir no que diria. — Só é uma ferramenta, não? Ela não fez nada enquanto ele não estalou os dedos. E também é só uma criança.
— Penso o mesmo. — Desviou o olhar para o lado. Assim como o amigo, parou para pensar melhor. — Sabe-se lá que tipo de experimento aquele frade fez pra ela ficar daquele jeito…
A dupla conhecia o religioso a pouco tempo, mas tinham motivos suficientes para detestá-lo. Sentiam que o beato era do tipo que usava tudo o que tinha para vencer. “Ética” era uma palavra que passava longe da mente de tal laia.
— Já tem alguma ideia pra onde a gente vai? — O ruivo mudou de assunto.
— Pelo pouco que me contaram, Carasovralo, a capital da República. Vão reorganizar as brigadas.
— Oh! —Tevoul se surpreendeu. — O marechal está mexendo seus pauzinhos, então?
— É o que todo mundo acha, mas parece que nós não vamos em campanha. Vamos ficar no II Corpo de Exército do general Rovibar.
— Aquele que conversou com a gente? — Tadeu confirmou com a cabeça. — Ele é um verdadeiro cavalheiro. Bem melhor do que ser comandado pelo tal do general Madro. Dizem que ele obriga os soldados a marcharem o dobro de um dia comum.
— Pois é. Juno deve ter preferido que um general mais calmo ficasse na capital, enquanto os sadistas vão com ele pra ofensiva.
— Demos sorte de ficar com o cavalheiro ao em vez do cavalo.
Os dois mercenários escutaram passos do fundo do corredor. Ao olhar para o lado, viram se aproximar um soldado vestido de uma barretina do exército leifanês e um sobretudo de campanha bege. Eles o reconheceram assim que puderam ver suas feições.
— Cabo Laviel. — Tadeu o cumprimentou sem formalismos. — Bom dia.
— Bom dia, soldado — respondeu com frieza. — Só estou passando para informá-los que o coronel está convocando todos para uma reunião antes do almoço. Se possível, repassem a informação.
— Pode deixar que a gente avisa.
Laviel acenou com a cabeça. Ele mostrou um sorriso educado e cumprimentou os dois soldados com leves tapas no braço. Após isso, com as costas arqueadas, partiu para informar o resto do regimento. Mantinha a feição abatida por onde passava.
— Credo, parece até que a aranha matou alguém da família dele.
— Talvez ele não tenha perdido alguém, Tevoul, mas algo dentro de si.
Tevoul ponderou sobre o comentário estranhamente poético. Concluiu que Tadeu estava certo.
— Vai ficar aí mesmo? Não preciso de plateia pra varrer um corredor.
Tadeu balançou a vassoura na direção do ruivo e lançou poeira em suas botas. Ele protestou contra a agressão com palavras delicadas para a mãe do colega, iniciando um cabo de guerra com o cabo da ferramenta.
“Parecem duas crianças”, Laviel pensou enquanto assistia a birra.
Um sorriso escapou ao ver os dois duelistas. Porém, ao olhar para o lado ainda sujo do corredor, seus olhos fraquejaram.
A poeira se amontoava no corredor. Enquanto isso, os que deveriam limpá-la disputavam por algo fútil, sem perceber a imundice ao seu redor. Em um estalo, o cabo da vassoura quebrou, derrubando-os no chão e espalhando a poeira por onde caíram, sujando suas vestes.
Em seu peito apertado, Laviel pensou se aquilo seria o que seu país se tornou.