A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 14
A companhia mercenária partiu no dia seguinte à reunião. Tanto Jorodar como Carasovralo eram cidades sob o controle republicano, bem como as vilas e estradas entre ambas, o que garantiu que a jornada de quinhentos quilômetros fosse tranquila.
No total, foram necessários dezessete dias para que a 3ª Brigada chegasse no coração da República e capital da nova ordem: Carasovralo. A cidade existia há mais de oito séculos, mas ganhou seu nome após tornar-se capital de um estado vassalo do czarado de Gilina, em homenagem ao czar Carasovi I.
O monarca odavita incentivou a construção de moradias e centros de comércio, o que, a princípio, soava como um ato benevolente, mas escondia suas intenções malditas. Em vez de povoada com nativos, gilineses ocuparam os novos assentamentos, além de tomarem a liderança local. Após isso, impuseram sua própria cultura e proibiram demonstrações de tradições e dialetos leifaneses, com o objetivo de impor a nacionalidade odavita.
Pela bravura dos homens ou pela benevolência dos deuses, senão ambos, Carasovi foi morto antes da consumação de seu plano nefasto. Seu império ruiu, fazendo de Gilina uma sombra da superpotência que já foi. Para a felicidade de Leifas, apenas os belos prédios avermelhados restaram do jugo do tirano.
A 3ª Brigada chegou em Carasovralo pela estrada principal da cidade. Sua entrada foi recebida por curiosos de todos os tipos, a maioria crianças que tentavam ver os soldados de perto. Também haviam senhoras de idade se benzendo ao ver os guerreiros, tanto para abençoá-los quanto para pedir proteção para si.
A dupla de mercenários, o moreno e o ruivo, marchava lado a lado no flanco esquerdo da coluna. Tadeu, em especial, parecia encantado pelos prédios de tijolos vermelho-coral.
— É uma bela cidade — falou para Tevoul —, bem diferente das de Gunere. Lá as pessoas costumam rebocar e pintar as casas em vez de deixar as paredes assim.
As construções de Carasovralo usavam pequenos blocos lisos de cor salmão. O cimento entre eles também era pintado, o que dava uma impressão menos rústica às faixadas da capital republicana.
— Você só acha essa cidade bonita porque você é um caipira, Tadeu. As cidades mais sujas de Mautinir são mais belas que isso.
O grupo de soldados marchava pela avenida com destino ao centro da cidade. Mesmo que faltasse pouco, Tadeu mal podia esperar para se livrar dos comentários do colega. Aguentá-los durante a viagem era o bastante.
— Você não disse que passou só a infância em Mautinir? Por que você vive falando bem de um lugar que você quase não pisou na vida?
O mercenário nunca entendeu tamanho afinco de Tevoul pela sua terra natal. Pelo que ouviu do amigo, ele viveu na pequena nação somente até os sete anos de idade.
— As pessoas daqui parecem estranhas… — o ruivo comentou.
“Porque você mudou de assunto?”, o soldado enrugou a testa. Ainda sim, ficou curioso.
— Como assim?
Tevoul apontou para a calçada à sua direita. Lá, dois homens, usando sobretudos marrons, conversavam com as bocas cobertas pelas mãos. Sondavam as pessoas ao seu redor a todo instante, matando o assunto sempre que alguém passava perto demais. Pareciam ocultar algo em suas vestes.
Um deles percebeu o olhar da dupla e avisou o outro, que, depois de alertado, afundou a cartola e saiu com pressa junto de seu comparsa. Ambos entraram na primeira viela lateral do quarteirão.
— Devem ser traficantes de alguma droga ou alguma coisa assim — Tadeu concluiu.
— É, deve ser isso mesmo. Ainda sim, estranho fazer isso nessa hora do dia.
Após Tevoul ter falado sobre a dupla, Tadeu ficou mais atento às movimentações estranhas. Podia ser impressão após o comentário, mas sentia que havia algo diferente no lugar.
Em uma rua entroncada na avenida, viu três homens tão misteriosos quanto a dupla correrem para se ocultar na população que assistia ao desfile. Mais à frente, notou um casal que conversava próximo a um café entrar no estabelecimento feito foragidos após os soldados se aproximarem.
Alguns metros depois, percebeu um homem em uma varanda, no segundo andar de um sobrado. Guardava uma pistola na cintura, arma que prontamente escondeu após o regimento mercenário passar em frente ao prédio.
“Por que parece que alguém vai morrer hoje?”, pensou.
Minutos depois, o regimento chegou na praça central de Carasovralo. Batalhões e companhias se dividiram em unidades menores, o que criou um breve caos entre os oficiais e suboficiais. Após o alvoroço, as tropas quebraram formação e tomaram áreas diferentes do espaço para si.
De longe, parecia que os mercenários estavam à passeio, muito por conta da beleza da pracinha. Seu pavimento era feito com pedras brancas de tamanhos distintos que formavam mosaicos circulares, alguns criando imagens de animais, outros imitando paisagens. Também era decorada com árvores e arbustos, dando um toque verde a selva de pedra.
Mas o encanto do local era destruído em seu centro. Lá, jaziam quatro guilhotinas sobre um cadafalso de dois metros de altura. Ninguém seria executado naquele dia, mas os homens que instalavam uma nova lâmina em uma das máquinas denunciavam um trabalho de manutenção. “Parar” não estava nos planos da República de Leifas.
A dupla olhava os instrumentos de matança com nojo. Ambos concordavam que execuções em público estragavam o ar elegante que a praça passava.
— Esse não parece o melhor lugar pra se armar essas coisas — comentou Tadeu.
Os dois tinham sido enviados pelo resto da esquadra para procurar por Leto. O cabo tinha uma mania de desaparecer, mas, desde a chegada do regimento mercenário na cidade, demorava mais que o normal. Além disso, seu desaparecimento antes do início das rondas poderia ser um problema.
— Verdade. Mas eles pagam nosso salário, Tadeu. Melhor guardar sua opinião pra poder receber em dia. — Tevoul deu meia volta e andou alguns passos. Ao ver que seu parceiro não o acompanhava, virou-se para ele. — Aqui ele não está. Melhor a gente voltar antes que ele chegue e comece a gritar que não começamos a bendita ronda.
Tadeu assentiu e apressou o passo para acompanhá-lo. Os dois caminharam em direção à zona oeste da praça, local onde o 2º Batalhão estacionou desde a chegada. Como a tropa estava fragmentada após a divisão, tiveram dificuldades para achar seus colegas de esquadra.
Após alguns minutos de procura, encontraram a unidade sob a sombra de uma árvore. Os soldados estavam sentados em bancos ou deitados na grama, sem qualquer respeito pelos avisos para não pisar escritos em língua estrangeira.
A formação era bem diferente da que Leto comandava dias antes. A maioria de seus soldados foi vitimada na luta contra o frade Astovi, deixando apenas cinco dos seus homens originais — Tadeu, Tevoul, Alen, o cabo Leto e seu segundo em comando, Dario.
Alen estava deitado debaixo da penumbra do vidoeiro, levantando-se com pressa ao perceber os dois amigos. Mostrava um sorriso largo.
— Até que foi rápido o passeio matinal!
— Não seria demorado se Leto aparecesse — Tadeu respondeu sem dar corda para a piada. Ele caminhou até o companheiro e parou antes que sua bota tocasse a grama. — Procuramos no 1º Batalhão inteiro. Perguntamos até ao major Idavir se ele tinha visto o cabo.
— E nada?
Os dois negaram com a cabeça. Tevoul aproveitou para despir-se do mosquete e da caixa de munição, apoiando-os em um banco.
— Está com o capitão Orleno — intrometeu-se um homem que se aproximava, chamando a atenção do trio. Dario, o segundo em comando. — O oficial chamou os cabos para dividir as patrulhas. Como ambos ainda tinha assuntos para tratar, ele preferiu que eu passasse o recado.
— Ah, pelo menos isso! — Alen soou zangado, mas satisfeito.
— Onde que nós vamos brincar de policial? — um dos homens da esquadra perguntou.
— Vai ser em um bairro do oeste da cidade, nos subúrbios. É uma área residencial um pouco afastada do centro, então tentem se comportar.
— Mais alguém vai além da nossa esquadra? — perguntou Tadeu.
— Não. O major Doni prefere que o 2º Batalhão fique pelo centro, então só três das esquadras vão rondar fora dessa área. — Dario puxou um relógio de bolso. — Já são dez. Acho melhor a gente se apressar em almoçar.
Ao contrário do que acontecia com Leto, ninguém protestou ao comando de Dario. O grupo de onze homens preparou o almoço ainda na praça, aproveitando dos legumes que sobraram da viagem para fazer uma sopa. O gosto era medíocre, mas dava para o gasto.
Depois da refeição, a esquadra marchou até o lugar designado, chegando pouco antes do meio dia. Dario ordenou que se dividissem em grupos de tamanhos variados, permitindo que a tropa fosse livre para montar as patrulhas da maneira preferida.
Tadeu, Tevoul e Alen, como de costume, fizeram sua própria formação. O trio estacionou perto de uma casa de dois andares com um jardim na varanda, com suas plantas formando uma espécie de guarda-sol que projetava uma sombra agradável.
O ruivo se ajeitou debaixo da sombra e largou seu equipamento. Ele estendeu suas pernas pela calçada, tapando a passagem de qualquer um que estivesse andando pelo lugar.
— Finalmente… Um pouco de descanso. — Ele pôs suas mãos detrás da cabeça. — Cefas está muito enganado em achar que alguém é louco de ficar rondando uma cidade depois de três semanas marchando.
Tadeu o copiou, mas evitou pôr os pés no caminho de possíveis pedestres. Também preferiu manter sua arma e munição ao seu alcance. Depois de se sentar, notou que Alen ainda estava de pé.
— Não vai sentar?
— Vou ter que ir. — O rapaz de cabelo castanho-avermelhado balançou a cabeça em negação. — Lembrei agora que combinei de acompanhar outros dois da esquadra enquanto eles não se acostumam com o novo comandante. Vou ter que procurar eles.
— Então é verdade que eles vieram do 1º Batalhão. — Tadeu soou surpreso. — Achei que iam dar um jeito de usarem gente do 2º mesmo.
— Não deu, o major Doni não quis. Parece que o 1º Batalhão tem quase quarenta soldados a mais, então tentaram dar uma equilibrada. — Ele balançou o braço na direção dos dois. — Enfim, vou indo. Tentem não morrer!
Tadeu e Tevoul se despediram de Alen, que saiu correndo enquanto acenava com a mão.
— Por que ele sempre evita ficar com a gente? Parece que o trio sempre se desfaz.
— Ele que tá certo. Qualquer um que passa tempo com você sabe que é uma péssima ideia.
— Olha quem fala… É você que espanta ele!
— Se isso te faz sentir melhor, então acredite.
Enquanto brigavam, o barulho de algo tombando os fez saltarem assustados. Depois, escutaram um felino chiar pelo beco, como se brigasse com outro. Ele disparou da viela para a rua principal, acompanhado pelo ressoar de vidro estraçalhado.
A dupla olhou para o lugar da origem do som onde o som, esperando pelo que teria feito aquilo.
— O que foi isso?
— Deve ter sido o gato, Tadeu, essas pragas sempre fazem isso.
Mesmo com a explicação do colega, Tadeu duvidava que o felino era o responsável pela bagunça. Ele lembrava dos movimentos esquisitos na rua. Dos estranhos de casaco. Do casal entrando no café. Do homem armado com uma pistola na varanda.
— Tem gente perigosa por toda essa cidade, Tevoul. Você viu comigo.
Tadeu levou o mosquete às mãos. Ele caminhou em passos lentos na direção do som, mesmo que seu amigo insistisse que era nada. Antes de entrar no beco, calou a baioneta.
— Eu vou entrar. Tá com a arma carregada? — perguntou enquanto rasgava um cartucho de papel com os dentes.
— Claro que não. — Tevoul desistiu de argumentar. Aborrecido, começou a carregar a espingarda.
Após aprontarem os dois mosquetes, Tadeu preparou-se para invadir o beco. Tevoul posicionou-se logo atrás dele, pronto para lhe dar suporte se necessário. O soldado moreno começou uma contagem gradual e, com a arma engatilhada, saltou para o beco no “três”.
Ele baixou o cano do mosquete para o lado oposto da viela, pronto para atirar. Contudo, para sua surpresa, estava vazia. Tudo o que havia no lugar era uma cômoda de madeira inchada da umidade, provavelmente descartada por algum morador, perto de vidro estilhaçado.
Em cima do móvel desprezado, o delinquente de quatro patas. Era um belo gato preto de olhos verdes. Estava deitado, lambendo sua pata sobre os escombros do que ele teria destruído.
— Não disse? Só um gato.
Tadeu caminhou até o felino negro. Ele encostou o mosquete na parede ao lado e começou a afagar o bichano pelo pescoço. O gato aceitou bem, acariciando a mão do mercenário com a sua cabeça enquanto ronronava.
— Você é bem tranquilo pra um gato de rua — disse com um sorriso. — Ele não tem força pra derrubar essa cômoda sozinho, deve ter sido outra coisa.
— A cômoda poderia estar desequilibrada, Tadeu. Pare de dar importância pra…
Tevoul empalideceu quando viu um vulto atravessar o beco, também assustando seu parceiro. Ambos se entreolharam, voltando sua atenção para o fim da ruela outra vez. O gato arrupiou a pelagem e fugiu o mais rápido que pode, abandonando-os a própria sorte.
— Ainda acha que é um gato?
O ruivo preferiu o silêncio. Tadeu tomou sua arma e caminhou com cautela até a curva do beco, aprontando-se para outro ataque. Por um instante, vacilou em entrar. Seu amigo estava o acompanhando de perto, já com seu mosquete em mãos. Ele expirou e, com um salto, entrou na esquina.
Seu dedo quase puxou o gatilho, mas o medo o segurou. Do outro lado da viela, a dupla assistiu os cabelos loiros de uma desconhecida balançarem ao vento, voando para outra ruela em uma fuga apressada.
Os soldados engoliram seco enquanto os passos da corrida ressoavam, distanciando-se. Por um momento, a imagem da assombração que quase os matou na maldita noite invadiu sua imaginação.
— Tadeu…
— Temos que ir. — Tentou dizer palavras firmes, porém com um tom relutante. — Nós… temos que ir.
Os dois dispararam para a rua estreita, mas a encontraram vazia. Começaram uma busca o ser misterioso por todas as vielas e becos daquela vereda, porém, seja lá o que fosse, parecia ter desaparecido por completo.
Após minutos de procura, os mercenários desembocaram em uma avenida movimentada. Tadeu olhou para os lados, buscando algum sinal do vulto perseguido. Olhou em cada rosto que andava pela rua, sem sucesso.
Porém, do outro lado da rua, em meio a uma dúzia de outros, o mercenário cerrou os olhos para um homem familiar. Era um sujeito baixo e vestia um sobretudo cinza. Tinha pouco cabelo, reduzindo-se a uma faixa negra que ia de uma orelha à outra.
“Frade?!”, o soldado se espantou.
— Tevoul, eu achei…
Antes de chamar seu amigo, Tadeu sentiu seu braço esquerdo acochar. Foi puxado com tanta força que sentiu seu ombro doer, quase tropeçando em seus próprios pés enquanto girava.
Uma mão lhe esbofeteou a bochecha antes de qualquer reação. A agressora, uma mulher, nos seus trinta e poucos, gritava com ele xingamentos incompreensíveis. Ela agitava seu braço enquanto lhe ameaçava com um segundo tapa, impedindo que o rapaz pudesse elaborar um plano para sair da situação.
Agarrando a saia da mulher raivosa, uma criança de cabelos loiros e lisos chorava enquanto apontava para a dupla. Pelo tamanho, não devia ter mais de seis anos.
— Parece que é a mãe dela — Tevoul comentou enquanto desviava o olhar.
“Então era só uma pirralha perdida?”, pensou enquanto tentava se desvincilhar da senhora.
O soldado olhou outra vez para a rua. Do outro lado, viu a figura misteriosa andar em direção a um poste, olhando para os lados alternadamente, com o passo apressado. Os pedestres se amontoaram entre ele e o desconhecido até que fosse impossível vê-lo. Quando a multidão se desfez, o homem já havia partido.
Ao mesmo tempo que a mulher chacoalhava seu casaco, a dúvida se ascendeu na mente de Tadeu. Não era só uma pirralha perdida.