A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 18
Sentada atrás de um caixote de frutas, fazia meia hora que Luci estava naquela rua fétida e suja de esgoto, tão apertada que mal se podia passar uma carroça. Se aqueles dias eram difíceis para um leifanês, quanto mais para uma aventureira feito ela, sem ter onde cair morta.
A moça acariciava o mosquete de infantaria que roubou de um velho no começo do levante. Segurou a risada ao lembrar de como ele gritou que “era um veterano da sucessão da Cistarra e ainda sabia usar um desses!” antes de ser derrubado por uma paulada. Talvez a primeira parte da frase fosse verdade.
— Leifas, Leifas… Já fui para muito lugar abandonado pelos deuses, mas você de longe é o campeão.
A jovem havia percorrido quase todo o Leste, indo de nação em nação, escondida entre caravanas de comerciantes e de emigrantes. Quando a revolta estourou, tudo que pensou foi em se proteger da leva que invadira o parlamento.
Para seu azar, a arma veio com pouca munição. Cinco cartuchos. Talvez seis, já que ela desconhecia se a espingarda tinha um disparo pronto no cano. Decidiu abrir o rastilho para ver se havia pólvora e encontrou uma porção pó negro na caçoleta. Parecia que ela tinha seis balas, afinal.
Contudo, enquanto esperava pelo fim da tempestade, escutou algo rastejar da rua principal para a viela em que se escondia, quase como um rato fugido de um predador. Os sons de seus passos descalços mostrou que não era um roedor qualquer.
Luci engatilhou a espingarda por completo e esperou, usando os caixotes de frutas como cobertura. Porém, ao apontar a arma, encontrou o oposto da hostilidade. Confusa, viu a menina assustada procurar por refúgio no beco, olhando constantemente para trás. Ao ver um engradado mais alto que ela, sentou-se e baixou a cabeça, segurando suas pernas em um abraço.
“Merda… Ela deve ter se perdido dos pais”, concluiu.
A errante lutou uma batalha mental. Sua posição era segura e, até aquele momento, estava imperturbada pelos vândalos nas ruas, mas instigava-se para ajudar a criança perdida. Algo na pequena clamava por socorro, mesmo sem que ela falasse.
Porém, antes que Luci pudesse agir, notou a menina ficar mais agitada após ouvir os passos de um grupo pela rua. Descobriu quem eram quase que de imediato: três homens de uniforme verde passavam pela rua principal, vasculhando tudo em sua volta.
“Homens do Sul?”
Luci também era nativa de Selamica. Tinha a pele bronzeada, mesmo que em um tom mais próximo do amarelo que do bronze. Também era dona de longos cabelos lisos e negros, além de e um corpo curvilíneo, características que escondia usando roupas masculinas e um largo chapéu marrom.
Mesmo que fossem conterrâneos, ela entendeu que buscavam a garota perdida. Também sabia que, se decidisse ajudá-la, seria incapaz de enfrentar um trio de soldados com um único tiro. Seu coração palpitou mais forte com a chance de enfrentá-los.
Um deles, o mais próximo a pequena rua, olhou para o lado. Mesmo se assustando, Luci sabia que ele não tinha a visto.
“Se eu atirar nele, eu teria tempo pra fugir”, pensou. “E quem sabe… ajudar ela.”
Ela prendeu a respiração. A massa de mira alinhou com seu olho direito enquanto o indicador flertava com o ferro frio do gatilho.
O homem atraiu a atenção dos dois colegas para a viela, mostrando-lhes os barris e caixotes. Ele apontou de caixa em caixa, até seu dedo cair sobre a que Luci se escondia.
O coração da mulher parou em um piscar de olhos quando seus olhares se encontraram. Um espasmo de medo percorreu cada um de seus músculos. Seu dedo lhe traiu.
O estampido do tiro ressoou pela viela, a fumaça espalhando-se como a neblina de inverno. Quando o eco cessou, um grunhido de dor se ergueu do ferido.
— Venha! — Luci gritou no meio do fumo para a menina assustada, que não viu opção melhor que segui-la.
O soldado soltou a arma e agarrou o braço no local da ferida.
— Alen! — Tadeu gritou ao socorro do colega. Tevoul correu para o beco, esgueirou-se pela esquina e disparou sem qualquer precisão em meio a fumaça.
— Estou bem, estou bem! — disse o soldado, sentando-se no chão. — Pegou de raspão.
O ruivo apanhou o mosquete derrubado por Alen e atirou outra vez. Enquanto isso, Tadeu arrancou a gravata do pescoço e improvisou um curativo. O mercenário teve sorte: o tiro mal rasgou por cima da pele.
— Ainda sim, é bom um médico olhar isso, caso um pedaço de chumbo tenha ficado — explicou. “Maldito Leto, ele vai matar todos nós se continuar assim!”
— Soldado! — O cabo gritou de longe. — A garota está aí?
“Falando no miserável… Nem para se importar com o ferido.”
— Tiro de raspão no braço direito, poderia ser pior. Acho que ainda vai precisar de um doutor.
— Quantos foram?
— Um rebelde de tocaia. É bom ter cuidado, eles estão a espreita por vielas como essa. Tevoul!
O soldado virou sua atenção para o companheiro enquanto tirava a vareta do cano da arma.
— Nós vamos atrás do miserável, a pirralha deve…
— Não, Leto — Tadeu disse com firmeza, tomando sua espingarda pela bandoleira. — Ele está só, eu e o Tevoul damos conta. Leve o Alen para a segurança.
Mesmo sem querer interromper a busca, Leto forçou-se a deixá-los caçarem o rebelde. Outra dupla de mercenários chegou poucos instantes depois e ajudou o ferido a se erguer, por mais que ele dissesse que podia andar sozinho.
Ao mesmo tempo que o grupo se dividia, outros três soldados mantiveram a busca pela menina, cortando pela rua principal.
***
Após correrem o mais rápido que podiam, escondidas por trás de múltiplas sacas de trigo, a dupla se abrigou em um dos galpões da feira da cidade, vazio desde o início da revolta.
Luci olhou para o teto do armazém em uma tentativa de se acalmar após a experiência no beco. Agora com cinco balas e procurada por soldados, questionava-se das suas decisões.
— Tantos lugares para eu ir e eu vim para essa bosta de país! — ela gritou, socando o chão com força.
A menina olhou para sua salvadora com a mesma confusão de um bebê ao observar a conversa entre dois adultos. Luci estranhou a reação, mas logo entendeu o motivo.
— Ah, você é daqui, né? Não entende a minha língua.
— Quem é você? — foi o pouco que Luci entendeu da pergunta.
— Meu nome é Luci, sou de Olúmia — respondeu em tautanês, quase como uma professora ensinando uma turma.
— Do Sul?
— Sim, sim. Não pergunte como eu parei aqui, é uma história que você não vai querer ouvir. — Após uma risada esquisita, Luci golpeou as costas contra a mercadoria empacotada, como se estivesse exausta.
A garota continuou a vislumbrar a nova companheira, que se esqueceu outra vez de falar em sua língua.
— E você, qual o seu nome?
— Igri.
— Belo nome, é em homenagem a feiticeira?
A garota respondeu que sim, balançando a cabeça. Luci sorriu para a menina e recebeu outro como resposta. Ela quis perguntar o porquê daqueles homens estarem a perseguindo, mas preferiu manter as perguntas para depois.
“Aqueles soldados devem estar atrás de nós”, pensou enquanto tirava um cartucho da bolsa roubada. Ela o rasgou com os dentes e iniciou o lento processo de recarga. “Mas a gente vai ter que dar um jeito.”
Depois de quase matar a ela e a nova parceira, Luci notou que sequer tinha um plano. Tudo o que pensou foi em ajudar Igri e, sem querer, entrou em conflito com forças locais. Era tão cômico quanto frustrante.
Contudo, ainda precisava de uma saída. Como estava há pouco tempo na cidade, optou por perguntar para a única pessoa que podia lhe dar alguma informação, mesmo sem esperar uma resposta.
— Sabe dizer se tem um lugar mais tranquilo na cidade?
Quando fitou a garota, notou que sua expressão se transformou. As pupilas de Igri estavam contraídas, apesar da escuridão no interior do armazém. Ofegava. Sua mão esquerda tremia enquanto fazia movimentos erráticos com os dedos, quase enlaçando-os em um sufocante nó.
Luci se contraiu em medo. Um pavor irracional a fez pensar em fugir, mas manteve-se firme.
— Tá… Tá tudo bem, Igri?
A menina voltou-se para ela com os olhos esbugalhados feito os de uma coruja.
— Ele… Ele está… aqui.
— Aqueles homens que estavam atrás de você?
— Não — disse a menina. — Mestre.
Luci escutou passos se aproximando. Não havia o mínimo de discrição. Sem tardar, ela engatilhou a arma e se aprontou para o possível confronto. Tentou se esticar para vê-lo, mas optou por esperar o momento certo para o disparo.
Igri agitava-se mais à medida que a pisada se aproximava. O intruso estalava os dedos no ritmo de uma estranha música. A mão direita da garota parou de mover-se em desordem e começou a copiar a melodia do seu chamado Mestre.
— Igri! Igri! Apareça, minha filha! — falou uma voz masculina.
A menina tentou se levantar, logo puxada de volta para o chão por Luci.
Aquele homem fugia do ordinário. A garota loira continuou a se erguer, por mais que sua nova companheira a impedisse. A moça agarrou a mão da parceira e implorou por calma até que ela se aquietasse.
“Isso não vai funcionar.”
A forasteira do sul apertou o mosquete roubado nas mãos e tomou cobertura por trás do trigo empilhado. De lá, viu a figura. Ao contrário dos soldados que as perseguiam, era um velho, de pele branca enrugada. Sem cabelo no topo de sua cabeça, o pouco que lhe restava percorria entre suas orelhas em uma faixa contínua. Além disso, tinha olhos azuis, com uma cicatriz cortando da sobrancelha direita até a testa.
Mas o que se destacava era o broche no seu peito esquerdo. Dourado e preto, era no formato de uma mão com um olho em sua palma. Servia à Igreja de Kolur.
— Eu já ouvi seus dedos estalarem, minha criança, venha comigo!
Luci desconhecia o porquê, mas sentia que o sujeito estava por trás da perturbação na mente da menina. Um parente? Ou um “Mestre”, seja lá o que isso fosse? Não fazia ideia. Só estava certa de uma coisa: aquele homem teria que cair.
O estampido rugiu pelo armazém com o clarão do cano cuspindo fogo. Por trás da fumaça e do som após o disparo, Luci escutou um grito de dor e, quando a neblina cinzenta dissipou, viu o estranho ajoelhado, com a mão sobre o peito direito. Dessa vez, ela acertou em cheio.
— Peguei ele, vamos!
Luci tomou a mão esquerda de Igri e correu em fuga, mas a garota não se mexeu. Estava paralisada. Ela tentou puxá-la pelo braço repetidas vezes, mas em nenhuma a menina se movia.
— Mas o que tem de errado com você, garota?! Será que…
A fala energética da sulista estragou quando ela encarou a direção que Igri apontava. A poucos passos de distância, o sujeito mostrava o máximo de seus dentes para a dupla, com uma garrucha em mãos.
Ele puxou o cão da pistola e a apontou para a jovem paralisada em descrença.
— Não é tão fácil pegar um ilusionista da Igreja desprevenido, sulista — Astovi disse enquanto seu olho esquerdo, em uma única piscada, tornou-se vermelho.
Igri balançava a cabeça em negação, escondendo-se atrás da perna direita de Luci.
— Eu atirei em você, por que não está morto?!
— Você atirou em nada, estrangeira. Eu estava aqui o tempo todo.
A moça cerrou os dentes. Mesmo que só tivesse a arma descarregada, colocou-se em prontidão para uma luta, usando seu corpo como escudo para a garota.
Outro disparo soou pelo galpão. A bala atingiu a parede ao lado do beato, errando o velho por menos de um palmo. Assustado, ele olhou para os lados com pressa, tentando decifrar de onde viera a bala.
Luci aproveitou a distração. Ela agarrou o mosquete pelo cano e atacou o velho com a coronha, acertando-lhe a testa.
O feiticeiro quase caiu com o golpe. Ainda com a pistola em mãos, tentou recuperar o equilíbrio, porém um segundo tiro lhe atravessou a canela. Dessa vez, seu gemido foi de dor genuína.
Mais passos ressoaram do outro lado do armazém, aproximando-se da ação.
— Belo tiro, Tevoul! — gritou uma voz à distância. — Vamos pegar o canalha!