A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 27
O grupo de bandidos apertou a dupla em direção ao lado direito da rua, forçando-as em um círculo cada vez menor. Luci tentou alcançar a mula para tomar uma arma escondida, mas um dos sujeitos a atacou com um porrete antes que pudesse fazer algo, obrigando-a a recuar.
— Eu deixo vocês levarem a mula, só não toquem na menina e em mim! — gritou enquanto recuperava o equilíbrio após o salto.
Para a miséria de Luci, foi como ter contado sua a melhor piada. Os homens riram da única coisa que ela poderia oferecer como moeda de troca enquanto brandiam suas armas pelo ar.
— Já dissemos que você paga com a vida hoje.
“Merda… Parece que vai ser do jeito difícil, então”, pensou Luci. Ela desviou a atenção para Igri, que estava apavorada. “Tomara que ela consiga sair disso.”
A moça avançou contra um dos homens com a machete, forçando-o a evadir o golpe. O ladrão contra-atacou com uma estocada de adaga, mas ela se salvou ao desviar a mão do homem com sua canhota, logo em seguida empurrando-o com toda a força para o chão.
Quando ele tombou, pôde notar que era mais forte e pesado do que imaginava.
“Merda… Se todos forem assim, eu não vou ter chance.”
Com um porrete, outro ladrão atacou pela sua esquerda. Luci tentou esquivar, mas foi acertada na coxa e quase caiu para trás. Enquanto ela se reequilibrava, ele desferiu outro golpe na sua canela, prostrando-a em um joelho. Com um sorriso macabro, levantou o porrete. Seria um golpe de misericórdia.
Vinda por trás, Igri empurrou sua perna, impedindo que ele a golpeasse. O ladrão se preparou para revidar com o porrete, mas uma sensação ardente atravessou-lhe o estômago antes que fizesse algo contra a pequena. Ao olhar para seu ventre, um palmo de ferro o furava. Sangue escorria da ferida.
O homem caiu como uma grande árvore com o caule cortado. A estocada era mortal. Sua vida escapou aos poucos do seu corpo.
— Saiam daqui! — Luci gritou enquanto tirava a arma da barriga do caído. — Eu já disse que deixo vocês levarem a mula!
— Você mata dois dos nossos e acha que vai sair viva? — perguntou um deles.
“Maldição!”, pensou a moça, já sabendo o que viria depois.
Ela enfrentara sua leva de gangues no passado e sabia bem como variavam na forma de agir. Alguns abandonavam seus parceiros só ao pensar na possibilidade da vítima reagir, enquanto outros eram quase uma irmandade, tratando cada membro como parte de uma família. Luci estava mais inclinada a pensar que o grupo estava mais para o segundo.
Ainda restavam três ladrões, todos sem nenhum interesse além da vingança. Ela sabia que sair dali viva seria um verdadeiro milagre. Olhou para Igri, que se escondia atrás de suas pernas, exprimindo a mesma face de medo de quando a encontrou da primeira vez. Com dor em seu peito, só havia uma coisa sensata a se fazer.
— Igri, saia daqui.
A menina olhou para a errante com os olhos ainda mais arregalados.
— Eu que causei a confusão. Corra e procure o velho da taverna de onde a gente saiu e diga o que aconteceu. Ele é meio maluco, mas te garanto que não vai fazer mal a você. Vá, agora!
Igri acenava “não” com a cabeça, agarrando a perna esquerda da colega com toda sua força. Era difícil para Luci. Ela pôs sua mão sobre o peito da menina e a empurrou para trás, na tentativa de afastá-la da luta.
O mais à esquerda correu em sua direção segurando uma clava de madeira com pontas de pregos. Ela reagiu e correu ao seu encontro. Ele tentou golpeá-la na cabeça, mas a forasteira abaixou antes que a arma acertasse sua testa e contra-atacou nas costelas do bandido, porém apenas de raspão.
Antes que ela pudesse recuperar o fôlego, os outros dois ladrões avançaram em sincronia por ambos os flancos. Ela desviou do primeiro, mas o segundo a acertou na barriga com o porrete. O uivo de dor e o tinir de sua arma contra o chão anunciou sua derrota.
Luci caiu com as mãos sobre a barriga. Sua face denunciava a dor descomunal. Tentou se levantar, mas, por algum motivo, não conseguia se pôr de pé, sentindo seu estômago na iminência de ser vomitado pra fora.
A errante olhou para os três homens, cada um segurando suas armas, todos mostrando seu sadismo e malícia na face. O que estava com a adaga e agia como o líder se aproveitou da situação, puxando-a pelos seus longos cabelos.
Ele a olhou bem, vendo sua pele olivada em um tom quase amarelo, cabelos lisos e brilhosos, além do seu par de olhos negros. Raspou a lâmina com delicadeza pelo pescoço da jovem que o arrancaria as tripas se não fosse a dor incapacitante que sentia.
— Qual o seu nome, princesa?
Luci cuspiu na cara do sujeito, que desfez o sorriso após a ofensa.
— Estava pensando em escrever seu nome no seu pescoço, para saberem quem você era, mas parece que você prefere ser uma indigente.
Ele pôs a adaga para atrás de seus ombros para dar o golpe mortal. Seus olhos arregalados mostravam uma luxúria por sangue incomum até para alguém da sua laia.
Luci olhava a arma do seu algoz com um sentimento entre o medo e a melancolia. Naquele momento a adaga desacelerou o tempo. Cada segundo durou horas.
— Solta ela.
O grupo de assaltantes desviou o olhar para trás, onde estava a menina. Os homens a ignoraram durante todo embate, porém a fala firme e implacável da criança provocou sua curiosidade.
Eles notaram que os olhos da garota estavam em duas cores distintas, mas fizeram pouco da estranheza. O que os chamou a atenção era como a sua faceta carecia de medo, tristeza ou desespero, apenas um olhar de pura ira. Se fosse em alguém mais velho, talvez até amedrontador.
— Vai embora, menina, deixa de ser burra! — Luci bradou em preocupação.
— E o que você pretende fazer se ele não soltar? — o bandido com o porrete disse, aproximando-se lentamente pela direita da pequena.
Em um instante, os ouvidos do homem foram inundados com gritos, pedidos de súplica e desespero infernal. Todos os demônios do inferno decidiram atormentá-lo. Sua vista foi invadida com milhares de almas sem pele e com olhos totalmente brancos que escalavam do chão para seu corpo, todas clamando por ajuda.
— Para… Para! Por favor, pare! — implorou o sujeito que soltou sua arma e recuava aos poucos.
Os berros infernais se intensificaram, fazendo-o gritar para os céus em um grunhido inumano. Ele sentiu a legião de almas desfiguradas lhe agarrarem por todos os lados, rasgando sua carne com unhas e dentes enquanto faziam uma pressão sufocante por todo o seu corpo, aos poucos lhe roubando o ar.
A dupla de bandidos assistiu o parceiro clamar por piedade sem ter como reagir. Ele arranhava seus braços e pernas a todo instante em uma tentativa de afastar um inimigo imaginário que subia por seus membros e torso, mas nada parecia livrá-lo do mal que o perturbava.
De repente, como o primeiro raio de sol faz com a escuridão no amanhecer, o tormento cessou. Ele se ajoelhou e se manteve imóvel. Seus olhos estavam saltados da cara e sua boca mantinha-se aberta e rígida. A face de alguém que viu almas que não caminham a terra há séculos.
O bandido tombou desacordado assim que a menina abaixou a mão. Ela permaneceu com a mesma face de antes, porém, desta vez, tomada pela escuridão que permeava os piores tiranos.
— A menina é uma feiticeira! — alertou o chefe do bando.
— Solta ela! — Igri gritou em um som agudo e penetrante.
Ambos tremeram com o brado que quase estourou seus ouvidos. Um deles, o que estava ferido na coxa, não pensou duas vezes e correu o mais rápido que pôde na direção oposta. O outro, que era o líder, tratou de logo repetir o gesto.
À frente da gangue, uma multidão de festeiros que deixara uma das tavernas se aglomerou adiante, ainda tão bêbados e desorientados quanto antes. Foi um alívio para a dupla. Se eles conseguissem se infiltrar em meio aos bebuns do gueto, seria mais difícil para a garota os achar.
Mas a reação foi oposta. A massa de boêmios entrou em pânico quando viram dois sujeitos armados correndo em sua direção. Homens e mulheres dispararam aos gritos para todos os lados, enquanto pessoas eram pisoteadas ao tentar fugir, com outras se escondendo em meio aos caixotes e barris nas ruas.
O caos foi instaurado pela dupla que sequer havia tentado produzir tal efeito. Ainda sim, a situação poderia ajudá-los. O barulho da multidão desesperada e sua desordem eram o lugar perfeito para dois criminosos se esconderem de tamanho horror que os seguia.
Contudo, assim que alcançaram a leva, o som parou. Os dois olharam para os lados, procurando alguém. Nada. A cidade fora varrida da face da terra. Ou talvez a própria terra tinha desaparecido. Em um piscar de olhos, todos os homens e mulheres nas ruas da cidade cessaram, junto dos prédios, do chão e de tudo em sua volta.
O que restou foi o vazio infinito por todas as direções em um tom azulado. O solo parecia água, mas, por algum motivo, não afundavam. Parecia-se com um lago imenso e inaufragável que refletia o céu, a lua, as estrelas e todos os astros do firmamento com perfeição.
— O que é isso?! Onde estamos?! — o homem que estava ferido perguntou, seu corpo tão trêmulo quanto o de alguém prestes a se encontrar com a morte.
Não haveria resposta. O líder dos assaltantes paralisou, sua boca incapaz de solucionar a pergunta. Seu corpo estava estático feito uma estátua. Com cuidado para não afundar, o ferido foi até o companheiro, tocando-lhe o braço. Frio como as águas mais profundas de um lago à noite.
— Chefe?
O sujeito viu o braço do parceiro mexer pouco tempo após o toque. Ele se estendeu para frente, com seu indicador trêmulo erguido para uma direção específica. Só agonia os esperava para onde o dedo apontou.
Ele olhou para o lado indicado pelo líder. Um arrepio correu da planta dos seus pés até osso mais alto da sua espinha. O dedo não fintava para alguém, mas para algo.
Ainda pequena na vista de ambos, uma criatura tão alta quanto a copa das árvores, com oito pernas espinhosas e a aparência de uma gigantesca tarântula. A aranha de Jorodar.