A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 29
Fridevi guiou o rapaz pelos corredores do andar superior. Eram tão bem cuidados quanto o salão, evidenciando que o esmero sindicalista era consistente para tudo que diferisse de uma fachada.
O nível de cima lembrou-o uma hospedagem. Tinha um charme único, com castiçais que iluminavam o espaço em uma luz sofisticada. Cada peça de velas era posicionada entre os diferentes quartos, havendo pelo menos meia dúzia deles em cada parede. O entorno era decorado com quadros, bules, xícaras de porcelana e bandejas de prata. Ao fim do corredor, um relógio de pêndulo.
Tadeu se aproximou de um vaso de porcelana com uma bela arte azul e se encantou por ele. Por um instante, esqueceu-se dos motivos que o levaram até ali.
“Essa coisa parece cara…”, ponderou enquanto se curvou ao redor do objeto.
Em seu dia a dia, Fridevi considerava o local uma visão agradável, mas o interesse adicional do mercenário o aborreceu profundamente. Uma única tossida ríspida foi suficiente para alertar o jovem.
— Viemos aqui para outra coisa! — A cara do sindicalista enrugou enquanto rosnava.
— Eh… O senhor também não disse qual era o quarto. — Tentou inventar uma desculpa.
— Se quebrar qualquer um dos meus conjuntos, paga com um braço, entendeu?! — O velho esbravejou. Deu as costas para o jovem e saiu com os pés martelando o chão. — Venha comigo.
Naquele instante, Tadeu agradeceu aos céus que o velho era incapaz de matar alguém com o olhar. Sentiu que seria mais arriscado se fosse o caso.
Os dois entraram no último quarto à esquerda do corredor. Quando Fridevi abriu a porta, revelou uma espécie de laboratório, repleto de vidros com substâncias esquisitas e tubos de ensaio preenchidos de químicos semiacabados.
Tadeu se manteve próximo da porta, obviamente amedrontado da ameaça anterior ao ver tanto vidro adiante. O sindicalista, por sua vez, foi até um armário empoeirado no fim do quarto.
— Pode vir até aqui, rapaz — falou enquanto tirava um molho de chaves exageradamente grandes do bolso.
O mercenário caminhou com os ombros encolhidos e parou ao lado do sujeito, que abriu o armário e procurou por algo em seu interior. O rapaz retirou a bolsa de munição e a pôs delicadamente sobre o balcão.
— Achei! — Fridevi se alegrou ao tirar a larga caixa do topo. — Essas são as armas de madeira.
O velho largou o baú antes de encostá-lo na mesa, fazendo todos os vidros chacoalharem. Tadeu foi forçado a dar dois passos para trás ao ver um líquido amarelado vazar de um copo e quase acertar sua perna. A substância produziu fumaça ao tocar o carpete, consumindo-o como ácido em metal.
— Aquele cuidado todo só vale pra mim!?
— Eu sou o dono, faço o que quiser com o que comprei! — Fridevi se revoltou com a fala do mercenário. Parecia até que o acusara de hipocrisia.
Ele foi outra vez ao armário e retirou uma nova caixa, dessa vez feita de cobre.
— Mas o mais importante é isso — disse com nostalgia na voz.
Ele a abriu com cuidado, revelando uma coleção de pedrinhas perfeitamente redondas, cada uma de um tamanho distinto.
— Procure as que podem ser úteis para você — falou com um sorriso.
— Obrigado, senhor.
Tadeu tirou uma das balas de chumbo dos cartuchos de papel e procurou por pedras de tamanho parecido, comparando-a com cada uma das que Fridevi guardava. No total, encontrou três que serviriam. Ele trocou três projéteis pelas bolinhas e refez cada cartucho com cuidado.
“Porcaria, só três cabem no cano do mosquete. Tevoul vai ter que ficar sem”, lamentou em sua mente.
— Acabei! — Tadeu disse enquanto vestia outra vez a bolsa de munição.
— Ótimo! Poderia ir na frente com a caixa grande? Já estou um pouco velho para ficar levando peso.
Tadeu confirmou com a cabeça e tomou o baú com as armas de madeira, retirando-se em passos calmos. Contudo, ao cruzar a porta, sentiu algo estranho. Fridevi não o acompanhava. O velho permaneceu admirando a caixinha de pedras com um sorriso pesado.
— Era de alguém? — questionou, chamando-lhe a atenção. — Se o senhor não quiser que eu use, pode ficar com elas, eu não vejo problema.
O homem fechou a caixa e tratou de desconversar com pressa.
— Não se preocupe. — Tentou olhar para o teto. — O dono da coleção já não pode mais se importar com ela.
***
No andar de baixo, Levias discutiu com o resto da trupe sobre a situação. Marí e Tevoul passaram detalhes a todo instante para formular uma nova estratégia, informando o pouco que sabiam da garota e detalhes adicionais sobre o que o Conselho Republicano os exigira.
Porém, do lado oposto da mesa, a quietude de Nico quebrou-se aos poucos. A faceta carrancuda mostrava insatisfação crescente, mesmo sem externalizar exatamente o que o incomodava.
— O que vocês têm de suprimentos? Alguma arma especial? — Levias voltou a interrogar o grupo.
— Tudo que a gente tem é munição e algumas espadas — Tevoul respondeu.
— Ótimo, vamos levar alguns dos nossos garotos conosco e deve ser o suficiente. Agora, é só esperar por Fridevi.
Levias se levantou da cadeira com sua elegância rotineira, mas, antes que pudesse prosseguir, sentiu uma mão lhe tocar o ombro com uma firmeza incomodada. Nico.
— Posso saber o que desejas, cavalheiro?
— Não se faz de sonso, moleque. Para de bancar o líder.
— Não entendo tua indignação, senhor. Poderia explicá-la de maneira mais sucinta?
“Por que esse cabeça de macarrão não pode falar que nem gente?”, pensou Nico. O formalismo de Levias lhe doía na alma.
— É fácil entender, queixo de facão. Sou eu que tenho que pegar a menina e levar ela até o Conselho pra me safar da corte marcial. Eu e os meus coleguinhas. Tirando a de cabelo de tomate ali, vocês do Sindicato devem ter suas razões próprias pra tomar a pirralha, não acha? Que garantia eu tenho que vocês não vão matar a gente assim que ela for presa?
Apesar do major pouco ter colaborado até ali, sua desconfiança era sábia. Ele estranhou a gentileza sindicalista desde o princípio. Para ele, era óbvio que a cooperação escondia algo debaixo da cordialidade.
— Ah, está com medo de que tomemos a menina para nós, não é? É um motivo válido, admito. Bem, dependerá das intenções da República. Se nós sentirmos que o regime de Carasovralo tem objetivos mais nobres que a monarquia, que é usar a Filha de Kolur como arma, então…
— “Então” uma merda! Não sou imbecil de confiar em criminosos como vocês do Sindicato.
Um sorriso surgiu no canto da boca de Levias.
— Não foste tu que quase sujou as calças quando viu os Executores e a mulher asteni? Faça-me um favor.
— Ora, seu…
Com o orgulho ferido, Nico puxou o ombro de Levias e socou-lhe na altura da bochecha direita. O loiro esquivou-se graciosamente, agarrando o braço direito do oficial e chutando-lhe a canela, pondo o homem de joelhos.
O sindicalista tirou a luva da mão destra com a boca, expondo seu polegar. Pôs o dedo entre os dois olhos do major sem o tocar.
— Aquele Executor que derrubei tem uma vida engraçada: casou aos vinte e cinco com uma mulher de dezoito. A coitada acredita que ele é íntegro e um bom pai para seus dois filhos, um casal. Infelizmente, ela desconhece que ele passa as noites da sexta-feira bem longe do serviço na Igreja, em um dos bordéis mais famosos da cidade, com todo tipo de mulher da vida. O lugar não é lá o meu gosto, acho um tanto pútrido.
— Larga o meu braço, infeliz!
— Levias, não há necessidade para isso — Marí interveio. — Ele pode ser um pouco bruto, mas tem razão em desconfiar.
— Desculpe-me, Constanikaya, mas não há desculpa para falta de educação. Além disso, estou curioso para saber que segredos essa mente raivosa guarda.
O polegar do loiro se aproximou da testa do ex-oficial feito um felino encurtando a distância da presa.
— Achamos! — gritou Fridevi, acompanhado por Tadeu.
O velho viu a situação do topo das escadas. Um tanto assustado, nenhum um pouco surpreso.
— Chegaste em boa hora! — Levias soltou Nico, virando-se com um sorriso para o velho anfitrião. — Já me resolvi com o nobre cavalheiro aqui sobre quem deve liderar a busca pela garota. No fim das contas, parece que serei eu!
Fridevi expirou em aceitação. “Eu mereço”, pensou.
O homem desceu os degraus com calma e se dirigiu ao grupo. Além de Tadeu, os dois homens que estavam com as carabinas os acompanharam, dessa vez armados com bestas e setas de madeira.
Tadeu pôs a caixa sobre a mesma mesa em que o grupo se reuniu. Enquanto isso, Fridevi tirou do bolso o mesmo molho de chaves de antes e destrancou o bauzinho, fazendo força extra para desemperrar a chave torta.
A caixa empoeirada guardava uma série de armas de madeira, na forma de facas, porretes e estacas, além de uma dúzia de setas de madeira.
— Pelo controle dos metais e pele negra — O velho passou as setas de madeira aos dois besteiros —, acho que não resta dúvidas que ela é uma Capacitada da Bênção de Haftar, do Morto e Tocável. Ela pode controlar os metais, o que é um problema para qualquer arma comum. Mas, se usarmos armas de madeira, ela não terá como manipulá-las, uma vez que são feitas de material originado de um ser vivo.
— Vocês têm uma caixa para cada tipo de magia? — Tevoul perguntou para Marí.
— Só não para a do Morto e Intocável, uma vez que ela é… intocável. E morta.
— Até que faz sentido.
— Enfim — Levias mudou o assunto —, sabemos que a mulher busca a garota, assim como vós. Precisamos saber de tudo sobre ela: nome, onde está hospedada, grau na hierarquia da Igreja, tudo. Será a nossa…
Múltiplos gritos de uma multidão em fuga interromperam a fala do loiro. Os anfitriões encararam a saída e dispararam para a porta do prédio, acompanhados logo atrás pelo restante do grupo.
Fridevi abriu a porta e correu para o exterior. Viu pessoas em fuga pela rua, atropelando umas as outras por suas vidas em um alvoroço desordenado. Seu coração apertou como em um infarto. Um frio espinhoso subiu pela sua coluna até o pescoço. Ele olhou para Levias e Marí e viu com clareza que sentiram o mesmo.
Tadeu e Tevoul não sentiram tal golpe no peito, mas uma angústia profunda e sufocante em suas gargantas que arrepiou os pelos em seus braços. A mesma do dia que aquela coisa ceifou a vida de seus colegas.
— Aquela maldita noite… — O ruivo fitou os olhos preocupados de Tadeu.
— Hoje vai ser o mesmo.