A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 30
— Ela está por aqui! — gritou o velho. — Precisamos encontrá-la antes da asteni!
— Que infernos… Não poderia esperar um pouco mais para explodir? — O loiro se voltou aos outros sindicalistas. — Zhilanki, Fiodor — depois, apontou para a dupla de besteiros —, vocês dois, venham conosco!
Os grupos se juntaram e partiram na direção contrária à multidão polvorosa. Cada um levava suas armas convencionais e uma das de madeira que Fridevi guardara na caixa para o caso da feiticeira dos metais retornasse. Mesmo que fossem de um material pouco inspirado, eram bem elaboradas, parecendo-se mais com maças do que com bastões simples. Um golpe daquilo faria bem mais que hematomas.
Nenhum tinha ideia de como enfrentariam a Filha de Kolur. Tadeu e Tevoul experienciaram como era lutar contra a fera ou, pelo menos, de como serem humilhados por ela. Os outros sabiam bem menos. Tudo que discerniam vinha de descrições feitas pela dupla mercenária, muitas vezes vagas. Também aprenderam nas histórias da guerra do Intocável, quando eram usadas como armas pelos exércitos de Gilina, mas nada que fosse concreto o suficiente para um plano de ação.
A massa de bêbados cresceu conforme o grupo avançou. Era densa de tal forma que a trupe da República e os membros do Sindicato mal conseguiam atravessá-la, lutando contra uma maré que tentava salvar suas vidas a todo custo.
Nos poucos passos em que conseguia avançar, Tevoul tinha que se dividir entre a marcha e empurrões, aguentando cada golpe inconsciente vindo dos fujões. Em um olhar errante para a multidão, notou que não estava só. Outra pessoa tentava romper a massa de desesperados, se entrelaçando em meio a multidão. Ainda mais estranho: não era do seu grupo ou do Sindicato.
Forçou a vista no escuro da noite e finalmente a reconheceu. A mulher que fugiu com a garota no dia que eles foram presos.
— Tadeu! — ele gritou procurando o companheiro. — Olha ali!
O jovem procurou o colega em meio aos bebuns, levantando o pescoço em meio ao mar de cabeças para achá-lo. O ruivo apontou para algum lugar às suas direitas. Também reconheceu a forasteira quando seus olhos caíram sobre ela.
— Ei, você! — exclamou para a moça.
Instintivamente, Luci olhou para trás ao reconhecer a voz. Viu os dois mercenários correrem em sua direção, sem saber se devia fugir ou se sentir aliviada.
Ambos pararam diante dela poucos instantes depois.
— O que houve? Onde está a garota? — Tadeu demonstrou pressa.
— Eu… Uns ladrões atacaram nós duas. Eles tentaram nos roubar, mas aí ela… virou aquilo.
Os dois mercenários se entreolharam. Sabiam perfeitamente o que ela se referia com “aquilo”.
— Eles te machucaram?
— Não, não, não foi nada grave… — A forasteira estava abalada. Olhava de um lado ao outro como um perdido. — Ela parou eles antes.
— Fique aqui, nós vamos atrás da menina — Tadeu disse com firmeza e deu as costas para Luci.
— Eu vou junto! — Ela agarrou o antebraço do mercenário. — Acho que eu consigo fazer ela voltar ao normal se tentar.
O rapaz olhou bem para a moça que sequer sabia o nome. Em seus olhos existia um zelo inexplicável pela loirinha. Apesar de mal conhecer a garotinha, de quase ter morrido em Carasovralo por causa dela, de tê-la visto se transformar no monstro, a jovem ainda desejava seu bem.
Ele se lembrou do que os membros do Sindicato disseram sobre o que acontecia quando a garota perdia o controle. Fridevi descreveu de maneira clara. “Uma tragédia.”
— Pelo que me contaram, isso é impossível. Só tente se esconder, eu vou fazer o que posso pra que ela não se machuque.
— Como vocês sabem se é impossível? — Luci cedeu à desconfiança. — Como me dizem isso com tanta certeza?!
— Não posso explicar, mas é a verdade. — Ele tratou de desconversar. — Vamos, Tevoul!
O ruivo assentiu e, outra vez através da leva desenfreada, rumou contra a maré ao lado do parceiro, abandonando a moça insatisfeita.
Tadeu sentiu que foi rude, mas sua missão era valiosa demais para falatórios. Precisava capturar a menina e levá-la ao Conselho Republicano para retomar sua vida de antes. E não só ele: Todos os membros da trupe dependiam do sucesso para se livrarem de algo.
Caminhar pela multidão ficou fácil após a massa fugitiva se dissipar. Aos poucos, quando o número de bêbados à sua frente diminuiu, pôde ver as primeiras formas da aberração que possivelmente enfrentaria.
Marí, Nico e os membros do Sindicato ficaram em choque com a imagem. Apesar de saberem que era uma ilusão, nada nela indicava falsidade. Dezenas de corpos espalhados pela rua manchada de sangue tornavam a imagem um horror que somente pesadelos poderiam rivalizar.
Mais estranho que a cena era o que a aranha fazia: torturava duas pessoas em específico, sem se importar em perseguir a massa. Um deles, careca e um tanto gorducho, estava ferido. O outro era baixo e aparentava ser mais jovem que o primeiro. Ambos estavam enrolados em teia contra a parede de uma estalagem, da mesma forma que tais artrópodes fazem com insetos na natureza. Considerando o horário, estavam ali para ser a janta.
O ser acariciou suas pernas e quelíceras sobre os rostos dos bandidos que sequer conseguiam mais gritar. Era como fazer cócegas em alguém que clamava por socorro. Para a angústia dos dois bandidos, a coisa parecia se divertir.
— Como vamos derrotar aquilo? — O velho Fridevi perguntou enquanto se aproximava de Levias.
— Na guerra do Intocável — Marí respondeu —, a única forma de vencer uma Filha de Kolur era a ferindo. Normalmente se usava um Capacitado de Goren pra dar golpes com fogo, mas nós não temos alguém com esse poder. A alternativa é sair atirando para todos os lados até acertar.
— Isso vai matar ela — avisou Nico. — A gente precisa levar a pirralha viva.
— Resolveu colaborar agora, major?
O homem franziu a testa, preferindo ignorar o comentário da feiticeira.
— Não temos gente suficiente para tal tática, senhorita Constanikaya — disse Levias. Após isso, encarou a dupla de mercenários. — Vocês dois, que já enfrentaram-na anteriormente, como lutaram?
— Na primeira vez — Tevoul respondeu —, a gente tentou algo parecido, atirando no corpo, mas ela não estava lá. Na segunda vez ela nem se transformou.
— Será do modo difícil, então. O jeito será atirar da segurança até que, com uma bala de sorte, consigamos derrubá-la.
— “Derrubá-la”? — O major ameaçou perder o pouco decoro que tinha. — Não ouviu que temos que levar a pirralha viva, loirinho, é melhor você…
— Acerte-se tu com Lodrovi e Juno, não é do meu interesse vossa sina.
Mesmo que o momento exigisse urgência, ambos estavam irredutíveis. Os outros apenas assistiram tempo precioso ser perdido pela rixa entre sindicalista e ex-oficial.
— Vocês dois podem focar no que importa, por favor? — Marí soou mais farta do que irritada. — A gente…
— Executores da Igreja! — gritou outro sindicalista.
O cano de um mosquete cuspiu fogo contra a aranha, desviando sua atenção e do outro grupo. Seu portador, um homem vestindo um uniforme branco de lapelas douradas, formava uma tropa de quase uma dúzia de homens vestidos da mesma maneira. À frente deles, dois homens em manto branco de detalhes dourados, cada um portando a insígnia da Igreja de Kolur em seu peito esquerdo.
— Porcaria, eles chegaram também! — exclamou Tevoul.
A fera avançou contra os soldados, que lançaram uma saraivada antes que ela os alcançasse. De nada adiantou. Seus ferrões buscaram os corações dos Executores, forçando-os a saltar para evitar sua morte.
Após o primeiro ataque, tiveram que fugir da criatura com suas espingardas descarregadas. Ela tentou os pisotear com suas pernas em forma de ferrão, para empalá-los, mas eles mantiveram-se ordenados, sem demonstrar pânico em meio aos ataques.
Sua organização e disciplina, apesar da situação, era admirável.
— É diferente da Noligre… — comentou Tadeu. — Parece que… Não. Eles já fizeram isso antes.
Tevoul arregalou os olhos.
— Tá querendo dizer que eles podem parar aquele bicho?!
— Usem aquilo! — gritou um dos soldados da Igreja.
A dupla em mantos brancos estendeu os braços para as laterais e pressionaram seus dedos como se agarrassem algo. A aranha grunhiu após o golpe. Suas pernas fraquejaram, mesmo que permanecesse de pé. Fez força para se livrar da magia da dupla de feiticeiros, conseguindo avançar um pouco contra ambos, mas ainda era incapaz de mover-se livremente.
— São Infantes do Tato — alertou Fridevi. — Mesmo que a menina esteja escondida, conseguem sentir sua presença. Estão provocando dor nela pra que não ataque… É uma boa tática.
Apesar de segurada, a fera estava longe de derrotada. Usando de todas as suas forças, uma de suas pernas se ergueu e martelou contra o chão, causando uma onda de choque que desequilibrou todos em sua volta. Ambos os Infantes caíram, soltando as cordas que mantinham a aranha em cheque.
Levantaram-se para fugir, mas seu inimigo repetiu o gesto, derrubando-os outra vez. O ser caminhou em sua direção e ergueu suas patas dianteiras para o ataque derradeiro.
Eles seguraram-na com sua habilidade, paralisando suas patas antes que os ferissem.
— Venham logo! — gritou um deles.
Uma dupla de Executores correu em sua direção. Cada um agarrou o colarinho de um dos Infantes para si, arrastando-os pelos paralelepípedos do calçamento enquanto eles mantinham o monstro estático. Quando saíram de perigo, deixaram as pernas que quase os mataram descerem contra o vazio.
O grupo do Sindicato aproveitou o momento para se esconder atrás de uma carroça virada. Assistiram o engajamento de perto, mesmo que perplexos.
— Se os caras que sabem o que estão fazendo tão apanhando, com a gente vai ser bem pior… — O ruivo fez questão de mostrar seu pessimismo.
A aranha retomou o ímpeto contra o grupo da Igreja, mas, quando chegou a palmos de distância, estacionou em vez de atacar. Ela levantou suas patas dianteiras, alertando a tropa de Executores e Infantes a erguerem tudo o que tinham em sua direção.
O impasse perdurou. Uma dúzia de espingardas e dois braços apontaram contra a criatura imóvel. Atirar seria desperdício. Precisavam guardar suas balas para servir de cobertura de um ataque com a nuvem de fumaça.
Ao contrário do esperado, as estacas frontais da aranha baixaram. Ela recuou alguns passos para trás, como se fosse tímida. Ainda sim, rosnava e batia suas quelíceras. Ainda era um ser hostil, mas não para os atiradores. Seu foco mudara.
— Saiam da frente! — uma voz feminina gritou.
A formação se abriu ao meio e revelou a mulher de pele negra e cabelos encaracolados, carregando uma tábua com doze metais em sua perna, além de uma bolsa de pano de conteúdo desconhecido.
Os sindicalistas e a trupe enrugaram a testa com a complicação adicional.
Rudon parou diante da criatura sem demonstrar medo. Ela encarou os múltiplos pares de olhos negros e brilhantes da criatura e soltou um sorriso desconcertante.
— Nosso Mestre deseja vê-la.
Um grito agudo arranhou o ar de Gurvralo, fazendo os ouvidos de todos zunirem.