A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 31
Apesar de quase ir ao chão por conta do grito, Rudon não se intimidou com a criatura, restaurando a compostura com rapidez.
A aranha manteve-se instável, tremendo como se estivesse prestes a explodir de raiva. A coisa vagou em direção à asteni enquanto sons macabros escapavam de sua boca que cuspia veneno.
— Garotinha, não temos tempo para esse jogo. Vamos para casa logo.
A aranha odiou o tom seco de Rudon e bateu suas quelíceras com violência. Das pontas de suas garras escorreu mais do líquido esverdeado que banhava seu rosto.
“É muito convincente”, a asteni pensou. “Mas vou ter que acabar com isso por conta própria se você não ceder.”
A criatura levantou suas duas patas da frente, mostrando as pontas para sua desafiante. A aranha gritou outra vez num tom agudo e inumano, porém menos potente. O duelo começaria.
A aberração cravou suas patas no chão, abrindo um buraco no solo. Rudon pulou antes da aranha acertá-la. Ela tirou duas adagas da bolsa, armando cada mão enquanto rodeava a criatura.
A aranha esbravejou enquanto tentava acompanhar a mulher. A asteni correu a todo vapor, esfaqueando cada uma das pernas do monstro. Ao atravessar o oitavo membro fantasmagórico, a Capacitada gritou aos seus subordinados:
— Disparem à vontade!
Todos os soldados ergueram suas armas e lançaram um voleio mirado por todos os cantos da rua em que Rudon não estava. A fera respondeu partindo em sua direção com ira assassina. Enquanto isso, a asteni corria feito uma lunática, atacando o ar próximo ao bicho com suas adagas.
— A mulher enlouqueceu? — Tevoul perguntou.
— Ela é a mais lúcida entre eles — respondeu Fridevi. — Ela percebeu que a ilusionista não estava na base da aranha, então está tentando adivinhar onde ela está.
— Mas a garota não está em nenhum dos lugares que ela ataca!
— Não que nós possamos ver — Marí respondeu com um sorriso de vaidade, já que também dominava a habilidade.
Ele não entendeu de início, mas, depois de ponderar um pouco sobre as palavras, teve a epifania.
— A menina cria uma ilusão que deixa ela invisível?! E ela consegue fazer isso mesmo com a gente?!
Levias e Fridevi apenas assentiram.
— Ela pode estar do seu lado e a gente nunca vai saber — Marí disse como se contasse uma história de terror para uma criança.
Ao ouvir aquilo, Tevoul teve a única reação possível: começou a golpear o ar com a coronha do mosquete, girando-a para acertar o alvo imaginário com a baioneta.
Tadeu, Fridevi, Levias e Nico olharam para o mercenário com decepção. Marí preferiu rir.
De repente, um som agudo e veloz assoviou pela ruas como um enxame de vespas. O grupo voltou a atenção ao enfrentamento mais à frente, curiosos do que seria o ruído.
A aranha gritava de forma ainda mais grotesca enquanto suas patas ceifavam os soldados da Igreja. Em uma delas, dois Executores estavam empalados, já sem vida. Os outros recarregavam suas armas o mais rápido que podiam, ao mesmo tempo que torciam para não virarem as próximas vítimas.
Mais à frente, Rudon segurava um saco do tamanho da sua mão. Por algum motivo, a aranha parecia nervosa quando a asteni segurava o pacote.
Ao ver o vacilar da criatura, ela levantou seu braço direito com vigor, lançando o conteúdo da bolsa para o ar. De longe, o brilho dos objetos denunciava seu material metálico.
A maioria dos sindicalistas e a trupe não identificaram o que a mulher arremessara. Contudo, a experiência não faltou a Fridevi, que entendeu imediatamente o que ela fazia.
— Abaixem-se! — o velho gritou enquanto se atirava no chão.
Rudon tocou a segunda placa de metal na tábua da sua perna. Com um movimento rápido do seu braço direito, dezenas de agulhas finíssimas voaram pela via, zunindo pelo ar e ricocheteando pelas paredes dos prédios.
Após os ferrões cortarem o vento, o monstro rugiu outra vez e disparou na direção da asteni. Três soldados correram para protegê-la, pondo-se entre ela e a criatura. Atiraram mesmo que soubessem que era em vão. A aranha cravou a perna no estômago de um deles, depois atacou outro com suas quelíceras, partindo-o ao meio. Com outra pata, o monstro acertou o terceiro Executor, arremessando-o contra a parede de um prédio, levantando poeira e tijolos com o impacto.
Ao olhar para o chão, a aberração não viu mais a mulher que perseguia. Ela se virou por todos os lados, procurando-a, mas não encontrava nada dela além da sua placa de metais.
A Capacitada de pele negra se escondeu por detrás de uma viela sem que a criatura a visse. Espreitou o monstro com cuidado para que não percebesse sua posição. De lá, viu sua placa de metais largada no chão.
“Maldição!”, revoltou-se. Ela não poderia manipular os metais sem tocar diretamente no material de que são feitos.
Contudo, nem tudo estava perdido. Logo notou que havia algo estranho no comportamento do monstro: apesar de a criatura apontar seus olhos para ela com frequência, Rudon parecia ser invisível para o monstro.
“Ela deve estar na calçada desse lado da rua”, concluiu.
Tirou dois saquinhos de agulhas da bolsa. Abriu cada um deles, certificando-se do seu conteúdo. Sacou uma das agulhas para examiná-la melhor: era tão fina quanto dois alfinetes, porém longa como um indicador, contendo uma bolinha a poucos centímetros da ponta que servia para que a agulha não entrasse por completo no corpo da vítima.
Pôs o ferrão de volta na bolsa com cuidado para que a ponta ficasse para cima. Era hora de terminar a luta.
Um estampido de mosquete ecoou pelas ruas. O soldado que atirou não durou muito, sendo partido ao meio por uma das pernas afiadas da criatura. Àquela altura, os Executores e Infantes perderam quase toda a vontade de lutar contra a coisa, ainda mais depois da sua líder desaparecer.
Mas a mulher não era do tipo que sumia. Muito pelo contrário: sempre aparecia nos momentos certos. Rudon saiu da viela onde se escondia com tranquilidade, cada passo mostrando uma elegância estranha para o momento.
O monstro a encarou, pronto para atacá-la com toda sua ira. Com suas patas se entrelaçando, avançou do lado esquerdo da rua para a calçada da direita para enfrentá-la.
Ao mesmo tempo que a criatura avançava, a asteni olhou para sua calçada, procurando pelo lugar onde a garota poderia estar, até que seus olhos caíram sobre um barril derrubado no canto da esquina. A aranha parou e deu um breve grito, um pouco mais tímido que os anteriores.
Ela não conteve o sorriso. Correu em direção ao objeto para encerrar a peleja de uma vez. O ser avançou para interceptá-la. Sem temer, Rudon desviou do curso e rumou à criatura com seus dois pacotes de agulhas em mãos. Ilusão e realidade se aproximaram em um ritmo perigoso, até que seu choque se tornou eminente.
A mulher arremessou centenas de estrelas de ferro minúsculas pelo ar. Ela ergueu sua mão direita ao mesmo tempo que a aranha levantou suas patas, lançando seu braço na direção do barril assim que a aranha baixou suas pernas contra o chão.
As agulhas zuniram ao barril, deixando-o como um carretel com uma centena de alfinetes. A ilusão cessou em um piscar de olhos como uma vela soprada. Ao lado do barril, a Filha de Kolur se prostrou derrotada.
Os Executores e Infantes celebraram como a vitória de uma grande batalha. Rudon manteve o sorriso. Caminhou mansamente em direção a menina, que estava sentada com suas costas apoiadas no tonel. Seu rosto era uma confusão de sentimentos: lá estavam a ira contra a mulher que caminhava em sua direção, a amargura da derrota, o cansaço da luta e o desespero da captura que se aproximava. Pranteava sem fazer barulho.
Mesmo que fora de sua forma monstruosa, a menina ainda não estava totalmente em si. Com seu braço sangrando devido ao ferimento da agulha, Igri gritava como a criatura, porém sem seu apelo monstruoso.
— A pirralha ainda está descontrolada — avisou aos seus aliados. — Vai demorar pra voltar ao normal por completo.
Um soldado entregou uma bolsa para Rudon, que tirou de lá uma corda reforçada da bolsa e um lenço branco comprido, provavelmente uma venda. Os dois Infantes da Igreja se aproximaram para ajudá-la.
— Olha que confusão você me arrumou, menina — Rudon falou. — Seu Mestre não vai ficar feliz ao saber disso.
Igri pareceu se abater por completo ao ouvir “mestre”. Seus olhos determinados se foram, assim como qualquer resquício da sua ira. Os corpos dos soldados mortos por ela reapareceram em outros lugares, bem como a visão grotesca de sangue e entranhas se desfez, restando apenas cadáveres intocados.
Rudon sabia dos poderes da menina, mas ver a cena mudar tão repentinamente não deixava de confundi-la.
Um dos executores vendou a menina enquanto outro amarrou seus pés, por mais que Igri tenha atrapalhado ao máximo sua tarefa.
Mais para trás na rua, a trupe assistiu a derrota da garota. Mais do que isso: estava sendo capturada pela tropa da Igreja de Kolur, possivelmente sob o comando do frade Astovi.
— Isso é péssimo, eles conseguiram a garota antes de nós — lamentou Fridevi.
Tadeu o encarou espantado. O velho falara com um pesar que deixava óbvia sua desistência. Procurou em seus parceiros algum resquício de resistência, mas todos pareciam aceitar o funeral de suas esperanças.
— Precisamos fazer alguma coisa! — Tadeu logo protestou. — Temos armas e números para enfrentar a mulher, por que…
— Você viu a mesma coisa que nós, rapaz? Ela conseguiu vencer uma Filha de Kolur sozinha. Vai ser um massacre se tentarmos algo!
Ele olhou para o outro lado da rua. Os monarquistas faziam a captura com cautela, uma vez que não sabiam se a menina ainda seria uma ameaça. Ainda havia tempo. Tempo suficiente para enfrentar as chances e a crueldade do destino que tanto lhe maltratou.
“Não”, ele tomou sua decisão ao ver seu livre-arbítrio novamente ser roubado por outro. “Uma vez já foi o bastante.”
Ele se levantou da cobertura da carroça, expondo sua cabeça. Agarrou a arma com força e iniciou uma marcha lenta para o inimigo.
— Tadeu! — O outro mercenário percebeu a loucura. — Por Faor, me ouve uma única vez: não faça isso!
— Escute seu colega. — Até Levias quis evitar a tragédia. — O que podes fazer sozinho contra aquela Capacitada?!
Seu mosquete tinha uma bala de chumbo pronta, além da baioneta. Estendeu sua arma para que os membros de sua trupe e do Sindicato a vissem por completo. Com um sorriso, lembrou-se dos combates que tivera.
— Nunca precisei de mais do que isso.
Ele deu as costas para o grupo e se adiantou poucos passos da carroça. Determinado a não deixar os remos de sua vida escaparem de suas mãos, engatilhou a arma e a apontou para um soldado inimigo.
— Ei! — gritou aos adversários. — Eu estou aqui!
Seu dedo desceu ao gatilho, ascendendo a noite com um segundo clarão.