A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 32
O disparo cortou o ar e acertou em cheio o peito de um Executor. Os outros se voltaram para a rua, onde um único homem solitário avançava em pisadas controladas.
— Tomem cobertura, agora! — gritou um dos Executores.
O grupo de Rudon abandonou Igri e recuou, temendo ser um ataque do Sindicato. Contudo, logo notaram se tratar de um único agressor.
— Ele está sozinho!
Tadeu assistiu uma dúzia de armas apontarem para seu corpo exposto na rua. Procurou um lugar para se proteger, mas seus flancos careciam de abrigos. Pior de tudo: ainda não tinha recarregado sua arma.
“Merda…”
— Fogo!
A bala rugiu do outro lado, furando entre os olhos do soldado de branco e dourado. Tevoul surgiu pela escuridão, iniciando um tiroteio junto com o resto do Sindicato. Ele correu em direção ao colega, parando ao seu lado.
— Tevoul! Nem sei como te…
Uma rasteira lhe fez perder o equilíbrio, pondo-o no chão.
— O que deu em você?!
— Olha quem fala! — Ele se agachou, protegendo-se dos disparos que rugiam acima de sua cabeça. — Temos que sair daqui, rápido!
Ambos se lançaram até a esquina mais próxima. Lá, um dos Sindicalistas armado com bestas virou uma carroça de lado para uma proteção melhor, enquanto outros se escondiam por detrás dos pórticos das casas e caixotes na rua.
Iniciaram a recarga das espingardas assim que ficaram por trás do novo abrigo.
— Se você usasse metade do seu cérebro pra ver as loucuras que você faz! — o ruivo resmungou enquanto arrancava a vareta do mosquete.
— Teu parceiro tem razão, rapaz — uma voz falou para ambos, mas não souberam dizer de onde. — Arriscaste demais em tamanha imprudência.
De repente, Levias, Marí e Nico apareceram diante dos dois, todos com seus rostos amassados pela presepada do mercenário.
Mesmo confuso, tentou argumentar:
— Vocês queriam desistir, eu não poderia só deixar aqueles caras pegarem a menina!
— E então decidiste que melhor seria se todos nós morrêssemos por tuas convicções? Faça-me um favor…
— O moleque tem razão, loirinho. — Nico pôs a mão sobre o ombro do Sindicalista para provocá-lo. — Quando chegou a hora, você decide ficar mais acanhado! Pra quem tava falando em liderar a luta contra a asteni…
— Fale quando tua opinião for requisitada, por favor. — O loiro tirou os dedos do major de si. Depois, voltou a fitar Tadeu. — De qualquer modo, temos que agir agora. Pouco antes de tua carga, pensei em um plano simples, mas não há garantia de sucesso. Virás conosco?
Os dois mercenários se entreolharam. Recearam de início, mas sabiam bem que tanto o tempo quanto as opções se esgotavam enquanto pensavam sobre o assunto.
— A gente vai.
— Ótimo. — Levias procurou a ilusionista do grupo. — Marí?
— Sim?
— Nos faça invisíveis.
***
Rudon se manteve escondida detrás de uma carroça virada, junto de um soldado e dos dois Infantes, homens que Astovi teria selecionado a dedo para essa missão. Ao vê-los amedrontados, a mulher se perguntava se realmente era esse o caso ou se seu chefe a queria morta.
Não era segredo o que trouxe o Sindicato até ali. Ela sabia bem que só esperavam uma chance para tomar a menina. Rudon não podia perder Igri de vista em hipótese alguma. Tomando coragem em meio as balas que rasgavam o ar, ela olhou por cima da telega, procurando pela Filha de Kolur.
Seus olhos quase saltaram para fora ao ver ninguém perto do barril. A garota não estava mais lá.
“Eles pegaram a menina!”, espantou-se com a possibilidade.
Furiosa, levantou-se para lançar um saco de agulhas em seu oponente.
— Malditos! Eu vou…
Um projétil riscou o ar, raspando seu antebraço. Abaixou-se por puro instinto, pondo a mão sobre o lugar da dor. Sangue escorreu da ferida para a palma de sua mão.
O objeto se cravou em um barril atrás da mulher de pele escura. O medo invadiu seu peito ao descobrir que era uma seta de madeira. Aquela coisa foi destinada para matá-la.
Antes que se recuperasse, ouviu o soldado a sua esquerda tossir como se estivesse engasgado. A asteni o viu pôr sua mão esquerda no pescoço e se deitar vagarosamente no chão com os braços trêmulos. Sua vida verteu junto do sangue que escorria pela sua garganta.
Segurando um punhal e com um sorriso assassino, Levias se materializou na vista de Rudon, que gelou até a medula. Sua face parecia-se com de alguém que viu a própria morte.
Passos em corrida soaram da sua direita. Recuperando o controle de suas emoções, pulou para o lado, esquivando-se da força invisível que quase derrubou a carroça que a protegia.
Assim como Levias, Marí surgiu para a visão da mulher com um punhal de madeira em mãos. A feiticeira arremessou a arma mirando o torso da asteni, que evadiu da arma por pouco.
Rudon recuou junto dos dois Infantes, sacando outra bolsa de ferrões e as arremessando contra a carroça virada, empalando a madeira com dezenas de agulhas finas.
Os alvos desviaram do golpe por pouco das vespas de metal. A asteni continuou a fuga, mas logo percebeu a confiança estranha de seus inimigos. Levias e Marí sorriam para ela, sem se importar em persegui-la. Algo estava errado.
Ao olhar para a esquerda, seus adversários restantes surgiram, com suas armas apontadas para ela e seus dois feiticeiros.
Sem ter tempo para pensar, Rudon tocou a quinta placa da tábua. No momento em que notou a fumaça do cão das espingardas, levantou o braço com vigor, fazendo as três balas de chumbo voarem contra as janelas do segundo andar de um prédio ao lado.
A asteni e seus homens saíram ilesos, chocando o trio de atiradores.
— Ela desviou?! — espantou-se Tevoul. Ele olhou para Tadeu em busca de respostas.
— Sem tempo pra isso, Tevoul! — O rapaz se virou para o resto do grupo. — Vamos atrás deles!
Levias e Marí assentiram e correram para acompanhá-los, mas foram parados por tiros dos soldados restantes, obrigando-os a manter-se detrás da carroça.
Enquanto isso, Tadeu, Tevoul e Nico dobraram a esquina à direita, mantendo a perseguição à asteni. Aproveitaram a curta calma para recarregar seus mosquetes sob a proteção de um pórtico¹ de uma casa.
Tevoul e Nico recarregaram as armas com suas balas normais, porém Tadeu usou uma das balas de pedra que Fridevi o ajudou a fazer.
“Espero que eu funcione”, pensou enquanto depositava o cartucho marcado com tinta na boca do mosquete.
— Alguma ideia, major? — perguntou o ruivo.
Nico olhou para Tevoul com sua antipatia natural, mas ainda sim respondeu:
— Como a mulher consegue desviar balas, vai ser preciso acertá-la com essas tranqueiras. — Balançou o porrete de madeira que levava. — Cadê a ruiva feiticeira?
Tadeu e Tevoul olharam para trás, depois um para o outro e, por fim, para Nico. Nenhum sinal de Marí.
— Por que toda ruiva é assim?! — Sua fala revelava experiência. — Você, o mais alto — apontou para Tadeu —, você vai desviar a atenção dos atiradores correndo até o portal daquela outra casa ali. — Ele apontou para um prédio do outro lado da rua. — Eu e seu amigo damos cobertura contra quem tentar te pegar.
Tadeu já pressentia que Nico pediria algo assim, então assentiu sem protestos.
— Cuidado pras agulhas não te transformarem em peneira — disse Tevoul, batendo no ombro do companheiro.
Tadeu concordou com a cabeça, mesmo desconhecendo se o comentário do amigo era sério ou mais uma piada. Ousou pôr a cabeça para fora para ver o que estava do outro lado. Foi recebido por uma bala que acertou pouco acima de sua cabeça.
— Merda, eles estão de olho em nós!
— Não me diga?! — Nico não poupou ironia. — Pensou o quê? Que eles iriam se ajoelhar e morreriam sem tentar? Vai lá, agora! Porque eu te garanto que eu não erro que nem ele!
“Como eu imaginava”, o mercenário lamentou. “É um Cefas piorado…”
Tadeu suspirou com as palavras reconfortantes de Nico, aceitando o perigo. Tomando coragem, apertou o mosquete em suas mãos e disparou para o outro lado.
Antes que Rudon ou os Infantes pudessem ferir Tadeu, Nico e Tevoul atiraram, forçando-os a se esconder por detrás de uma esquina. O mercenário chegou do outro lado da rua em poucos segundos, tomando cobertura em no portal de um sobrado de janelas gradeadas.
Tevoul e Nico correram até um beco pelo lado oposto da rua enquanto Tadeu os ofereceu cobertura. Ao contrário da última vez, ninguém tentou impedi-los. Sucesso.
Após o momento de ação, o trio esperou. Era um dos raros momentos que teriam para respirar naquela luta. Aproveitaram a calma para checar a munição e o estado de suas espingardas.
Mas algo estava errado. Não havia sinal dos Infantes da Igreja ou da asteni. Olharam de um lado para o outro, mas tudo que acharam foi a tranquilidade agoniante no ambiente, uma calmaria que presas sábias o suficiente desconfiariam.
Naquele silêncio, um leve chacoalhar ruiu quase despercebido, mas ainda chamou a atenção de Tadeu. Ao olhar para o lugar de onde o barulho veio, notou a grade da janela acima da sua cabeça tremer como se fosse cair a qualquer momento.
O mercenário olhou para o objeto com estranheza e curiosidade enquanto sua mente trabalhava para entender o fenômeno estranho.
“Que maluquice, é como se tivesse um terremoto balançando a grade de ferro. Espera…”
Quando sua mente revelou a verdade, era tarde de mais. Uma das hastes horizontais da grade se desprendeu e agarrou-lhe o pescoço, enforcando-o contra a parede.
Seus dois colegas perceberam que estava em apuros e partiram para socorrê-lo, mas foram parados antes que pudessem ajudá-lo. Ambos desabaram após sentir uma dor intensa e paralisante. Era visceral. Sentiam como se um parasita estivesse rasgando-lhes as entranhas, em uma tentativa de se libertar do hospedeiro.
Nico conseguiu dar um passo na direção de Tadeu, mas a agonia perfurante atravessou sua barriga como uma espada, pondo-o de joelhos. Tevoul se levantou, mas logo caiu com o braço estendido para o amigo enforcado.
“Merda, merda, merda… Que tipo de feitiçaria é essa?!”, Tadeu pensou enquanto tentava livrar seu pescoço.
O mercenário forçou a barra de metal o máximo que pôde. Suas veias e músculos saltaram e suas mãos tremiam ao mesmo tempo que sua vista escurecia lentamente.
O destino de seus colegas dependia de sua libertação. Em uma última tentativa, usando todas as forças que tinha, empurrou a grade ao máximo.
Tadeu sentiu seu pescoço se aliviar. Quando se libertou, sentiu seus pés tocarem o chão. Ele caiu quase sem forças. Tossiu enquanto sua respiração voltava ao normal. Contudo, mesmo sem recuperar todo o fôlego, não havia tempo para perder. Agarrou o mosquete correu para resgatar seus colegas.
Enquanto corria, escutou zunidos agudos cortarem o ar, todos apontados para ele.
“Agulhas!”
Ele se lançou no chão para se proteger, mas dois ferrões ainda se cravaram em seu ombro.
Rudon e os Infantes surgiram das sombras para a rua. A mulher estava ao centro, com cada um de seus capangas em uma lateral, prontos para finalizar o trio.
Mesmo com dois pregos presos em seu ombro, Tadeu encontrou vigor para apontar a arma para a asteni e os outros dois feiticeiros.
A mulher riu ao ver o mercenário apontar o mosquete. Tocou a placa de chumbo na sua tábua, pronta para desviar mais uma bala sem qualquer esforço.
Mas um sentimento estranho a invadiu ao encostar a placa de chumbo. Não sentia nada no cano da espingarda inimiga. Era como se o soldado não tivesse nenhum projétil dentro de sua arma.
“Ele carregou um cartucho só com pólvora?”, estranhou.
Um estampido foi acompanhado pelo uivo agonizante do Infante à sua direita. Suas mãos manchadas de sangue estavam sobre seu peito enquanto ele caía no chão, derrotado para sempre.
Rudon se apavorou. Fugiu junto com o feiticeiro restante, aproveitando que Tadeu teria que resgatar seus dois colegas.
O rapaz arrancou as duas agulhas do ombro. Por sorte, não perfuravam muito, mas ainda foram suficientes para manchar seu sobretudo de sangue.
— Os dois bastardos com ela são Infantes com o poder do tato — Nico disse enquanto se erguia. — Mas, agora que um deles já fez o favor de morrer, as coisas vão ficar mais animadas. — Com um sorriso estranho, o ex-oficial sacou sua baioneta e a içou no cano da arma.
Tadeu e Tevoul assentiram. Com suas armas em mãos, só restava uma coisa a se fazer. Era a hora da carga final.