A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 33
Os três dispararam pelas ruas de Gurvralo à procura da dupla de feiticeiros. Tadeu estava na frente, com Tevoul e Nico aos flancos. Eles analisavam seus arredores a todo instante, em nervosismo constante, acentuado pela adrenalina do combate.
— Isso me cheira a emboscada! — o ruivo destacou para Tadeu.
— Continua olhando pros lados, uma hora eles aparecem.
A tensão se manteve. Cada porta, janela ou esquina poderia ser o lugar de onde viria o ataque, isso sem contar a escuridão da noite, que tornava qualquer movimento óbvio ao dia um vulto sem forma e perigoso.
Cada passo era o som do ponteiro de um relógio se aproximando da hora do golpe. Os olhos de cada um do trio corriam com a mesma velocidade de seus pés, buscando encontrar o inimigo antes que seus pés marcassem a meia-noite.
Passaram por um cruzamento, e suas orelhas perceberam o som agudo das agulhas cortando o vento pela sua direita.
— É ela! — alertou Nico.
Os três se atiraram ao chão, deixando que os ferrões passassem acima de seus corpos, sem feri-los. Eles se levantaram com as armas prontas para devolver o ataque, apontando-as para a asteni, que, com duas adagas em mãos, aproximava-se em passadas rápidas.
— Fogo! — Tadeu gritou.
Antes de puxarem os gatilhos, seus nervos foram atacados por uma dor aguda e precisa, fazendo seus braços se contorcerem. O espasmo em seus músculos fez as espingardas apontarem para direções aleatórias, errando a Capacitada do Morto e Tocável.
“O que foi isso?!”, O mercenário se perguntou.
Viu sua resposta ao olhar para o lado oposto à Rudon. Na rua à esquerda, vestindo o uniforme branco e dourado, o Infante fazia movimentos erráticos com os braços, como se torcesse algo em suas mãos. A cada manobra de seus braços, a dor mudava de lugar em seu corpo, de tal maneira que mal podia permanecer de pé.
Enquanto isso, a asteni jogou suas adagas para o ar. Ela colocou seu braço para trás e, em um rápido movimento, apontou-o para o trio quase paralisado. Eles se lançaram ao chão, por pouco evadindo as adagas arremessadas. Tevoul aproveitou o momento para se reequilibrar e conseguir forças para apontar o mosquete contra o Infante, puxando o gatilho assim que a mira alinhou.
A bala passou ao lado da cabeça do sujeito, que pôs a mão sobre a orelha direita após o zunido do projétil piar feito uma cigarra em seu ouvido.
Era a distração que o grupo precisava. Nico tomou a espingarda largada no chão com pressa e partiu em direção ao Infante.
— Segura essa, torcicolo ambulante!
Quando o major ameaçou puxar o gatilho, Rudon se adiantou, tocando a placa de chumbo e desviando o projétil de seu alvo. Ao ver o Infante intacto, o homem de cabelos castanhos olhou para trás com um sorriso lamentante.
— Não tem mais o que fazer, ein, enxerida?!
O trio se juntou, com Tevoul e Nico apontando para o Infante da Igreja de Kolur, enquanto Tadeu encarava Rudon, que permaneceu calada após a pergunta do ex-oficial. Apenas sacou outro saco com agulhas, tomando algumas delas em sua mão, quase como se estivesse contando-as.
O gesto não passou despercebido por Tadeu. Ele se aproximou dos outros dois, encostando suas costas nas deles.
— Acho que ela está ficando sem agulhas — cochichou para os dois. — Também está ferida. Se forçar, ela cansa. — Ele focou no rosto de Tevoul. — Igual foi com o barão e o feiticeiro do fogo.
— O “dorzinha” ainda tá inteiro — alertou o ruivo. — Não sei se vai ser tão fácil quanto naquele dia… E você sabe que “fácil” não teve nada.
As memórias da vitória sobre o barão de Jorodar inundaram sua mente, mas, dessa vez, lembrando-o da disputa penosa. Foi preciso que Cefas tomasse a maior parte dos golpes enquanto seus dois subordinados lutavam contra o feiticeiro do fogo e, após a derrota de Heitor, ainda foi preciso de três homens adultos para enfrentar Muromets.
Tadeu engoliu seco ao pensar na possibilidade do cenário se repetir. Ele olhou para o seu ombro, notando o sobretudo manchado de sangue. Ainda sentia o ardor das feridas. Mesmo assim, teria que fazer sua decisão.
— Eu fico com a mulher, vocês dois enfrentam o feiticeiro que sobrou — propôs ao mesmo tempo que recarregava seu mosquete com outro cartucho marcado.
— Certo! — os dois responderam.
Os dois Capacitados encurtaram a distância do trio. A tensão entre os dois grupos opostos era grossa, tornando o respirar difícil. Olhares voavam entre os oponentes, cada um aguardando que seu inimigo tomasse a iniciativa, em um jogo de paciência e cuidado, duas características ausentes no major Nico.
— Agora! — gritou.
O trio se separou como Tadeu havia estipulado. Tevoul e Nico avançaram cada um por um lado, forçando o Infante a dividir sua atenção pelos dois flancos. A dupla se aproximou na corrida, atacando-o em uma dupla carga de baioneta, forçando-o a saltar para trás.
Ele sacou sua espada e partiu em busca de Tevoul, desferindo golpe atrás de golpe, todos bloqueados com precisão pelo mercenário. Nico tentou ajudá-lo ao avançar contra as costas do feiticeiro, mas falhou assim que viu o homem apontas seu braço em sua direção, causando-lhe uma dor que atravessou seu joelho como em uma flechada.
Desprendendo-se de Tevoul, O Infante se aproximou de Nico, erguendo sua espada contra o major imobilizado. Contudo, o ruivo foi mais rápido, projetando seu corpo em um coice de ombro contra o feiticeiro da Igreja que o lançou contra o chão.
Sem perder tempo, estendeu sua mão para o leifanês aliado, ajudando-o a se erguer.
— Essa câimbra de toga quase me manda pro Submundo. — Um sorriso torto apareceu no semblante do major.
— A gente tem que ter mais cuidado com esse cara.
Nico balançou a cabeça com certa pressa.
— Também temos que torcer pro seu amigo dar conta da asteni, porque se ele não conseguir…
Tevoul olhou para o outro lado da rua, onde Tadeu e Rudon se encaravam. Mesmo que soubesse da habilidade do companheiro, temia que a batalha fosse ainda mais desigual do que ele pensara.
“Tenho que terminar com esse cara logo”, pensou. “Tomara que você aguente, Tadeu.”
Do outro lado do campo de batalha, mercenário e feiticeira se encaravam em um novo jogo mental. Tadeu segurava seu mosquete, encarando a mão em que Rudon portava suas agulhas. Ele se preparou para avançar contra a inimiga, porém foi ela que tomou a iniciativa, arremessando seus ferrões para o ar para empalá-lo.
O jovem evadiu o ataque ao se jogar no chão. Pôs-se de pé depressa e partiu em direção a mulher, a fim de encurtar a distância para um disparo a queima-roupa. Ele apontou a espingarda carregada com a bala de pedra na direção da oponente, que tocou a placa de ferro da tábua de metais e balançou o seu braço para o lado, desviando o cano do mosquete para o chão no momento que ele puxou o gatilho.
Tadeu se surpreendeu ao ver a espingarda cuspir fogo contra o solo.
“Merda, ela descobriu outro jeito!”, lamentou. Com suas balas anuladas, não restava alternativa. Arrancou a baioneta da correia e fixou no cano da espingarda.
Rudon estremeceu com a teimosia do mercenário ferido. Ela lançou os ferrões que separou e os lançou na direção do soldado, que desviou do ataque ao pular para o lado. Ao chegar ao alcance dela, atacou sua barriga, forçando-a a recuar e sacar uma adaga da bolsa, contra-atacando contra o pescoço de Tadeu.
Faíscas saíram após o choque da baioneta com a adaga. Os dois saltaram para trás após cruzarem armas, interrompendo o duelo por alguns segundos. Eles se encararam. Ambos estavam exaustos, com suas respirações ofegantes e seus corpos levemente arqueados.
O ferimento de Tadeu não o ajudava. Seu sangue encharcou seu sobretudo bege no ombro, deixando uma mancha escura evidente mesmo na noite. Rudon estava mais cansada que o mercenário. Sua ferida no braço ainda sangrava. Por não ter um passado como militar, ficou claro que ela não estava acostumada a ferimentos como seu adversário.
Durante o embate, o rapaz notou os truques de magia da asteni cada vez mais fracos. Seus ferrões, sua arma principal, estavam fáceis de se esquivar. Também era óbvio que ela evitava usar seus poderes.
“Se eu conseguir forçar ela um pouco mais, posso vencer.”
Tadeu partiu para uma nova carga de baioneta, fazendo Rudon preparar sua adaga em uma posição defensiva.
O mercenário a atacou em corte de cima para baixo, forçando-a a posicionar sua adaga para defender o golpe. Contudo, no último instante, o mosquete girou para o lado esquerdo, ferindo a mulher de pele escura no pulso destro.
A asteni pulou para trás, bradou de dor e largou sua arma. Sem perder tempo, o soldado aproveitou sua guarda baixa e a atacou com uma estocada no torso.
Ela extraiu todas as suas forças após tocar a placa de ferro, torcendo a baioneta do soldado ao contrário. A arma a atingiu na barriga com a ponta arredondada, que, mesmo sem furar, ainda a machucou.
A mulher se desequilibrou e cedeu para o solo. Enquanto isso, Tadeu soltou o mosquete e sacou sua maça de madeira, apontando-a para a perdedora.
— Acabaram seus truques? — disse o mercenário quase sem fôlego.
Rudon não fazia ideia do que ele falou, mas, pelo tom de voz, concluiu que estava ironizando sua derrota. Ela olhou para trás e procurou o Infante que a acompanhava. Ele ainda lutava contra Tevoul e Nico, que se alternavam entre atacá-lo e serem vítimas do seu poder paralisante. Estava claro que não sairia vitorioso daquele embate. Mesmo que suas forças estivessem esgotadas, ela tinha que tentar algo.
“Matá-lo não vai funcionar, aqueles dois vão ir atrás de mim até no Submundo. Preciso atrasá-los…”
Enquanto Rudon procurava uma solução, Tadeu esperava a asteni fazer algum gesto que indicasse a desistência. Ao seu ver, a mulher estava totalmente desnorteada, olhando de um lado para o outro, como uma criança perdida.
“O que será que ela tem?”
Em um momento, notou-a encarar o lado esquerdo da rua. Desconhecia o porquê daquela concentração súbita, mas, ao perceber que tocava um dos metais na placa, olhou o mais rápido que pôde para o lado que ela apontava a cabeça.
Seus olhos se arregalaram. A adaga que Rudon soltara voou contra sua coxa direita como um falcão em busca de sua presa, cravando em sua carne. Ele caiu e soltou um grito de dor controlado. Enquanto isso, a asteni tomou o que restou de suas coisas e fugiu, sumindo em meio a escuridão.