A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 35
Tadeu lutou contra o grupo que o carregou, mas foi inútil. As cordas ao redor de seu corpo o mantiveram preso, sem se importar com o tamanho de seu esforço para se libertar.
— Tire — uma voz grave, porém mansa, falou.
Retiraram o saco negro de sua cabeça, lançando a luz branca nas íris desacostumadas com a luz do mercenário, que cerrou os olhos para ver melhor o que estava adiante.
Era um quarto largo de três paredes brancas. A exceção era a que estava diante dele, vermelha, que continha um quadro antigo. Era a imagem de um cavaleiro em armadura de placas, que segurava uma maça e vestia uma coroa octogonal, com quatro joias na face frontal, formando um losango.
Na plaquinha com o título da obra estava escrito: “Ludovico IV de Cibente”.
— Esse quadro não tinha sido destruído? — ele murmurou.
— Não foi, rapaz — disse a mesma voz de outrora. — Quando soube que tínhamos gente do Sul, sabia que teria de mostrá-los uma das minhas obras prediletas do acervo local.
Dois homens altos, largos e mal-encarados, escoltavam uma figura gorducha que sequer chegava na altura de seus peitos. O baixinho vestia fraque e calças carmins com um colete bege por baixo. Uma bela e reluzente gravata plastron amarela enfeitava seu pescoço, dando-o um ar fino e extravagante.
Tinha um rosto redondo e enrugado, de pele clara e nenhum pelo facial, talvez para compensar seus longos cabelos. Era dono de um par de olhos castanhos, tão penetrantes que seriam amedrontadores se não tivesse orelhas de abano e nariz de batata.
— Onde estão meus…
O jovem olhou ao seu redor e encontrou seus colegas amarrados. Tevoul estava à sua esquerda, amordaçado. Um dos seus sequestradores chegou por trás e desamarrou o pedaço de pano, libertando a língua do mercenário. Já à sua direita, Tadeu viu Nico movimentado-se de um lado para o outro para se libertar das amarras.
— Vocês do Sindicato são ratos! — Nico esbravejou com veias nos olhos. — Ajudamos vocês, quase morremos, e olha como agradecem!
— Menos drama, major… — Ouviram o soar da fala grave e feminina de uma conhecida. — Também precisei ser vendada, e nem por isso fiz esse escândalo.
Marí, Levias e Fridevi caminharam entre os três, parando ao lado do pequeno estranho. Detinham um sorriso nada inspirador, mas que carecia da malícia de pessoas dedicadas a fazer o mal.
— É o protocolo, major — explicou Levias. — Não poderíamos levar-vos desvendados para cá, uma vez que comprometeria nossa segurança.
— Poderiam ter, pelo menos, avisado! — Nico foi desamarrado por um dos capangas do sujeito baixinho.
— Mas que graça teria?
— Seu…
O ex-oficial quis partir para cima do sindicalista, mas desistiu do ataque. No fim, por mais que a ação fosse exagerada para o seu agrado, entendia sua necessidade.
— Bem, acredito que os problemas foram esclarecidos. — O pigmeu pressionou as palmas como em uma reza. — Sou Nanias, o Administrador do Sindicato de Gurvralo. Sejam bem-vindos a minha humilde moradia.
Tadeu olhou em volta. Viu outros dois quadros como o de Ludovico IV, contendo reis que ele sequer sabia o nome, além de ornamentos dourados que se assemelhavam a ramos de videira em suas molduras. Depois, fitou o rosto do Administrador, procurando por resquícios de ironia. Nada encontrou.
“Isso é ‘humilde?’”
— Ele atende pela alcunha de Tadeu, mestre Nanias, foi quem enfrentou a Capacitada da Bênção de Haftar — Levias intrometeu-se. — Não só isso, derrotou-a! Graças a suas ações, a Filha de Kolur está longe dos lacaios da Igreja, mesmo que tenhamos falhado em capturá-la.
Tadeu ficou confuso do porquê Levias rasgou-lhe elogios do nada, considerando que ambos mal falaram mais de meia dúzia de palavras entre si.
— Deves ser um rapaz muito valente, afinal, um tipo raro no mundo de hoje. — Ele sorriu para o rapaz, que retribuiu o gesto timidamente, um pouco sem jeito com o elogio.
— Ele vai precisar de algum tratamento médico extra, se possível — alertou o loiro.
— Claro, claro, precisamos tratar essa perna, e rápido! Pavel — o baixinho chamou pelo brutamontes à sua direita —, traga os medicinais mérios que guardei para emergências. Pravenina sabe onde está.
O homem assentiu com a cabeça e partiu em busca do que seu superior pediu. Era tão grande que precisou passar de lado pela porta.
— Vocês têm uma Pedra Inoculada para encontrar a garota, correto? — Nanias perguntou para ele, dessa vez num tom sério.
— Sim… O major está com ela agora. — Ele apontou com a cabeça para Nico.
— Muito bom. Mas o que pretendem fazer com a garota?
— Iremos entregá-la para os republicanos — respondeu o ex-oficial. — É parte do acordo que a gente tem com eles.
— Entendo. — A sinceridade do Administrador era falsa. — Contudo, devo alertá-los de algo. Deveis saber que a única forma de controlar uma Filha de Kolur é pelo seu Inoculador, também chamado de Mestre. A Inoculação pode ser refeita, o que significa que a República poderá controlá-la através de um novo Mestre assim que entregarem-na. Entendem o problema?
Os três presos se entreolharam, mas preferiram evitar o assunto. Conheciam bem que o regime de Carasovralo tinha seus podres. Já lhes deixara de ser novidade que poderiam usar dos mesmos artifícios da coroa para ganhar uma vantagem, equiparando-se a tirania tão odiada por seus demagogos.
— A gente não tem escolha, senhor — disse Tadeu. — Os republicanos têm um plano para cada um de nós se não cumprirmos o acordo.
— Trágico, verdade, mas há muito mais em jogo que vossas vidas.
— Fala isso porque não é com você, pintor de rodapé. — Nico pensou em um xingamento mais elaborado. — Ou seria um cossaco anão?
— Olha como me dirige a palavra! — Nanias exigiu respeito.
Farto da falta de vontade dos dois, o Administrador fitou Marí, esperando que ela tivesse uma opinião diferente. A mulher manteve-se calada, sem reação. Por último, buscou no último dos membros da trupe, o ruivo, alguma esperança de autossacrifício.
— Você não acha que seria trágico para o Norte uma nova guerra com Filhas de Kolur?
— Eu moro no Sul, meio que… não é problema meu.
Franziu a testa, sentindo-se derrotado. Antes de lhes dar um sermão, o homem que ordenara buscar por remédios chegou, trazendo consigo uma caixa não maior que uma panela de média. Prontamente tirou de lá um pequeno pote contendo uma massa viscosa e esverdeada.
— Vamos discutir esse assunto depois. — Ele encarou Tadeu. — Isto é uma Pomada de Restauração Méria. Pelo nome, dá pra saber que é um artigo importado, e que eu estou gastando uma boa quantia nisso.
O Administrador desferiu um olhar penetrante para Fridevi, que entendeu com perfeição o que o homem queria dizer, mesmo que doesse em seu peito. O velho bigodudo, então, encarou com fúria seu colega de Sindicato loiro, que retribuiu com um sorriso de escárnio.
Nanias aplicou a pomada na ferida do mercenário, que começou a sentir seu efeito. Os coágulos de sangue desmancharam-se enquanto sua pele parecia voltar ao seu lugar, colando-se como se uma linha de costura invisível fora puxada. Pouco menos de um minuto depois da aplicação, tudo o que restou foi uma cicatriz amarronzada.
— O que sentiu, garoto? — perguntou com um sorriso no rosto.
— Doeu um pouco, foi como se a carne fosse puxada até ficar no lugar de novo.
O homem nada disse, apenas encarou para o grupo com um sorriso estático e um tanto constrangedor. Seu guarda-costas guardou os itens na caixa e saiu para deixá-lo onde o encontrou.
— É tão triste o destino que todas elas encontram. — O homem começou a caminhar entre os membros da trupe. — Igri, Dalkina, Fandraya, Polye, além de tantas outras, pereceram. Esse é o triste fim de todas que sofrem por essa insanidade inventada por algum porco odavita. Igri, a mais poderosa delas, morreu após matar Carasovi, facilmente encurralada após cansar da luta. Dalkina foi esmagada por um golem na batalha no Vale da Loucura. Polye até parecia que teria um final feliz, casando-se e até gerando prole, mas, no fim, cedeu a loucura e matou seu marido. Após voltar a si e descobrir o que fez, tirou a própria vida.
— Se ela vai morrer de qualquer jeito, então ela não vai ser um perigo pra sempre. Uma hora o pior acontece e tudo volta ao normal, não? — Nico retrucou.
— Sim, isso é verdade, mas a questão não é essa. O principal obstáculo para a criação de mais Filhas de Kolur é a experiência. Se a Igreja tomar a garota de volta, poderão notar seus erros e acertos no procedimento, já que é um aprendizado que se exige esforço contínuo para a melhora. Além disso, a garota está condenada, mas há uma chance com dignidade. Você e o seu grupo deverão entregar a garota ao Sindicato.
— O quê? — Tadeu se revoltou. — Você não ouviu o que eu disse? A gente precisa devolver a menina pra voltar pra casa!
— Pensar dessa maneira é um erro terrível! — Fridevi se intrometeu. — Está colocando seu benefício próprio acima do povo!
O clima do lugar parecia ter esquentado de uma hora pra outra. Até Fridevi, que havia ajudado o grupo até aquele ponto, parecia voltar-se contra eles.
O jovem mercenário teve que se conter para evitar um grito furioso contra os sindicalistas. Sentiu que, mesmo acusado de egoísmo, eram incapazes de ver o seu lado, em uma estranha dupla hipocrisia.
— E quem decide que a gente está errado? É fácil falar quando se tem dinheiro, uma roupa bonita e tempo pra treinar palavras bonitas.
— O que disse?
De repente, Tadeu sentiu suas canelas serem atingidas por marretas invisíveis, levando-o a se ajoelhar. A dor correu para suas coxas e torso, tão intensa quanto em uma máquina de tortura antiga.
“O que é isso?!”, mal podia se mexer após o baque que tomou em seu corpo.
— Solta o moleque, seu rolha de poço! — Nico se irou, apenas para ver o homem lançar o mesmo efeito contra ele.
— Ninguém chega a liderança de um Sindicato “treinando palavras bonitas”, jovem.
Tentou lutar contra a força paralisante, mesmo que sentisse cada polegada de seu corpo doer. Uma sensação quente envolveu sua pele, correndo como um rastro de pólvora em um arsenal mal guardado, prestes a explodir.
Porém, em um instante, tudo mudou.
— Cavalheiros — disse Levias, num tom conciliador —, estamos do mesmo lado nessa luta, não há motivo para a peleja.
O Administrador se conteve, deixando que os dois desafiantes caíssem ao chão feito náufragos de tão exaustos. Sem perder tempo, Tevoul e Marí correram para acudi-los.
— Mestre Nanias — O loiro mostrou um rosto sério e constrangido —, o senhor deveria se envergonhar.
— O quê? Como se atreve?
— As Bênçãos foram dadas por Faor aos seus filhos para que pudéssemos corrigir o mal causado à Terceira Terra pelos Elfos durante a Apostasia, não para maltratar nossos aliados. A vida de cada um desse grupo depende da captura da garota, e vós tratais tal tragédia como um reles empecilho qualquer, em vez de algo fundamental para que eles possam viver normalmente.
— Você está do lado deles? — Fridevi perguntou apontando-lhe o dedo.
— Claro que sim, se vós ouvísseis as palavras da própria boca, entenderíeis o quão mesquinhos sois.
— Mesquinhos? Nós? São eles que querem…
— Fridevi, basta — Nanias o interrompeu. — Jovem Levias, entendo vossa indignação, mas precisas compreender que a vida de muitos mais que esses quatro também está em jogo. Já aos quatro, eu não posso realmente fazer nada para convencê-los. Se assim querem que seja, que se faça, mas entendam as implicações das suas decisões.
— Tá, tá, tá — Nico se reergueu aos poucos, farto de toda a situação —, chega desse moralismo fajuto do Sindicato. Não é como se vocês estivessem agindo com essa autoridade enquanto são traficantes, ladrões, saqueadores e assassinos.
— Que mentira! — Fridevi protestou. — Nunca saqueamos ninguém!
— Acredito que já resolvemos tudo que deveríamos, não vejo como podeis me ajudar — Nanias concluiu, agora irritado com o grupo. — Coloquem as vendas novamente.
Os capachos do Administrador puderam os sacos de volta nas cabeças dos quatro, dessa vez de uma forma bem menos dramática. Um a um foram conduzidos para fora da casa luxuosa, até que restasse apenas Levias, Fridevi, Nanias e seus dois auxiliares na sala, todos assistindo da janela.
Eles esperaram até que todos estivessem na carroça outra vez. Quando o último subiu, o loiro quebrou a máscara que guardava.
— O derradeiro já se posicionou no veículo.
— Foste muito bem, Levias — Fridevi disse com um sorriso no rosto.
— Não há motivos para elogios, amigo, sei muito bem dos meus talentos teatrais.
— Ainda sim, acredita que conseguiu a confiança dos quatro com isso? — perguntou Nanias.
O loiro abriu um sorriso no canto da boca. Ele parecia brincar com o botão da manga esquerda, agindo como se não estivesse ouvindo o Administrador.
— Não sei, mas algo me diz que eles não negarão ajuda, ainda mais quando verem o quão prestativo eu sou.
— Tomara, meu caro. — O Administrador parecia duvidar, mas estava confiante. — Tomara.