A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 41
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- Capítulo 41 - Retiro para o corpo, tumulto na mente
Gurvralo e Danuvralo eram duas cidades distantes, uma vez que ficavam em polos extremos do país, sendo Gurvralo no noroeste, e Danuvralo no sudeste. A distância era tamanha que até o inimigo enfrentado pela coroa era outro: no sul, eram os exércitos de Nofrezyr que dominavam, mesmo que o príncipe Garuín tentasse dar uma “cara leifanesa” ao movimento pró-czarista.
Não bastasse as infinitas milhas entre os dois centros urbanos, a estrada também complicava a viagem. Estava mais esburacada do que o normal. Mesmo que pouco mudasse em termos de demora na travessia, o balançar da carroça fazia qualquer um implorar por um instante de conforto.
Contudo, estavam com pouca pressa. Desde que receberam a Pedra Inoculada do Sindicato de Gurvralo, a trupe não se preocupava tanto com o tempo, uma vez que sempre possuíam a direção exata da garota, mesmo que Nico reclamasse com frequência da sensação dada pelo cordão:
— Essa coisa não para de incomodar. — No banco do cocheiro, o sujeito de cabelo castanho soltou uma das mãos das rédeas e botou o cordão pra fora. Depois, fitou o fundo da carroça. — Tem certeza que isso é normal?
— O que sente exatamente, major? — perguntou Marí.
— Sei lá, parece uma fadiga… Sempre passa quando eu tiro essa coisa do pescoço.
— Deve ser os efeitos da Inoculação — concluiu a feiticeira. — A Pedra é uma simulação do efeito entre Mestre e Hospedeiro, então você deve sentir o mesmo que o Inoculador sente: sentimentos, sabores, até mesmo um pouco da dor da menina é repassado a você.
Uma mosca poderia entrar em sua boca entreaberta que Nico sequer perceberia. A cara do ex-oficial se transformou em confusão, similar a um aluno após ver uma fórmula matemática outrora desconhecida.
— Como se fosse uma maldição, não é? — indagou Tevoul.
— Se você entende melhor dessa forma… Então sim.
Para os mercenários, acostumados as Artes do Morto e Intocável, as do Vivo e Intocável eram algo completamente anormal. Não só seus conceitos eram abstratos demais para que pudessem absorver, como o pouco contato que tiveram com a forma de magia passava longe de suas formas mais básicas.
— Ainda não entendi uma coisa — disse Tadeu. — Pelo pouco que eu sei, Inoculação é um jeito de guardar um poder no sangue, certo? — Os dois sindicalistas assentiram. — Então como isso faz a menina ter poderes? Não era pra acabar depois de um tempo?
— É uma boa pergunta, cavalheiro — destacou o loiro. — Permita-me uma explicação.
Ele remexeu seu cinto por dentro do sobretudo negro, retirando um punhal. Ele desembainhou a arma e mostrou ao jovem. Encostou a ponta da arma no indicador e pressionou, criando um ferimento que deixou uma gota de sangue em seu dedo.
— Quando tu se concentras em uma técnica das Artes — seu sangue brilhou em um tom dourado —, o poder da Bênção flui pelo seu sangue, e, como disseste, é possível causar o efeito desejado ao encostar em um ponto exposto do Hospedeiro, como uma ferida, olhos ou língua. Isso vale para quase todas as Bênçãos, mas, com a de Kolur, acontecem certas… anomalias.
O mercenário continuou confuso, mesmo que entendera que a Inoculação era diferente nas Artes nortenhas.
— Que tipo de “anomalias”?
— É uma coisa bem específica do Vivo e Intocável — Marí se adiantou a Levias. — Todas as Bênçãos funcionam através do contato de uma fonte para manipular a mesma. A asteni, por exemplo, pelo Morto e Tocável, controla qualquer tipo de metal, mas precisa tocá-lo pra isso.
— Conosco, da Bênção de Kolur, faz-se necessário o contato com o Vivo e Intocável, ou seja, sentimentos, sensações e memórias, além de outras coisas mais abstratas. Isso significa que a fonte de poder está naturalmente dentro de nossos corpos. Quando se faz uma Inoculação do Vivo e Intocável, é como se colocassem mais sensações do que o comum para uma pessoa. Não é um “corpo estranho” como nas outras. A Inoculação do Vivo e Intocável se torna parte da pessoa afetada.
— Então é como se a pessoa tivesse uma sobrecarga de emoções? — ele perguntou.
Os dois sindicalistas confirmaram as suspeitas do mercenário.
— Mas isso só serve para aumentar seus poderes, não é o que as torna um perigo. — alertou Marí. — Para que o Mestre tenha total controle, a última Inoculação serve para “selar” suas consciências, tornando elas corpos sem vontade. Pode até parecer que ela é um ser humano normal, mas, no fundo, ela só imita um, totalmente dependente da vontade do Inoculador.
“Deve ser isso que o Administrador quis dizer com ‘a menina está condenada’. No fim, é como se ela tivesse morrido”, concluiu o mercenário.
De algum modo, saber daquilo era um alívio para sua consciência, uma vez que entregar um ser que perdera sua humanidade ao destino parecia mais moralmente aceitável do que fazer o mesmo com uma criança inocente.
Porém, algo balançava a teoria. No dia de sua captura, Tadeu foi salvo pela menina em meio a luta do galpão. A imagem da criança loira, saltando sem qualquer noção de autopreservação para paralisar os capangas de Astovi, ainda estava gravada em sua mente. Além disso, pouco antes, quando ele e o resto da Noligre a perseguiu pelas ruas de Carasovralo, recordava de vê-la agindo de maneira independente ao frade.
Era estranho crer que um “corpo sem vontade” mostrasse tamanha independência.
Do outro lado da carroça, os dois sindicalistas o encaravam com curiosidade, quase como se soubessem o que pensava.
— O que ela disse é verdade, Tadeu — acrescentou Levias. — A Bênção de Kolur é sobre criar truques para a mente, e as Filhas de Kolur são o ápice desse conceito. Não confies tanto no empirismo e nos próprios instintos.
— Então você tá falando com uma parede, moço — Tevoul interrompeu a discussão com o rosto risonho. — Esse aí é mestre em não usar a cabeça quando precisa.
O mercenário ruivo quase se engasgou após a resposta na forma cotovelada na costela. Os dois se entreolharam com raiva, mas, assim como os dois Capacitados leifaneses, logo se renderam as risadas.
Enquanto ria, Tadeu refletiu sobre a fala do loiro. Recordou-se de sua inconsequência, provocando suas risadas a uma parada que passou desapercebida.
“Ele tem razão. Tenho que prestar mais atenção no que eu faço.”
Após algumas horas, o grupo chegou em uma pequena cidade, já no horário da noite. Procuraram por uma estalagem para passar a noite, sendo discretos para não levantar suspeitas, já que vinham de uma região próxima à linha de contato. Eles encontraram um estabelecimento, com a fachada um tanto maltratada, lembrando um pouco o salão de encontro do Sindicato de Gurvralo. Porém, era provável que o lugar não escondia luxo por trás da frente surrada.
O major tomou a frente e entrou no lugar, acionando um pequeno sino ao abrir a porta. Era tão miserável por dentro quanto por fora. O papel de parede estava rasgado e mofado, o balcão estava infestado por cupins e o piso de madeira parecia que cederia a qualquer instante.
Enquanto admiravam o luxo do novo refúgio, uma senhora em seus setenta e poucos anos caminhou até o quinteto, forçando-os a esconder sua decepção. Seu sorriso parecia a única qualidade redimível do lugar.
— Boa noite, viajantes! — falou em uma voz rouca e animada enquanto se dirigia a eles. — Suponho que queiram um lugar para se hospedar, estou certa?
— Sim, senhora. — Nico respondeu em uma educação estranha. — Queremos três quartos, dois para cada dois homens e um para a senhorita. Quanto é o valor dos quartos?
— São mil rublos para o quarto mais básico, mas, se pagarem dois e quinhentos, vocês podem ter os nossos melhores quartos — detalhou com dulçor, mas logo sua expressão mudou para tristeza. — Só tem um problema…
— Qual, minha senhora? — Levias se intrometeu. — Não tens quartos suficientes?
— Quase isso. É que a pousada só tem um desses quartos melhores livres nessa noite. Vocês vem de muito longe?
Major e sindicalista se prepararam para falar, mas foram cortados por Marí antes de abrirem a boca. Estranhamente, o olho escarlate da moça desapareceu. Seus dois olhos estavam verdes.
— Sim, minha fofura! — Ela retribuiu a simpatia da mulher. — Estamos indo para Danuvralo já faz oito dias. — Sua voz chorava em lamento e dor. Ela pôs sua mão sobre a testa para aumentar o drama.
— Oh, minha querida… — a senhora disse com lamento.
— As estradas estão cruéis! Estou com as costas destruídas por causa dessa carroça!
— Que maldade!
— E tive que ficar alerta nessas estradas cheias de salteadores! Isso sendo a única mulher desse grupo. Eu tive tanto medo!
— Isso é horrível!
— E esses quatro sequer me deixaram um espaço a mais… Tive que dormir no chão uma vez.
O olhar furioso da idosa quase decapitou o quarteto. Marí se aproveitou a situação. Ela continuou seu martírio fajuto de sofrimento inexistente, deixando a velhinha cada vez mais desolada.
— O que essa maluca quer com isso? — Nico cruzou os braços e franziu o cenho.
— Não faço ideia, oficial. — Levias pareceu tão confuso quanto o ex-oficial. — Boa coisa é que não será.
O major assentiu, sem notar o fato que concordara com seu velho arqui-inimigo que conheceu há poucos dias.
— Então, minha senhora — pôs as palmas juntas como para uma prece —, teria como me dar esse quarto só por essa noite?
— Mais é claro, minha querida. Venha comigo!
Nico e Levias arregalaram os olhos enquanto a velhinha subia as escadas com Marí.
— Ei, senhora, e a gente? — perguntou o major.
— Durmam com os porcos — respondeu enojada.
Após a breve conversa, as duas subiram para o alto, onde estavam os melhores aposentos, deixando a dupla desolada.
Perdido o quarto desejado, os quatro se dividiram em duplas. Naturalmente, Tadeu e Tevoul tomaram um quarto para si, forçando Nico e Levias a dividirem o mesmo teto, ignorando por completo o perigo da decisão. Tudo o que os dois mercenários poderiam fazer era desejar que ambos sobrevivessem a noite.
O cômodo reservado tinha duas camas paralelas, uma na parede esquerda, a outra na direita. Ao centro, dividindo ambas, havia uma pequena mesa, com uma janela de madeira maltratada que permitia que a luz da lua enchesse o ambiente com uma aura azulada.
Cada um dos mercenários tomou uma cama para si. Tadeu preferiu a direita, obrigando Tevoul a ocupar a restante. Ao deitar, notou que o leito eram mais confortável do que a aparência do lugar indicava, indicativo do zelo da dona do lugar com seu estabelecimento, apesar de sua humildade.
Naquele momento que antecedia o repouso, sem que ao menos pudesse resistir, sua mente foi preenchida por seus demônios. Vieram lembranças de sua falsa acusação, do seu julgamento, bem como do encontro com o Administrador, o qual afirmou que ele deveria esquecer-se da missão e entregar a Filha de Kolur ao Sindicato.
“Por que parece que eu não decido mais nada na minha vida?”, refletiu com as mãos apoiando a cabeça.
A sua situação era mais do que poderia digerir. Ele se sentiu impotente perante a tirania do destino, mesmo que, mais de uma vez, tivesse erguido sua arma contra ela. O sentimento que o capturava era o de ter entrado em uma guerra contra um inimigo que jamais poderia derrotar.
Dobrou sua cabeça para o lado, onde encontrou Tevoul. Recordou-se de como seu colega sofrera da mesma sina, mas, de algum modo, permaneceu sem qualquer questionamento ou reclamação. O mercenário invejava o quão conformado o ruivo aparentava ser.
“Se bem que foi tudo por minha causa”, lembrou-se do fatídico dia.
Completando o sentimento de fraqueza, a culpa o invadiu. Ele temeu que seu amigo escondesse a sensação de ser traído. Porém, sabia que só havia um modo de descobrir o que seu parceiro sentia. Um modo que lhe exigiria mais coragem do que qualquer inimigo que enfrentara em sua carreira.
— Tevoul? — ele o chamou relutantemente.
— O que foi? — Ele virou a cabeça só o necessário para fintar o companheiro.
— Tá tudo bem com você?
— Não — respondeu com decepção. — Ainda tô com fome.
“Ruivo desgraçado, dá pra não fazer tudo uma piada só dessa vez na vida?! Eu tô tentando falar sério!”
— Você sabe o que eu quis dizer. — Tentou esconder o aborrecimento na fala. — Não se finja de desentendido.
— E você quer o quê? Que eu diga que eu gostei de ter minha liberdade tirada pra brincar de babá com uma menina que pode me matar só piscando um olho?
Ao ouvir a resposta, o mercenário de pele bronzeada se envergonhou, mesmo que esperasse pela acidez.
— Porém… — Ergueu o indicador enquanto mostrava um sorriso contente. — Não vou mentir e dizer que os socos que você deu no bastardo do Leto não foram bem-dados. — Virou-se por completo na direção do colega. — Cabia até mais!
Tadeu riu timidamente, mesmo que sentisse que o amigo escondia seus pensamentos mais sincero atrás da faceta alegre.
— E eu também não sou inocente — Tevoul continuou. — Eu ajudei aquela maluca no armazém e apontei meu mosquete pro Leto quando ele começou a falar merda. A punição foi justa pra nós dois.
— Mesmo assim, fui eu que te coloquei nisso. Eu não tinha o direito de forçar você a entrar nesse barco.
Tevoul se esticou na cama. Permaneceu calado, refletindo em uma resposta adequada.
— No fim — Tadeu falou primeiro —, eu não sou diferente do desgraçado do Leto. Ele que fica humilhando os outros por ter uma listra a mais na manga, colocando todos em perigo só pra se sentir poderoso.
— Não Tadeu, você não é como ele. — Tevoul viu o colega mostrar uma expressão de dúvida. — Você está se torturando porque outra pessoa tentou desobedecer ao que o mandaram. Ao contrário de você, aquele bastardo não sente uma gota de remorso.
— Aquele miserável… — A voz de Tadeu soou com ódio. — Com quantos outros ele não pode ter feito o mesmo? — Ele cerrou o punho e ameaçou socar a cama, mas desistiu. — Ele precisa ser punido.
— Pretende fazer isso se voltar?
Dessa vez, foi o soldado amargurado que precisou refletir. Leto precisava de uma punição, mesmo que ele não soubesse exatamente como ela viria.
— É bom que você não esteja pensando em fazer besteira, Tadeu. Não vou dizer que ele não merece mas…
— Eu quero focar primeiro em resolver a história da pirralha. Bater as contas com o cabo vem depois.
A expressão rígida e focada no teto do quarto permaneceu em seu rosto, preocupando seu amigo de olhos verdes.
— Leto não é o único bastardo nessa terra, Tadeu. Se você achar que se resolver com ele vai mudar alguma coisa, você tá enganado. Alguém que deseja justiça precisa ser justo também.
“Do que adianta ser justo com alguém que não tem justiça nenhuma?”
Ele pensou em falar o que pensou para responder o conselho do amigo, mas desistiu. Afastou o pensamento de uma vez, deixando o assunto verdadeiramente para quando a oportunidade aparecesse.
— Ainda sim, quero te pedir desculpas. — Mudou de assunto. — Se isso servir de alguma coisa, é claro.
Tevoul desfez a faceta preocupada e mostrou seu sorriso característico.
— Aceitarei suas desculpas, soldado, mas só com uma condição.
“O que ele vai inventar dessa vez?”, pensou enquanto uma de suas sobrancelhas subia.
— E qual seria?
— Quando a gente não puder dormir em um lugar assim e tivermos que dormir a céu aberto, quero que você cubra todos os meus turnos de vigília.
— O quê?! E eu não vou dormir?!
— Quanto egoísmo, soldado… — Tevoul disse, ultrajado. — Prefere realmente que a amizade acabe do que ajudar na minha insônia?
— Seu…
— Bem, obrigado, Tadeu, muito gentil da sua parte. — Agarrou-se ao lençol e se virou. — Agora, irei dormir.
O soldado se preparou para protestar, mas, antes que pudesse, sentiu a parede do cômodo vibrar após um poderoso impacto no quarto ao lado. Depois, uma voz masculina enfurecida começou a bradar em tautânes, enquanto outra, mais calma e educada, tentava acalmá-lo.
— Pelo visto, o oficial e o loirinho estão se divertindo! — falou Tevoul.
— Só espero que eles não derrubem o lugar até amanhecer.
Como se os ouvisse, o tremor se repetiu. Cansado da situação, o soldado de olhos verdes socou a parede de volta.
— Dá pra parar com isso?! Eu quero dormir!
A briga e batidas chegaram a um fim após a reclamação.
— Esses dois… Parecem duas crianças…
Tadeu esboçou um sorriso com a situação. Fez como Tevoul e tomou o lençol para se enrolar, procurando a posição mais confortável na cama. Fechou os olhos. Parcialmente em paz com sua própria mente, deixou que o sono o dominasse.