A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 42
A noite se passou sem mais golpes contra paredes. Todos da trupe puderam desfrutar do conforto de um teto, coisa rara em meio a viagem na qual o comum era que fossem obrigados a dormir na carroça ou ao ar livre.
Com os primeiros raios de sol, tal aconchego seria abandonado. O quinteto levantou-se cedo e se dirigiu para a recepção da estalagem, a fim de reiniciar sua viagem para a cidade de Danuvralo, com o único contratempo de ter que reabastecer a carroça com os suprimentos necessários.
Marí foi a última a se dirigir a saída da estalagem, sendo parada pela dona idosa pouco antes de deixá-la.
— Você já vai, mocinha? — a velhinha disse com a cara deprimida.
— Tenho que ir, fofura — a feiticeira respondeu. — Talvez eu volte um dia.
— Pois não tarde! — O sorriso da senhora se tornou em uma feição amedrontadora. — Você pode me avisar se algum deles te maltratar de novo. Garanto que não deixarei nenhum vivo. Nem mesmo os ossos deles serão encontrados.
Marí pôs as mãos sobre as bochechas enrugadas da senhora e as chacoalhou.
— Sua preocupação é adorável! — Deu-lhe um beijo na testa para se despedir.
Carregando suas malas, a moça caminhou até a porta, posicionando-se entre Tadeu e Tevoul. Ela jogou as duas malas para o mercenário ruivo, que quase tombou quando as agarrou.
Os dois soldados da Noligre não estavam parados à toa. Já fazia um tempo que eles esperavam que Levias e Nico resolvessem alguma coisa no cavalo, especificamente nos cabrestos. O animal estava agitado, movimentando erraticamente feito uma criança desobediente.
Contudo, o desespero do equino era o de menos. Ao contrário do normal, major e sindicalista pareciam ter uma discussão saudável, algo impensável ao trio que os observava.
— Estão se dando bem agora? — Marí questionou.
— Devem ter se entendido depois de quase derrubar o quarto ontem — Tevoul disse enquanto se reequilibrava.
— Então é melhor a gente aproveitar enquanto as coisas não voltam ao normal.
O trio foi de encontro aos dois companheiros próximos aos cavalos, descobrindo que se tratava de uma tira de couro que estava apertada de mais. Nico corrigiu o problema afrouxando um pouco os cabrestos. O cavalo agitado logo se acalmou, permitindo que o grupo retornasse a sua jornada para Danuvralo.
Devido a distância entre as duas cidades, a viagem levou múltiplos dias, uma vez que precisaram cruzar praticamente todo o território leifanês. Pelo percurso, como não tinham muito com o que se entreter, deslumbravam as paisagens que o interior da antiga nação oferecia: haviam bosques volumosos, planícies com trigo de inverno pronto para a colheita e pequenos vilarejos, cada um com sua própria unicidade.
Porém, uma coisa se destacava para os dois mercenários sulistas. Muitas vilas do interior estavam em absoluta miséria. Camponeses vestiam trapos velhos, e as crianças que brincavam por tais aldeias tinham suas costelas à mostra.
Doentes também não faltavam. Em uma das últimas vilas do percurso, Tadeu pôde ver dezenas de homens e mulheres largados pelas estradas, com seus rostos e pernas cobertos por panos. Alguns tinham ataduras manchadas de sangue, o que deixava pouca dúvida de quais eram suas enfermidades: lepra e peste branca.
— Por que tem tanta gente nesse estado? — questionou ao cruzar com um grupo desafortunado. — Pensei que as coisas tinham melhorado por aqui.
— Engano seu, moleque — respondeu Nico, que estava nas rédeas da carroça. — A fome de dez anos atrás foi muito pior que isso que você viu. Faltava o que comer até nas cidades grandes.
— Não dava pra comprar nada novo naquela época — Marí completou, mostrando uma face séria. — Todo tostão era gasto com comida… Isso quando tinha.
— Então é por isso que vocês não estão impressionados?
Os leifaneses confirmaram as suspeitas do rapaz.
— A fome só melhorou quando os bastardos de Gilina decidiram intervir. Não porque queriam nosso bem, mas porque era uma chance de mandar na nossa política.
— E o que eles fizeram?
— Foi como o Desalmado com o Grande Enganador: exigiram nossas almas em troca do nosso sonho — Nico se intrometeu. — A princesa Nasti foi prometida em casamento pro príncipe gilinês, enquanto o segundo filho do rei foi estudar em Gilina. — Revirou os olhos ao lembrar do absurdo. — Não bastasse ter só o nome, dizem que o moleque até sotaque de odavita tem!
— Isso não quer meio que dizer que vocês virariam uma espécie de vassalo? — Tevoul indagou.
Os três locais do grupo balançaram a cabeça em confirmação.
— Se não fosse o suficiente — continuou Levias —, exigiram-nos que participássemos das guerras de Gilina. Quando o rei Corleán III da Cistarra morreu prematuramente, não deixou herdeiros. Haviam dois candidatos, o irmão do rei, Lanadote, e seu tio, Sonisián, casado com a irmã do czar Poluvín VIII.
— Depois disso veio a merda. Parece que a lei da Cistarra é uma bosta e não diz muito bem quem devia assumir o trono, aí os velhos começaram a guerra.
— A sucessão da Cistarra — concluiu Tadeu.
— Essa mesma — o major confirmou. — Gilina e Leifas lutaram contra a tríplice aliança da Cistarra, Somir e Mautinir. — Uma gargalhada suprimida e trágica escapou de sua boca. — Não precisa ser um gênio pra dizer que a gente levou um cacete.
— Leifas ficou ainda mais endividada e teve que aumentar a ajuda gilinesa — falou Marí. — Como Gilina é uma nação inimiga na nossa história, a aproximação não foi popular. Foi aí que… Aquele maldito dia.
Ela não ousou prosseguir. O trio leifanês ficou em silêncio, tornando o ar difícil de se respirar. Mesmo que não dissessem diretamente do que se tratava o “maldito dia”, Tadeu e Tevoul conheciam a história que correu pelo Leste um ano antes da guerra civil: o massacre da praça central de Revragova.
O incidente aconteceu em um dia de inverno, quando soldados insatisfeitos do Exército Real de Leifas ocuparam a praça de Erinovi, na capital leifanesa. A tropa exigia que o rei voltasse atrás da aproximação com Gilina, argumentando que isso levaria à anexação da nação em um futuro próximo.
Naquele dia, Nofrezyr foi enviado para conter a revolta. Em vez de negociar, o gilinês ordenou que uma bateria de canhões abrisse fogo à queima-roupa contra os soldados, matando a maioria dos protestantes.
O episódio só piorou a imagem da monarquia, que passou a ser vista como traidora. Desde então, muitos consideravam os eventos daquele frio mês de dezembro como o pontapé da revolução republicana, mesmo que ainda levasse quase outro ano para o início da guerra civil.
A infame do evento forçou todo grupo a um silêncio fúnebre. Ao ver seus companheiros abatidos, principalmente os compatriotas, Nico tentou revigorá-los:
— Mas eu acho difícil que essas vilas estejam desse jeito só por conta da crise. Danuvralo é perto da linha de frente, então eu acho que algum regimento ficou sediado por aqui e limpou os estoques dos camponeses.
— Então estamos chegando? — perguntou Tevoul.
— Sim, mais perto do que longe. Acho que chegamos ainda nessa manhã.
— Finalmente!
Nico retirou a Pedra Inoculada debaixo do casaco marrom, pondo-a de volta em seguida. Depois, apontou seu corpo para a direita e esquerda.
— Ainda sente a direção garota, major? — perguntou Tadeu.
— Sim, só espero que ainda estejam na cidade.
— Acredito que elas estarão, senhores. Danuvralo é a única cidade com recursos vastos até a capital, então é o ponto perfeito para reabastecer.
— Verdade, loirinho, mas eu não quero perder tempo como da última vez. A gente vai procurar a pirralha, achar ela e vazar.
Para a surpresa do ex-oficial de cabelo castanho, a feiticeira do grupo revirou os olhos e assoviou em um tom de objeção. Ela ergueu o dedo e fez que não para ele.
— Infelizmente para o senhor, major, teremos que fazer uma parada — disse Marí. — Tenho uns assuntos pra tratar na minha cidade natal.
Nico puxou as rédeas com força, fazendo o cavalo relinchar e pinotear para o alto. Depois, virou-se para a mulher com os olhos enfurecidos.
— Se for pra visitar outro Sindicato, pode esquecer, já basta esse cachorro arrepiado. — Apontou para Levias, que prontamente riu.
A feiticeira ruiva suspirou e pôs a mão sobre a têmpora, decepcionada.
— Como eu disse, eu sou de Danuvralo. É de mais pedir pra ver alguns conhecidos, major? — perguntou com acidez.
— É sim.
— Por favor, major! — Marí juntou as mãos como em uma prece. — Eu te dou uma flor!
Usando de uma ilusão, fez um buquê fajuto aparecer em sua destra e o estendeu para o oficial, abrindo um sorriso infantil.
Mesmo que quisesse resistir, a curta risada do homem o entregou. Até um sujeito como ele, dono de um eterno semblante sério e rabugento, tinha empatia suficiente para entender o lado da moça, embora perder tempo outra vez doesse como em um tiro no peito direito.
— Ei, nariz de foice!
— O que desejas, major?
— Aquela feira que você falou… é aberta hoje?
— A de Danuvralo? — Seu nêmesis confirmou com uma careta sarcástica. — Creio que ela nunca feche de fato. A única exceção é quando alguma autoridade aparece, o que eu particularmente não creio que acontecerá.
— Ótimo. Eu, você e o ruivo vamos até lá pra comprar a munição que vocês gastaram. — Os olhos de Nico vagaram pela carroça, encontrando a face de Tadeu. — Se incomoda de acompanhar ela, moleque?
— Eu?
— E quem mais poderia ser?
Tadeu olhou de um lado para o outro, vendo respostas alternativas por toda parte.
— Eu não sirvo porque quero ver essa feira que o loiro me falou. Como você não deve ser burro, ele vai ter que me levar pra lá. — Olhou para Tevoul de relance. — O ruivo daria um jeito de fazer algo estúpido.
— Eu tô ouvindo!
Particularmente, o mercenário pensava o mesmo que Nico. Ele achava que o trabalho de acompanhar alguém até a sua família era um contraintuitivo com a missão, mas, como não haviam muitas alternativas, optou por seguir o combinado.
— Se vocês encontrarem a menina enquanto a gente está fora, o que vão fazer?
— Eu vou entregar ela pro Conselho e vocês ficam por aqui. — Ele encarou a face emburrada do mercenário e sorriu. — É brincadeira, moleque. A gente vai ficar na feira enquanto a ruiva resolve os assuntos dela, depois a gente vai atrás da pirralha. — Ele fitou a feiticeira. — Tudo bem pra você?
— Claro que sim, major. — Ela olhou para o mercenário e notou sua insatisfação. Depois, voltou sua atenção para o ex-oficial — Vou tentar ser o mais breve possível.
***
Assim como o acordado, Nico parou a carroça e depositou Marí e Tadeu no lugar indicado por ela. Para a surpresa do grupo, tratava-se da catedral da Igreja de Kolur na cidade, o que os deixou levemente aflitos, mesmo após a Capacitada acalmá-los múltiplas vezes.
Ele desceu da carroça e parou frente aos dois, a cerca de dois passos de distância. Trouxe uma pistola em sua destra.
— Tem certeza que não vai aparecer outro feiticeiro maluco daí?
— Você se preocupa demais, major. Eu me pergunto se eu pus você em perigo alguma vez pra ter essa desconfiança toda!
O ex-oficial cruzou os braços.
— Ah, daquela vez foi só uma medida de segurança…
— Foi um sequestro, ferrugem.
— Detalhes, major, detalhes.
Ele deu de ombros, sabendo bem que a discussão não iria a lugar algum. Logo se voltou para Tadeu e arremessou a pistola que segurava para ele, que quase não conseguiu agarrá-la a tempo.
— Só por precaução, garoto. Já tá carregada, inclusive.
Os olhos do rapaz quase pularam para fora enquanto sua testa franzia, em total descrença.
— Já vou indo. — Nico deu-lhes as costas e rumou a dianteira da carroça.
— Obrigado pela tentativa de homicídio!
— De nada, moleque! — Balançou o braço em uma despedida carregada de sarcasmo. — A gente vai esperar vocês na praça da feira, do jeito do combinado!
A carroça partiu pouco depois. De dentro, Levias e Tevoul fizeram questão de acenar para a dupla, que retribuiu o gesto com um sorriso.
— O major é um pouco… intenso, não acha? — questionou Marí. Ela se voltou para a entrada da igreja e começou a subir a escadaria. Tadeu a acompanhava logo atrás.
— Talvez um pouco além da conta. — Ele encurtou a distância entre ambos. — Pelo menos ele tá tentando colaborar agora.
— De fato. — Ela parou quando ficou a menos de um passo da entrada. — Enfim, de volta às origens!
Mercenário e feiticeira pararam diante das portas altas e de madeira escura da catedral de Danuvralo. Era um prédio cinza, com manchas negras de infiltração. Seu estilo gótico lhe dava uma aura sinistra e antiga, contendo gárgulas de monstros ao estilo cistarrenho. Um tanto incomum para o padrão nacional, sendo que, em Leifas, eram proeminentes os templos com cúpulas bulbosas, em um formato remetente ao de uma cebola.
— Falar com alguém da Igreja de Kolur não vai dar problema? — indagou Tadeu. — Eles são nosso maior problema até agora.
— Não se preocupe, soldado. Nem todo mundo na Igreja de Kolur é um Astovi. Existe gente que se salve.
Ele ajeitou a pistola dentro do sobretudo desabotoado. Encostou as costas na parede assim que a ruiva tocou na porta quatro vezes, pouco convencido da utilidade daquilo.
— Você não queria está aqui, não é?
Tadeu a olhou de soslaio, mas nada disse. Ela deu uma curta risada ao receber a resposta involuntária.
— Fala mal do major, mas são mais parecidos do que você pensa.
Mesmo que considerasse aquilo uma provocação, o mercenário não pôde deixar de se comparar com o ex-oficial. Duvidava bastante que Nico fora posto naquela situação por querer preservar a vida de alguém.
— Se você acha isso… Afinal de contas, com quem você quer falar?
— Você vai conhecer ele em breve, não precisa ser impaciente. — Ela amassou a face ao constatar a possibilidade de problemas miúdos. — Só tenta aguentar o “sermão”. Se ele vier, é claro.
A moça não se poupou do seu exibicionismo. Em um movimento exagerado e elegante, passou sua mão por cima do seu olho escarlate, deixando-o verde como o outro.
Tadeu ficou confuso por um instante. Ver a feiticeira com ambos os olhos da mesma cor lhe causava estranheza, por mais que os olhos da mesma cor devessem ser o “normal” para Marí. Se não bastasse a ação esquisita, o aviso dela o deixou confuso.
“Como assim um ‘Sermão’?”
Marí socou a porta da catedral outras quatro vezes. Ao contrário da sua expressão normal, ela demonstrava uma ansiedade controlada, mas ainda evidente em sua face.
Após uma curta pausa, voltou a golpear a madeira, dessa vez com mais força.
— Acho que ele ficou surdo agora.
Quando a feiticeira ruiva se preparou para bater à porta outra vez, ela se abriu. Apareceu um idoso, vestido de preto, de pouco cabelo acinzentado e nariz comprido. Seu primeiro semblante foi de surpresa. Mas, aos poucos, um sorriso surgiu enquanto seus olhos se enchiam de água.
— Constanikaya…
O jeito extravagante da feiticeira desapareceu de uma vez. Seu queixo tremeu feito o de um gago enquanto o fitava nos olhos, ficando na iminência de ceder às lágrimas.
Tadeu ficou mais confuso que antes. Ele não entendia a relação entre ambos, mas, por suas reações, aparentavam ser próximos.
“Um parente, talvez?”
O homem voou de braços estirados para a moça, a abraçando pelo pescoço. Deixando algumas lágrimas escaparem seu rosto, Marí arqueou as costas para ajudar o homem a abraçá-la.
— Você está viva, minha filha! Viva!
O velho a chacoalhou de um lado para o outro, com um sorriso de pura felicidade entre suas lágrimas.
— Estou, tio — respondeu com a face de uma filha pródiga. — Eu voltei.