A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 44
— Pode descer — falou Luci, estendendo as mãos para Igri.
A menina loira pôs seus dedos sobre os ombros da sulista e deixou que ela lhe segurasse pelos braços. Em um pequeno salto, Igri deixou que a amiga a levasse da mula para o chão.
— Pronto.
— Pra onde a gente vai? — a garotinha perguntou.
— Vamos procurar o que comer. — Ela tomou as rédeas da mula. — Não fizemos uma pausa desde que a gente acordou.
Igri balançou a cabeça com um sorriso. Desacostumada com a vida quase nômade da parceira, ela sentia bastante por ter que viajar longas distâncias sem paradas.
Por sorte, a cidade de Danuvralo era a oportunidade perfeita para descansar. Haviam comércios de todos os tipos e gostos pelas ruas dos subúrbios e pelo centro, onde existiam excelentes restaurantes e tavernas, bem como pousadas para que pudessem recuperar as energias. Além disso, a zona mais interna da cidade era famosa por abrigar uma feira conhecida por vender mercadorias simples e de boa fé, como munição, drogas, notas falsificadas e itens de feitiçaria.
Sabendo da fama do lugar, Luci preferiu evitar o infame comércio, uma vez que estava com a miúda. Ela constantemente se via obrigada a evitar lugares que seriam uma parada obrigatória antes, uma cena que se repetia mais do que ela gostava de admitir. Contudo, era o certo. Tais lugares eram horríveis para Igri, algo que ela aprendeu por experiência própria.
Após descerem da mula, as duas iniciaram a jornada em busca de um lugar para comer. Haviam tavernas pelos subúrbios, mas a memória do “incidente” em Gurvralo ainda fazia Luci resistir a ideia.
Mais do que isso, a sulista queria esquecer de tudo, principalmente de como aquele rosto angelical escondia algo tão cobiçado pela Igreja e pelo Sindicato. Falava-se com frequência como seria mais fácil se sua colega fosse “normal”.
Mas Igri fazia questão de lembrá-la que passava longe de ser uma criança ordinária. A menina encerrou a caminhada em frente a um beco, olhando fixamente para a viela sem saída, com a expressão estática.
Um calafrio correu pela espinha de Luci ao notá-la parada como uma estátua.
— Tudo bem, Igri?
— Tem alguma coisa ali. — Sua boca mal abria.
Em passos firmes e cuidadosos, Luci caminhou até alcançar a colega. Ao encarar o beco, ouviu algo remexer, a semelhança de alguma praga urbana.
— Deve ser um rato — concluiu. — Va…
— Ah! Socorro! — gritou uma voz infantil enquanto algo se quebrava em um estalo.
Igri correu para dentro do beco, logo sendo acompanhada por Luci. A menina começou a revirar uma pilha de lixo que chacoalhava com pressa.
Ao retirar uma tábua de madeira com a ajuda de Luci, encontraram o “ratinho”. De cabelos ruivos que davam nos ombros, nariz pequeno e face suja, o garoto encarou a dupla com espanto, logo se transformando em um sorriso.
“Ótimo”, martirizou-se a forasteira. “Outra criança. E piolhenta, dessa vez.”
— Obrigado! — ele agradeceu.
Igri tomou ele pelo punho e começou a puxá-lo, usando toda sua força, mas o menino permanecia preso. Luci o agarrou pelo outro braço e, em um único puxão, o arrancou do cativeiro de lixo, quase derrubando a pequena no processo.
— Muito obrigado de novo, moça! — O garoto se curvava várias vezes como se tivesse visto um rei. — Qual o nome de vocês?
— Igri! — A loirinha disse com simpatia.
— Luci.
— Meu nome é Demevryr! — Se apresentou enquanto tirava a poeira do cabelo e da camisa alaranjada. — Vocês me ajudaram, então eu vou ajudar no que vocês quiserem agora! — Estufou o peito e pôs o punho sobre o coração.
“Eu mereço…”, lamentou a sulista.
— O que você tava fazendo ali? — perguntou Igri.
O entusiasmo do menino foi destroçado com a pergunta. Envergonhado, tentou desviar o olhar para dentro do beco.
— Eu tava com fome, mas não tinha dinheiro… — Seus olhos ameaçaram escorrer, mas ele soube se segurar.
O peito de Luci apertou. Ela encontrara com mais de um garoto de rua em sua estadia conturbada em Leifas, mas confrontar a realidade nunca se tornou mais fácil. O encontro com a fome parecia a única certeza que ela tinha em um país abandonado pelos céus.
Enquanto refletia, sentiu uma mão macia tocar seu pulso. Ela olhou para sua colega e viu um olhar de pura compaixão, implorando para que algo fosse feito. Mais que isso, Igri aparentava ser o próprio significado de empatia.
— Moleque… — A razão tentou lutar, mas seu coração foi mais forte. — A gente tá indo atrás de comida também. Se quiser vir, a gente te leva.
Dois pares de olhos brilharam para Luci. Por mais que quisesse evitar, ao ver tamanha inocência, o coração da moça derreteu.
— Hora de encher a barriga!
— Não me faça me arrepender.
O trio recém-formado seguiu a procura de um estabelecimento para encerrar suas dívidas com a fome. O novo integrante do time era o mais animado, tomando a dianteira enquanto portava um pedaço de madeira comprido apoiado contra o ombro, uma espingarda tão improvisada quanto fajuta. Andava levantando os pés o mais alto que podia, imitando um soldado em marcha.
— Demevryr, certo? — perguntou a sulista.
— Sim! — ele disse.
— Quantos anos?
— Oito, e vocês?
— Eu tenho vinte e dois, ela tem onze. Cadê os seus pais?
— Eu não tenho — falou com uma naturalidade perturbadora. — Sempre vivi nas ruas junto de uns amigos.
— E cadê os outros anjinhos?
— Foram pra feira do centro vender umas coisas que eles acharam no lixo.
Luci se fez de descrente com as supostas riquezas encontradas por um bando de pirralhos. Ela entendeu perfeitamente que “lixo” significava “os pertences de algum azarado”.
— Mas você não tem nenhum parente mesmo? Ninguém mais velho que você conhece ou conheceu?
— Quando eu era mais novo, eu era cuidado por uns senhores estranhos que me jogaram na rua quando eu tinha uns seis anos. Eles não eram muito legais. — O garoto desviou a atenção para o chão. — Olha!
O menino saltou para a calçada em busca de um pequeno objeto. Luci pensou que era uma moeda, mas acabou decepcionada.
— Uma pedra?
— Não é uma pedra qualquer! — protestou. — Olha como ela é redondinha!
Ele começou a pular de um lado para o outro após a aquisição.
— Que moleque perturbado…
Demevryr mostrava o tesouro com ânimo, fazendo Igri se afastar dele. Com a face abalada, a menina chamou a atenção da sulista, agarrando sua camisa.
— Se quiser, pode deixar ele por aqui mesmo…
— Tarde demais para arrependimentos, baixinha.
Após minutos de caminhada e algumas pedrinhas a mais, o trio chegou em uma das tavernas do subúrbio. Para a segurança das crianças, Luci tomou cuidado ao escolher o lugar para almoçar, buscando a taverna menos movimentada e com o menor número de psicopatas em potencial.
Assim que entraram, Demevryr correu para o fundo do estabelecimento de paredes de tijolos, buscando a mesa mais afastada que ainda tinha vista para a janela. Após pedirem o almoço, as duas garotas foram em busca dele, escolhendo sentar nas duas cadeiras opostas ao menino.
— Sua pele é diferente, você não parece ser daqui. — O garoto constatou sem qualquer filtro do que falara. — É do Sul?
Luci confirmou com a cabeça.
— Eleitorado de Olúmia, Império de Selamica.
— Eu sempre quis ir para o Sul, mas ouvi dizer que os barqueiros não deixam crianças cruzarem o Tarra.
— Mentira, se você tiver dinheiro suficiente, eles deixam até o Desalmado passar.
As duas crianças gargalharam timidamente, fazendo Luci escapar uma risada. Ainda curioso com a nova companhia, Demevryr continuou o interrogatório:
— E ela? É sua irmã?
— Não. Achei ela perdida no meio do mundo que nem você, mas fiquei com ela porque ela parece não saber se virar sozinha.
— Entendi. — Ele encarava a menina com certo fascínio. — Ela é meio estranha…
“Logo você falando isso?”
— Por quê?
Ao contrário do normal, Demevryr preferiu ser discreto e acenou com a cabeça para a direção da menina. Quando Luci a olhou, viu a garotinha encarando o outro lado da rua pela janela, como se visse algo pelas calçadas movimentadas.
— Às vezes ela tem dessas… — disse preocupada. Cutucou a menina de leve e sussurrou. — A gente precisa sair daqui?
Igri fez que não, mas, ainda sim, não desgrudava o olhar da janela. Luci sentiu a mesma preocupação de antes, mas pressentiu se tratar de algo mais perigoso que um órfão preso em um monte de lixo.
Pouco tempo depois, um atendente chegou com o almoço do trio. Todos devoraram a comida em um instante, Igri e Luci por pressa, enquanto Demevryr só estava faminto. Mesmo dando mais do que queria, a errante pagou a conta sem problemas, já que havia penhorado as joias que roubou da carruagem da Igreja.
Depois, saiu de lá o mais rápido que pôde. Ela desamarrou a mula com a mesma pressa de que saiu da taverna, dificultando que Demevryr a acompanhasse. Tirou uma faca das coisas amarradas no animal e pôs dentro do colete.
— Precisamos sair daqui. — Pegou Igri pela cintura e a subiu na mula. — Desculpa, moleque, mas você vai ter que ficar só de novo.
— Por quê? — lamentou ele. — Eu posso ser útil pra vocês!
— Duvido muito. — Ela se montou na sela. — Adeus!
Com um coice leve, Luci fez a mula avançar, tomando cuidado para não atropelar algum pedestre.
Demevryr recusou a despedida e começou a correr em busca das duas, conseguindo manter-se ao lado de ambas com uma caminhada apressada.
— Por favor, você já ajuda ela, eu sei que posso ajudar você!
— Você não entende, pirralho, é coisa séria. Tem gente importante atrás de nós!
O menino se colocava entre a mula e o caminho, fazendo Luci levar o animal de um lado para o outro para não pisoteá-lo. O equino ameaçava pinotear, forçando-a a usar de força extra para não cair.
— Você vai derrubar nós dois, garoto! — Ao prestar atenção onde estava, Luci percebeu que tomara a esquina errada.
Era uma rua estreita. Também era deserta, ao ponto da ausência de uma única alma vivente provocar medo. Até mesmo Demevryr, que era o agitador, se calou com a mansidão aterradora da via
A sulista sentiu dois braços cruzarem sua barriga. Um abraço mais apertado do que o normal. Com delicadeza, Luci rompeu o abraço e desmontou da mula, descendo Igri em seguida. Ela tirou uma pistola das tralhas. Tomando cuidado para não perdê-la de vista, posicionou a menina detrás de suas pernas, usando-se de escudo.
— O que tá acontecendo? — perguntou o garoto.
— Seja o que for, não faça nada de idiota, entendeu, moleque? Não tente bancar o herói.
Em desespero, o garoto balançou a cabeça. Os olhos dele se arregalaram a ver uma silhueta surgir de um dos becos laterais.
— Achou que ia ficar por aquilo mesmo, sulista?
“Maldita…”, Luci reconheceu a voz. “Deveria ter passado o facão na sua garganta.”
Rudon parou perto da porta de um prédio vazio. Vestia uma túnica branca que contrastava com sua pele negra, além de uma bolsa esverdeada que repousava na coxa direita, coberta por uma calça verde. Na outra perna, como de praxe, estava a tábua de metais reluzentes.
Luci puxou o cão da pistola, engatilhando-a, mas, antes que ela atirasse, a estrangeira tocou a placa de ferro presa à sua coxa e sacou a peça da garrucha para fora com seus poderes ao balançar o braço em um movimento simples.
A sulista olhou para a arma, confusa, só depois ouvindo o som de metal se desprendendo à sua direita. Assustada, ela sequer notou a oponente retirando uma corda da sua bolsa, contendo duas bolas metálicas presas nas pontas.
Quando percebeu, era tarde demais. Rudon lançou a arma em sua direção, fazendo as cordas envolverem-na em um forte abraço.
— É mais fácil quando não se está ferida e cansada. — A asteni mostrou um sorriso.
— Como… Como você me achou? — Perguntou gaguejando. — Tava me seguindo esse tempo todo?
— Não foi preciso. — Mostrou a mão direita com um anel. Uma Pedra Inoculada ocupava o lugar da joia. — Agora, saia da minha vista.
— Sua… Vocês dois — Virou-se as crianças —, corram!
Demevryr correu primeiro, acompanhado por Igri, mas, antes de escaparem da viela, ambos tiveram que cortar a corrida. Parado, portando um sabre na mão direita, um homem de grande estatura bloqueava a rua.
Era loiro, com ombros largos e uma cicatriz cortando um dos olhos claros. Seu pescoço era largo e o maxilar fazia um ângulo reto. O manto branco da Igreja de Kolur, com a Mão e o Olho estampados no peito, fazia o ar pesar ante sua presença.
— Some daqui, moleque — ele disse para o garoto em uma voz grave.
Com as pernas trêmulas, o ruivinho olhou para a dupla que o ajudou, sem saber se deveria fugir ou morrer. Tomado pelo medo, escolheu correr o mais rápido que pôde para longe.
O Infante assistiu o menino fugir com um sorriso. Depois, encarou Igri, que tentou fugir ao perceber os olhos azuis do sujeito largo travarem em seu rosto. Foi inútil. Vasily a agarrou pelo braço direito, levantando-a do chão.
— Solta ela! — gritou a errante amarrada.
Ele se fez de surdo. Um sorriso surgiu em seu rosto ao ver o prêmio final se debater em uma vã tentativa de se libertar.
— Vasily… Está atrasado — disse a asteni.
— Prefiro dizer que cheguei na hora certa — respondeu. Depois, virou sua vista para a moça imobilizada. — O que faço com a mulher?
— Essa aí causou problemas de mais pra mim. — Fez uma cara de nojo ao lembrar de Gurvralo. — Leve-a para o forte. O frade dará um destino apropriado pra ela.