A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 45
Repleto de comerciantes de frutas e vegetais, artesãos e engraxates, a praça de Zhilan o Libertador estava mais para uma feira livre do que uma área de lazer. Pessoas se amontoavam ao redor de barracas, criando uma massa difícil de atravessar. Essa seria a visão de Tadeu e Marí se não fosse pela insistência de Udil, que continuava a relutar enquanto cavalgava em direção ao lugar.
— Já disse que não ponho meus pés sobre aquele antro de perdição! — declarou. — Não acham que já estou fazendo um favor grande o bastante só por oferecer os cavalos da paróquia?
Tadeu, que dividia o cavalo com o religioso, esgueirou-se para tentar convencê-lo:
— Presbítero, eu não sou daqui e ela não vem faz um tempo. Talvez a gente não consiga se guiar por aqui.
— Ouça ele, tio. As coisas podem estar diferentes, é possível que eu me perda.
— Perdida você está desde entrar no Sindicato!
— Por favor, não comece de novo… — Ela se inclinou para o cavalo e sussurrou: — Obrigado por me ajudar daquela vez. Só tenta soltar o cabelo quando eu pedir.
O religioso suspirou ao ser confrontado com um drama digno de uma peça teatral.
— Já que meu tio é um cabeça dura, eu descerei aqui mesmo. — Ela parou o cavalo e cumpriu sua palavra. — Vamos, Tadeu, seguiremos a pé.
Udil parou o cavalo, permitindo que o sulista descesse. Depois foi a vez dele de abandonar a cela, tomando os cabrestos do animal e se aproximando da dupla.
— Acho que nossos caminhos se dividirão outra vez, Constanikaya.
— Sim. — Deixou o atrito de lado e focou no familiar. — Vou sentir sua falta, tio.
Ele tomou a destra da jovem e deu um beijo nas costas da mão. Depois, beijou o próprio polegar e tocou a testa de Marí com o mesmo, fazendo-a fechar os olhos.
— Que Kolur, Faor e o Um possam guiar teus passos pelas veredas da dor e da angústia, guiando-te para as do amor e da paz. — Um sorriso mútuo surgiu após a bênção. — Tomem cuidado. Danuvralo não é uma cidade tão segura quanto era antes do golpe demoníaco de Juno.
— Levarei isso em conta, tio.
Antes de deixá-los, Udil pôs as duas mãos nos ombros da sobrinha. Seus olhos ameaçaram ceder às lágrimas, mas o presbítero se controlou.
— Trate de voltar viva, eu estarei te esperando. Junto de Constan e Katya. Que seja a vontade de Faor.
— Que seja a vontade de Faor.
— Bem — tomou as rédeas dos dois animais —, vou ter que voltar com dores, já que os dois jovens pegaram a parte fácil e não vão ter que levar dois cavalos a pé.
Tadeu e Marí deram uma gargalhada curta com o martírio do religioso. O homem retribuiu com um sorriso breve enquanto partia e acenava. Após poucos passos, Udil se voltou para a dupla. Apontou para o rapaz sem encurtar a distância. Havia esquecido algo.
— Tadeu!
— O que houve, senhor Udil? — disse confuso.
— Não lute contra o mal com as armas que ele criou em você. Use as que ele nunca poderia te entregar.
O mercenário assentiu, mais para evitar um sermão do que por concordar com as palavras do homem.
A feira não se resumia a praça principal. A região inteira detinha dezenas de comerciantes variados pelas ruas, mesmo que fosse em uma quantidade menor fora do ponto principal. Já naquela distância era possível achar falsificadores, traficantes de drogas e cargas ainda com o selo do dono original. O volume de escória rivalizaria uma prisão.
— Não é muito esperto deixar essas coisas à mostra — o mercenário concluiu —, um guarda pode desconfiar da “mercadoria”.
— Nem sempre foi assim. Antes da guerra, esses… “nobres comerciantes” ficavam mais em guetos. Como os membros da polícia são oficiais aposentados ou fora de serviço, boa parte deles acabou voltando à ativa por conta da guerra. Quase não existem guardas hoje em dia.
— Então é igual como na República? A gente que acabava fazendo patrulha nas cidades.
— Quem dera. Pelo que me contaram, têm partidaristas republicanos por todo território monarquista. Os poucos soldados que deviam guardar as cidades estão caçando guerrilheiros.
Tadeu se lembrava dos tais partidaristas. Quando fora julgado pelo Conselho Republicano, Rovibar, Tiso e Lodrovi deram uma lista de áreas onde os homens estavam ativos. Junto dela, uma carta com o selo do Conselho, garantindo que ele e seus companheiros serviam ao regime de Carasovralo. Aquela era seria sua carta de alforria no dia que capturassem a Filha de Kolur.
— Me diga, Tadeu… O que o meu tio queria com você? — Tomou curiosidade. — Como ele disse mesmo? “Não lute contra o mal com as armas que ele te deu, mas sim com as que ele não pode te dar”, ou algo assim. O velho parece inspirado hoje.
— Ah, nada de mais. — Se esquivou de contar o assunto principal da conversa. Ainda sim, sentiu que precisava ser sincero com a moça. — Só falou um monte de lições de moral pra mim.
Marí ressoou uma risada exagerada que atraiu os olhares dos vendedores e clientes ao seu redor. Vendo a reação das pessoas em sua volta, Tadeu desviou o olhar para longe da moça, pedindo que ninguém pensasse que ele estava com a mesma.
— O velho Udil é assim mesmo! Ele entrou para a Igreja de Kolur e virou o bastião da verdade de toda a nossa família, então não dê muita importância.
Ele até concordaria em outra ocasião, o problema era que a conversa o deixou pensativo. Não porque concordava com cada palavra de Udil, mas por ter tratado de um assunto bastante pessoal. Não só isso, o presbítero mostrou que, até certo ponto, tinha uma história amarga similar a dele.
Ambos foram postos contra a parede pelas ações alheias, sem que pudessem agir para mudar seus destinos. A diferença era que o tio de Marí descobriu ideais renovados, enquanto ele passou a ser mais questionador da estrutura cruel e implacável do mundo em sua volta.
Ainda sim, podia concordar em partes com a feiticeira no assunto do “bastião da verdade”. Muitos parentes, quando encontram vocações na religião, acabam virando os moralistas da família. Seria de se surpreender se com Udil fosse minimamente diferente.
— Sua família não me parece muito funcional.
Outra gargalhada escandalosa da feiticeira, que, dessa vez, atraiu olhares julgadores das pessoas em volta. Tadeu considerou seriamente ficar calado até encontrar o resto do grupo.
— Por que diz isso? Por que meu pai é do Sindicato e meu tio é da Igreja? — Tadeu fez que sim. — É, justo.
— Seu tio disse que você matou pessoas pelo Sindicato — Tentou um assunto mais arriscado. — Quem foi?
— Está curioso, sulista — disse com um sorriso. — Não acha que está perguntando coisas demais?
— Não acha que eu tenho direito de saber quem você matou? — Mostrou-lhe um sorriso com preocupação fajuta. — Eu posso ser o próximo.
— É — pôs o dedo sobre o queixo —, você está certo. Foram três canalhas: o primeiro era um mercador de escravos. O segundo, um cobrador de impostos que também exigia “tributos próprios”. O terceiro era um bandido que fazia todo tipo de serviço sujo, incluindo matar membros do Sindicato. Por fora, fazia coisas piores.
— Usaram você por causa da habilidade de ficar invisível e criar ilusões?
— Isso foi o que garantiu que o Sindicato me passasse os “trabalhos”. — A tristeza invadiu o rosto alegre da moça. — Foi um tempo difícil. Meu pai estava preso, e eu endividada. Precisava de dinheiro pra comer.
O olhar de Marí se perdeu em meio as palavras. Ela desviou o foco para baixo, mesmo mantendo a cabeça erguida.
Sua vida também virou do avesso após a prisão do seus pais. Pelo que sabia, estavam presos em uma cidadela na cidade portuária de Novaburvo, local do ponto mais ao oriente de todas as nações do Norte e do Sul.
O controle leifanês sobre o local era o grande motivo por tantas nações desejarem o controle do quarto país mais populoso do Leste. Quem controlasse a península ditaria todo o comércio entre o mundo ocidental — Méria, Astênia, Leifúria e o Novo Mundo — e o Sul da Tautânia-Selamica, incluindo as ricas colônias da Ramúria Oriental, produtoras de café, algodão, tabaco e outros cultivos tropicais. Tal conflito tornara a vida dos leifaneses um inferno pelos últimos quatrocentos anos. Gilina, Cistarra e Selamica faziam de tudo para aumentar sua influência sobre a nação.
Em uma dessas aventuras infames, o czarado de Gilina chegou perto da supremacia total. As leis, cidades, costumes e igreja de Leifas foram moldados ao redor das tradições odavitas, o que afetou diretamente a Capacitada. A perseguição ao Sindicato que aprisionou seus pais era um sintoma de uma luta de poder intangível a ela e, mesmo assim, foi obrigada a conviver com a nova realidade.
— No fim, tudo isso acontece porque as pessoas de cima se esquecem fácil que existe gente embaixo. O jeito é aceitar o que jogam na sua cara.
Ao vê-la daquela forma, Tadeu sentiu-se culpado por levá-la a um assunto tão doloroso.
— Me Desculpa. Não sabia que você não queria falar sobre isso.
— Não, você não tem culpa, eu que decidi falar sobre o que me dói. — Marí o encarou. Forçou a mudança de semblante, apagando em partes a dor. — Mas você pode se redimir, soldado. Que tal falar um pouco sobre você?
— Eu? — Ele ficou confuso. — Acho que eu já contei o suficiente sobre…
— Não, não, não! Não me refiro a história do “cabo malvado”, essa eu já estou farta de ouvir. Quero saber da sua família, afinal, agora você sabe bastante da minha.
— Bem… — Coçou a cabeça para encontrar um fato interessante. — Meu pai é fazendeiro. Já minha mãe trabalha de costureira na nossa vila.
A decepção era visível nos olhos verdes da moça.
— Sério isso? Ninguém relevante na sua família? — Tadeu confirmou que não. — Não é a toa que se comporta como um caipira ao ver uma igreja um pouco mais arrumadinha.
Tadeu considerou o comentário um tanto desagradável. Contudo, deixou de lado a ofensa e sorriu junto da sindicalista.
Aquela alegria era uma sensação estranha para o rapaz. Ele, Tevoul, Marí e Nico foram jogados em uma busca involuntária, unindo destinos que nunca se cruzariam por puro capricho alheio. Contudo, sentiu que aquele momento foi um lembrete que, mesmo com as adversidades, ainda era possível encontrar ânimo com aqueles em nossa volta.
“Nem parece que a gente passou por tudo aquilo…”, refletiu o soldado.
— Mas algo não me bate na sua história, soldado. — A feiticeira continuou com sua curiosidade. — Se sua família é de gente tão simples, por que escolheu a profissão que tem?
— Eles pagam bem.
Quando fitou o rosto entediado de Marí, percebeu que a resposta dada foi simplista.
— Além disso, quando você é de um lugar remoto, às vezes é o único jeito de conseguir uma vida diferente, menos esquecível.
— Então era uma busca por glória?
O jovem ficou com o olhar perdido em meio a reflexão. Talvez ele tivesse entrado na vida de mercenário por um reconhecimento futuro, mas a verdade era que nem mesmo ele sabia exatamente o que o levara até ali, muito menos o que fizera para que sua vida mudasse tanto do curso. Era um mistério que talvez nunca descobrisse.
— Acho que no início eu acreditava em algo assim, mas hoje acho bobagem. Agora, eu sei que não tem como um soldado conseguir o essa fama. — Voltou a olhar para o caminho à sua frente. — Os que ganham histórias sobre o seu nome são aqueles que podem apontar para um lugar no mapa e podem dizer “é meu”.
— É, pode até ser. Mas não acha que entrar em território hostil e capturar uma Filha de Kolur debaixo do nariz da coroa e da Igreja não seria uma história boa o bastante para ser contada?
Tadeu precisou de meia dúzia de passos para pensar em uma resposta apropriada.
— Acho que preciso sair vivo primeiro pra pensar nisso.
— Um pouco de otimismo não faz mal, sabia?
— Socorro! — uma nova voz gritou.
A dupla desviou a vista para a esquerda, de onde viram um garoto correndo, com os braços abertos, aterrorizado como um gato de rua ao ouvir um barulho desconhecido. Ele correu da rua lateral em direção aos dois, caindo a poucos passos dos dois.
Tadeu e Marí tentaram socorrê-lo, mas o pequeno pôs-se de pé primeiro. Ele deu dois tapas na camisa e os encarou com o mesmo rosto aterrorizado de antes.
— Tudo bem, garoto? — perguntou a ruiva. — Parece que viu um fantasma…
— Foi pior! — Começou a gesticular uma explicação, mas não conseguiu formar uma frase sequer.
— Calma. — Ela tentou apaziguar-lo. — Tem alguém atrás de você?
— Não, senhora, eu…
— Senhorita.
— Não, senhora senhorita, foi com as moças que me ajudaram!
“Um assalto? Nessa hora do dia? Essa cidade está perdida mesmo.”
— Uma moça e um homem estranho estavam atrás da gente, elas tentaram lutar, mas a mulher sabia alguma magia com ferro!
A sindicalista sentiu a espinha gelar. Ela se voltou para Tadeu com a mesma cara de espanto da criança, mas, ao contrário dele, Marí sabia quais eram as implicações daquilo.
— Por que essa cara? — o mercenário de preocupou.
— Acho que estamos com problemas.