A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 47
O mercenário arregalou os olhos como em um susto, sentindo seu peito ofegar. O suor pareceu rasgar seu pescoço de maneira gélida, e ele sentia a atmosfera abafada sufocá-lo à medida que compreendia sua situação.
A sala em que estava era tão escura quanto quente. Seu ar era pesado e úmido. Parecia-se com uma sauna, porém sem o conforto que normalmente se espera de tais ambientes. O chão era pegajoso, mas, na escuridão, Tadeu não soube destingir se era lama, lodo, ou uma mistura de ambos que o enlaçava.
Seus olhos se adaptaram lentamente ao escuro da cela. Tentou se mover, mas recebeu uma novidade repetitiva e indesejada: estava amarrado pelos pés e pelos braços.
“Capturado outra vez…”, lamentou em um conformismo pouco inspirador. “Eu já devia ter me acostumado a essa altura.”
Assim que concluiu o pensamento, escutou a porta de ferro à sua frente ranger, o que providenciou-lhe raios de luz incômodos aos seus olhos. Quando forçou a vista a adaptar-se a nova iluminação, reconheceu o homem que despontou do lado de fora, graças aos seus cabelos loiros e olhos claros, além do tamanho exacerbado de envergadura.
Vasily sorriu ao vê-lo naquele estado. Murmurou poucas palavras para um homem de uniforme branco com detalhes vermelhos e o dispensou, adentrando o cativeiro do sulista na sequência.
— Está com fome?
Ele estranhou a pergunta, mas balançou a cabeça na negativa. A confusão que perturbava sua mente era difícil de esconder, e o leifanês não a deixou passar desapercebida.
— Sabe, quando eu soube que havia um sulista trabalhando com o Sindicato, não pude deixar a curiosidade de lado. É o tipo de coisa rara por aqui, já que a Igreja de Goren é tolerante com o Sindicato. Agora, imagina como me senti ao descobrir que, na verdade, era um mercenário em serviço da República!
— Como…
“Essa tontura…”, a descoberta foi inevitável. “Eles devem ter um Desencorporador com eles, como Leivas!”
— Tadeu Ávera, de Gunere, correto? — A resposta não veio. — Meu nome é Vasily Proratzy, Infante avançado da Igreja de Kolur.
— O que você quer?
— Nada, eu já sei de tudo. — A gargalhada saiu crescente e grave. — História curiosa a sua, devo admitir, mas não acha entregar a garota ao conselho um tanto egoísta?
— Melhor do que deixá-la na mão de um desgraçado como seu chefe.
— Palavras corajosas para alguém com o destino fora do alcance das próprias mãos.
— Eu soube do que fizeram com a menina. Transformaram ela num fantoche sem alma pra que ela servisse ao frade. Isso sim é egoísmo.
Vasily olhou para trás, chamando um guarda, que lhe trouxe um banquinho. O Infante posicionou o objeto frente ao mercenário, para que pudesse ter uma conversa face a face. Sentou-se desgarrado de etiqueta.
— Tempos difíceis exigem homens fortes, Tadeu. O frade apenas fez o necessário para expurgar o demônio republicano dessa terra santa.
— “Homem forte?” Ficar escondido atrás de uma criança é força?
— Claro que um soldado como você deve acreditar que só a força dos braços é real, mas, sim, Astovi é um homem forte. Afinal, o que é a força senão a vitória da vontade de alguém? — Estendeu os braços, como em uma grande revelação. — A verdade é que, no fim das contas, você daria tudo para ser como ele.
“O quê?!”, pensou com surpresa, que também se manifestou em seu semblante.
— É incrível como as pessoas amam ser hipócritas. — O sorriso de Vasily cresceu. — Por que você acha que aceitou a proposta dos republicanos? Para poder pisar em alguém, assim como fizeram contigo. Só para sentir um pouco do gosto que é ter controle da própria vida, coisa que um plebeu como você nunca saboreou.
— Cala a boca — falou Tadeu, mais por aborrecimento que por raiva. Ele estava cansado daquela conversa inútil.
Para sua surpresa, o sujeito riu do seu comando e se levantou, encarando-o com escárnio.
— Acho que você não me entendeu o que eu disse, sulista. — O loiro tomou o banquinho que sentara na mão destra. — Gente feito você não dá ordens a ninguém.
Vasily arremessou o assento contra o rosto do mercenário, que tombou devido as amarras. Depois disso, chutou-lhe contra o peito, contra o estômago, em suas pernas e rosto, sempre com a feição de alguém que desfrutava cada segundo do que fazia.
— O que acha, sulista?! — bradou triunfante. Repetiu a sequência de pontapés contra o rapaz amarrado, que sequer conseguia grunhir da dor torturante que sofria. — Você não tem voz, desgraçado!
Cada ataque pulsava em dor fervente pelo mercenário. Ele sentiu seu estômago revirar enquanto suas entranhas aparentavam querer saltar de seu âmago, e todo golpe contra sua caixa torácica lhe arrancava o ar.
Mas cessar estava fora dos planos do Infante. Chutou as pernas e costelas do rapaz a todo momento, pausando apenas quando notou o prisioneiro amarrado gorfar uma mistura de sangue e saliva. A imagem do moço impotente colocava-lhe um sorriso nefasto. Poucas coisas satisfaziam Vasily como ver sua vítima sem fôlego, procurando ar em uma cela abafada, que dificultava cada inalação.
— Patéticos, todos vocês. — Ele se agachou, ficando de cócoras a centímetros do rosto sofrido, mas encolerizado de Tadeu. — Esqueça essa esperança fajuta de ter liberdade. Você não nasceu para definir o destino de outros, mas sim para ter o seu escrito por quem tem esse direito.
— Desgra… — A tosse impediu-lhe de amaldiçoar seu captor.
— Viu só? Sequer consegue falar.
O Infante caminhou até o banquinho arremessado, apanhou-o do chão e seguiu para a saída, de onde olhou o moço com satisfação.
— Quanto mais cedo aceitar, melhor. — Sua boca alargou, permitindo que seus dentes ficassem à mostra. — Você não é melhor que um escravo. Nunca foi.
Em um baque estrondoso, o mercenário viu a porta se fechar feito um último ataque de seu adversário. Aos poucos, a adrenalina passou, e ele pode sentir cada um dos machucados arderem dos seus pés ao seu peito, latejando como uma centena de marteladas em pleno ataque contra uma bigorna de carne.
Enquanto contorcia-se no chão, sua respiração voltava ao normal com um ritmo desregular, obrigando-o a forçar seus pulmões o máximo que pôde em meio a atmosfera úmida e pesada da masmorra.
Porém, ao apontar seu corpo para o teto, sentiu o peso da situação afrouxar. A escuridão ao seu redor pareceu amenizar a dor e a falta de fôlego. O silêncio da cela também proporcionava-lhe um certo alívio. Mesmo que seu corpo pinicasse do pescoço às canelas, deixou que o cativeiro o hipnotizasse com sua quietude repentina.
Balançou a cabeça para os dois lados, como se procurasse por algo. Depois, olhou para o topo pela segunda vez. Os golpes passaram a afetar-lhe menos. Era um guerreiro, no fim das contas. Esperava-se que ele aguentasse coisa pior do que uma surra no campo de batalha.
Suas íris vagaram pela madeira do teto, como guias de seus pensamentos encharcados por tudo de errado que lhe aconteceu até ali. Mais uma vez, Tadeu teve seu destino roubado. A única fagulha de esperança que o restou fora-lhe arrancada tão abruptamente quanto sua vida anterior à primeira desgraça.
— Merda… — sussurrou enquanto sua mente começava a processar a situação. Espremeu os olhos com força e chacoalhou seu corpo, sentindo a vontade de gritar, mas se conteve. — Que merda eu tô fazendo?
Estava só, sujo e derrotado. Mesmo sozinho, as lágrimas não vieram. Parecia que nem seus olhos podiam acalentá-lo da miséria que sua vida havia se tornado.
Tudo o que desejara, desde o princípio, era uma vida mais emocionante do que o interior do Império de Selamica, viver sua própria aventura. Mas tudo ruiu sem que ele sequer soubesse o porquê.
Primeiro, Leto o acusara injustamente. Depois, o Conselho Republicano o lançara em uma missão suicida, sem ao menos lhe dar um julgamento apropriado. O Sindicato também parecera não entendê-lo, pedindo que se sacrificasse por algo que eles acreditavam ser mais nobre. Por fim, fora jogado em uma masmorra escura e fria, descartado feito um roedor de carniça que vaga pelas ruas.
— É, senhor Udil… Você errou — murmurou, depois forçou sua cabeça a repousar para a direita, o lado mais seco. — No fim, justiça é inútil quando não se tem poder.
Apesar de considerar o loiro um louco desiludido com a própria grandeza, o que ele lhe falara o pareceu pouco absurdo. O mercenário nascera destinado para ser alguém sem poder, fadado ao esquecimento após seus anos em vida passarem, e foi justamente quando tentou mudar sua predestinação que o mundo virou de ponta a cabeça para pará-lo, como uma conspiração para interromper os sonhos dos menores.
“Talvez seja por isso que os republicanos começaram tudo isso. Quando não se tem destino, toma-se à força. E quem não pode fazer isso… é engolido.”
Tadeu pensou que havia começado a compreender o poço de iniquidade chamado “mundo”. O livre-arbítrio era um paradoxo: quanto mais um o detinha, mais este precisava arrancar o das pessoas em sua volta. Uma verdade incômoda, mas, aos olhos de um militar, era óbvia: o poder em uma hierarquia de força era definida pela quantidade de almas que um único indivíduo era capaz de decidir sobre.
Príncipes, generais, oligarcas e imperadores eram a evidência final da terrível teoria. Se ele quisesse ascender, ou mesmo sobreviver, teria que aceitar a regra na qual o mundo fora fundado.
“Se essa é a música… Então vou ter que dançar no ritmo.”
Sua decisão fora tomada. O soldado poderia se encontrar na sua hora mais sombria, no mais profundo oceano das decepções, mas a esperança era o tipo de chama que cintilava mesmo debaixo da pressão da maior das fendas marítimas.
Primeiro, ergueu seu tronco, sentando sobre o chão. Tentou se mover para achar alguma brecha nas amarras que o seguravam do tronco às canelas, mas logo notou o bom trabalho feito pelo inimigo.
“Merda, preciso achar um jeito de me soltar, rápido!”
As chances de escapar eram baixas, mas a adversidade seria incapaz de pará-lo, muito menos de fazê-lo ignorar a hipocrisia das moiras. Tadeu decidira tecer a própria história.
***
Dentro da zona urbana de Danuvralo, o clima era bem mais ameno. Nico, Tevoul e Levias andavam pela praça onde estava o infame mercado, repleto de todos tipos de comerciantes de índole excepcional.
Cabanas se estendiam de uma ponta a outra do espaço, criando um corredor movimentado e vívido. Era denso o bastante para tornar o trânsito uma tarefa difícil, obrigando o mercenário a costurar por clientes e comerciantes para se aproximar dos outros dois membros da trupe.
— Olha o que eu encontrei, feiticeiro! — Ele mostrou uma bolsa repleta de cilindros de tecido colados um ao outro para Levias, parecidos com charutos. — Serve para guardar cartuchos de papel prontos nesses bolsos.
O ruivo passou o objeto pelo pescoço e tentou o vestir como uma bolsa, mas notou que a alça era muito curta, parando pouco abaixo de sua axila.
— Usas de maneira errônea, Tevoul — explicou Levias. — É uma gazyr, não uma bolsa. — Ele a tomou e a vestiu, pondo o conjunto de cilindros sobre o peito direito. — Normalmente, usam-se duas, uma para cada lado do seio. Isso é criação dos anões do Sul, herdada aos cossacos do rio Rovta.
— Achei muito útil! — Ele encarou o major como uma criança. — Tem como…
— A gente não tem dinheiro pra comprar besteira, ruivinho. Coloca de volta.
Com seus sonhos destruídos pelo major, Tevoul devolveu a gazyr ao comerciante. Em seguida, o ex-oficial republicano retirou algumas notas do bolso da jaqueta marrom e entregou ao comerciante, que agradeceu pela troca que fizera antes, um punhado de balas e um chifre de pólvora.
Porém, era fácil notar que algo estava errado com o homem mais velho da trupe. Nico mexia o tempo todo no colar, sempre desviando a vista para uma região específica, provavelmente na direção da garota.
— Acho que Nico está a par de algo que nós desconhecemos — Levias sussurrou para o mercenário atirador.
Tevoul fitou o major e viu a mesma cena que seu colega de jornada.
— Tudo bem, major?
— Nada… — disse com a voz estranhamente mansa. — Só… Senti o peito apertar por um instante e depois afrouxar.
— Elas estão por perto? — indagou o ruivo.
— Não, é diferente. Senti uma angústia, um desespero… Acho que algum bastardo pegou elas antes de nós.
Os dois esbugalharam os olhos.
— Merda, e o Tadeu nem voltou com a feiticeira ainda…
— Tenham calma, senhores, creio que…
— Achei vocês! — ouviram uma voz feminina familiar.
Olharam para o final do corredor quase infinito de barracas e pedestres, onde viram uma mulher de camisa branca e saia negra longa correndo em sua direção. Os cabelos ruivos revelavam se tratar de Marí. Seu rosto assustado e sua respiração ofegante só aumentaram a angústia entre os membros do grupo.
Ela parou ao lado de Tevoul, apoiando a mão esquerda no ombro direito dele, recuperando o ar após a corrida.
— O que aconteceu? — indagou Nico.
— A asteni… ela pegou a menina… Eu e Tadeu tentamos lutar contra eles.
— Certo, mas o que aconteceu com ele?
A sindicalista esperou ter o mínimo de fôlego para dar uma resposta.
— Acho que vocês não vão gostar de saber.