A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 48
Com a descida gradual e serena do astro diurno, a noite se aproximou do castelo de Danuvralo. Ela seria particularmente escura. A lua minguante permitiria que as trevas tivessem um domínio quase absoluto dos bosques às torres dos vigias, quebrado apenas pelas escassas velas que cobriam os corredores de pedra da fortaleza.
Nas celas da masmorra, então, a umbra vencia a luz de maneira total. As poucas fagulhas de luminosidade que escapavam para além dos portões de ferro vinham da ronda ocasional dos soldados alvirrubros, quando carregavam seus lampiões consigo.
Tadeu observou cuidadosamente o passar do tempo. A paciência era sua única companheira, considerando que apenas ela poderia melhorar as chances do plano que inventara durante o tempo que se passou.
A espera e a escuridão eram suas aliadas naquele instante. Todo resto lhe atrapalharia.
“O único problema será se forem mais de dois soldados”, alertou-se mentalmente. Depois, rangeu os dentes, irado com si mesmo. “A quem eu quero enganar, só dois já é problema…”
Sentiu a coragem lhe faltar por um tempo, mas soube afastar o sentimento. Precisava de foco. Lembrou-se de como, durante sua jornada, nunca possuiu a vantagem em suas mãos e, apesar de tudo, ele se sobressaiu em todas as oportunidades. “A sorte ajuda os audazes”, Tadeu recordou ao seu lado hesitante, que, por sua vez, trouxe de volta o pedido do capitão Cefas para que ele não abusasse do provérbio.
“Me desculpe, capitão Orleno, mas vou ter que fazer outra exceção”, pensou, enquanto seus olhos se viravam para a porta.
Juntando as forças que seu corpo amarrado conseguia reunir, deu um pequeno salto para pôr as solas do seu par de botas no chão. Ficou de pé sem grande esforço. Fez os últimos ajustes para se apontar à única saída, como um cabo artilheiro faria com seu canhão carregado. Tomou fôlego e deu pequenos saltos preparatórios. Ao pousar após o derradeiro, arrancou em busca da liberdade.
Ele lançou seu ombro contra a porta metálica, causando um impacto ecoante por toda a prisão. A dor foi quase instantânea. Lembrou-se, da piora maneira possível, do que era feita a saída.
Caído no chão, encarou a luz fraca das velas que escapava da pequena janela. Ninguém.
— Acho que vou ter que acelerar o processo.
Ajeitou seu corpo, de tal forma que seus pés se alinhassem com a porta. Dobrou os joelhos e martelou contra a chapa de ferro que o mantinha refém. Repetiu o golpe inúmeras vezes. Cada impacto do metal o deixava mais próximo do que queria.
“A qualquer momento…”, curvou as pernas novamente, para um novo golpe.
— Que inferno! — gritou um guarda, sua voz se aproximando junto de três pares de botas ecoantes. — Acha mesmo que vai conseguir quebrar essa porta?!
Tadeu interrompeu de imediato seus ataques contra o ferro.
“Merda, são três!”
Mas era tarde demais. O plano teria que prosseguir, qual fosse o custo cobrado. Ele afastou seu corpo para longe da porta, a fim de não ser golpeado quando ela abrisse, e apontou o rosto para o chão, para ocultá-lo dos captores.
Escutou um molho de chaves balançar do outro lado, acompanhado de murmúrios intermitentes. Um sorriso quase forçado nasceu em seu rosto com o ranger do portão.
— O que você quer, sul…
Quando o portão se abriu, o trio pôde ver o prisioneiro em uma crise de tosse. Ele tomava ar e tentava expelir algo de seus pulmões a todo instante, contorcendo seu corpo sem qualquer ritmo.
— Tsonyr, acho que ele se engasgou. — O soldado mais à esquerda levantou a hipótese.
Viram-no tentar se virar para eles. Mesmo em pouca luz, era óbvia a falta de ar que o acometia.
— Merda… — Tsonyr lamentou. — Pior que ele nem deve conseguir explicar o que sente. — Olhou para seus dois soldados, seus subordinados diretos. — Yuri, Daziki, as cordas atrapalham os pulmões dele. Ajudem-no.
Ambos assentiram. Eles tiraram as suas espingardas do ombro, apoiando-as na parede de pedra cheia de musgo da cela. Os dois prosseguiram mais para dentro do cativeiro, mantendo a calma para acudir o mercenário que chacoalhava de um lado para o outro, aparentemente tomado pelo pânico.
O mover constante do prisioneiro dificultava o resgate, mas, ainda sim, a dupla em fardas coloridas em branco e vermelho continuou com sua tarefa. Primeiro, desfizeram o nó. Depois, esforçaram-se para livrá-lo das amarras quase infindáveis, alheios do que os aguardava.
Mantendo a tosse e o pânico fajutos, Tadeu sentiu o abraço das cordas afrouxar ao redor de seu corpo, correndo por seu torso e pernas. As voltas ao seu redor diminuíram conforme os dois soldados puxavam, até que se sentiu totalmente livre.
Mesmo querendo manter a atuação, deixou um sorriso escapar.
Com as duas mãos, o mercenário agarrou o guarda da direita pelo colarinho e o empurrou contra o seu vizinho, tombando-os pelo seu flanco esquerdo. Ele se pôs de pé e viu o terceiro na porta a sacar sua pistola do cinto.
Tadeu pulou em sua direção, chocando seu corpo contra o líder do trio, que soltou sua pistola após cair abraçado com o prisioneiro rebelde. Ambos tentaram retomar o equilíbrio e correram em direção a garrucha largada. Com o ombro, o sulista golpeou seu adversário, que contra-atacou agarrando suas pernas, fazendo-o cair contra o solo enlodado da prisão.
O alvirrubro se ergueu e avançou contra o mercenário, mas, antes que pudesse agir, viu o cano frio de sua própria arma mirando contra ele.
Sua espinha gelou. Ele levantou os braços para que o sulista pudesse os ver, já rendido. Enquanto isso, seu prisioneiro se ergueu com calma e parou a poucos passos dele.
— Consegue me entender? — perguntou Tadeu. O sujeito confirmou relutantemente. À sua retaguarda, seus dois rapazes se recuperaram do susto e despontaram pelo corredor, ambos portando seus mosquetes. Apontaram as espingardas para o mercenário. — Diga pra eles largarem as armas.
O leifanês expirou, aceitando a derrota. Fitou seus dois soldados e balançou o braço, indicando que abaixassem suas espingardas, ordem prontamente obedecida.
Depois, Tadeu o fez se virar de costas, e o obrigou a encarcerar seus dois subordinados na mesma cela que o detinha. Também ordenou-lhe que se despisse da sua espada curta e uniforme.
Sem esperanças, o sujeito obedeceu ao que lhe era exigido. Retirou seu uniforme e ficou apenas com suas calças e camisa branca, bem como abandonou sua única forma de autodefesa para o seu captor. Agora, estava com sua sorte nas mãos do estrangeiro.
Com cuidado para manter seu refém em sua vista, o jovem moreno vestiu o uniforme alvirrubro e prendeu o sabre roubado na cintura. Olhou de um lado para o outro e, ao ver que estavam sós, guardou a garrucha no cinto e desembainhou o sabre de infantaria, apoiando a ponta contra as costas do refém, que, mesmo assustado, parecia aceitar o que ocorria.
— Qual o seu nome e patente?
— Tsonyr Urozets. Sou cabo — falou pausadamente, sua ansiedade passou a afetar sua respiração no ambiente abafado e musgoso.
— Certo, Tsonyr. — Tadeu olhou de um lado para o outro pela segunda vez. — Entra na cela e pega o uniforme de um dos dois lá dentro.
— O que você quer comigo?! — Demonstrou toda sua apreensão.
— Não se preocupe. Só me mostra a saída que nada acontece.
***
Longe da masmorra, sob a luz do sol quase ausente que corria das janelas, Rudon rumou para a parte administrativa do forte, a fim de falar com o oficial encarregado pelo local. Boatos corriam que o marechal Juno derrotara as forças de Garuín em batalha e que marchava para o território monarquista com o grosso de sua força, pondo Danuvralo direto na linha de frente.
Ao contrário do beemote de Bulirka, que segurou o exército pró-czarista por três meses, o castelo em que a asteni se encontrava era mais para uma cerca de jardim do que para um bastião. Em seu auge, fora uma fortificação respeitável, mas a era da pólvora tornou seus quatro muros e torres obsoletos. Desde então, era usado há tempos como prisão, e a guerra o fez uma base importante para o Exército Real Leifanês.
Enquanto caminhava, Rudon notou a larga figura do seu parceiro escorada em uma parede com os braços cruzados. O loiro vestia uma capa branca sobre o uniforme também alvo de contornos dourados, dando-lhe um ar de autoridade adicional.
— Alguma notícia do frade? — perguntou ela.
— Sim — Vasily respondeu. — Pelo que ouvi, ele conseguiu convencer o Patriarca de Revragova a lhe dar o controle das Brigadas Santas.
A mulher de pele escura esboçou um rosto surpreso.
— O Patriarca autorizou isso? Pensei que ele estivesse de inimizade com o frade.
— E ainda está. A relação de ambos estava azeda por conta de Astovi ter inoculado a Filha de Kolur sem a autorização direta dele, e depois de perder dois Infantes pro Sindicato em Gurvralo, o velho Oleg está mais furioso que antes. Ele só aceitou entregar as Brigadas Santas porque Astovi lhe garantiu que capturaria a menina se tivesse todo o suporte possível.
— Então o Patriarca também quer se meter no assunto. É certo que ele deseja a menina também.
Vasily acenou com a cabeça, mostrando seu sorriso ardiloso.
— Nosso chefe só está com as Brigadas Santas porque os interesses dele e do Patriarca se alinharam, mas é temporário. Oleg está do lado do Grão-Mestre Maravi e da princesa regente agora.
— Malditos hipócritas… — Rudon ansiou por amaldiçoá-los. — Todos imploravam por um meio de vencer a guerra, alguns até apoiaram Astovi, mas agem como guardiões da moral hoje. Quanta ironia.
— Lógico que se consideram “guardiões da moral”, asteni. No fim, todos são pessoas boas se agirem dessa maneira. Talvez um dia percebam que o mundo não é feito para a bondade e que esse moralismo é inútil. — Vasily umedeceu os lábios com prazer. — Uma pena que desconhecem a sensação que é ter o poder sem serem presos pela hipocrisia.
A mulher de pele escura o desprezou com o olhar.
— Pare de torturar os prisioneiros, temos Desencorporadores suficientes para retirar as informações necessárias.
— Sei disso. — Ele a fitou com os dentes escancarados. — Você se sente no lugar deles, não é? Vinda de onde vem, é lógico que não entende, afinal, como esses sem culotes, não nasceu para possuir nada.
Os dentes de Rudon rangeram em meio as gargalhadas do homem.
— Até outra hora, lefúrio.
Ela o deixou para trás em meio a passos odiosos. O único alívio que sentia era que já tinha a garota em mãos. Quando tudo acabasse, nunca mais teria que olhar aquele sujeito na vida.
Foram necessários múltiplos passos, três curvas e duas portas para encontrar a saída do forte. O homem que procurava, tenente Mikhail Prazhivi, estava do lado de fora do lugar, acompanhado de dois cabos alvirrubros. Vestia um uniforme nem tão enfeitado quanto o de um coronel, porém longe da simplicidade do de um praça.
Observava a ponte de madeira em frente ao forte. Vários dos seus soldados estavam debaixo dela, amarrados por cordas, enquanto faziam algum tipo de procedimento a poucos metros acima da correnteza.
Para sua dor, o escuro crescia mais rápido que o trabalho. O comandante monarquista tinha que fazer vista grossa no processo, uma vez que seria impossível terminar o procedimento em dois dias distintos.
— O que eles estão fazendo, tenente Prazhivi? — a mulher perguntou, estacionando à esquerda do sujeito.
— Instalando explosivos. Servirá para ganhar tempo quando os republicanos chegarem aqui.
— Os republicanos? Os boatos são verídicos, por acaso?
— Em partes. Juno esmagou, sim, o exército garuísta, em uma batalha tão decisiva que ele se deu ao luxo de enviar um único corpo de exército para a perseguição. Devem haver mais de trinta mil colorados marchando em nossa direção neste instante, mas nada é certo.
— E nossas forças locais?
— Dois regimentos de infantaria, um deles em frangalhos. Não somos mais de três mil guardando Danuvralo. Lutar será tão inútil que é possível que Juno marche sem qualquer oposição na cidade.
— Isso é mal. — A possibilidade dos republicanos capturarem o forte com a menina passou em sua mente. — O marechal Amound conseguiu algo?
— Sim, felizmente. Três novos corpos de exército, as duas divisões que sobraram depois da batalha de Carasovralo, as Brigadas Santas e a Ordem dos Cavaleiros de Erinovi. Devem ser cerca de trinta e seis mil homens. — Apesar das boas notícias, tinha a face de um homem que deixara um velório. — Mas os republicanos também sabem erguer exércitos. Não só ainda há um corpo de exército inteiro na capital inimiga, como eles mobilizaram no norte. É um exército completamente novo sob o general Rovibar, do mesmo tamanho do que lutou em Bulirka.
“Os republicanos têm sessenta mil?!”, ela entrou em choque.
— Nossa esperança era que Juno sofresse baixas devastadoras em Bulirka, mas não foi o caso. O marechal Amound já ordenou que a península fosse fortificada em detrimento do nosso território.
Rudon se aproximou mais do tenente. Pôs a mão ao lado da boca para esconder melhor o conteúdo da prosa.
— Precisamos sair daqui. Vamos dar de cara com Juno se as coisas seguirem…
Os dois ouviram o mato mexer em frente ao forte. O tenente entrou em alerta, procurando pelos cabos que estavam com ele a poucos instantes.
— O que foi isso, oficial? — perguntou a mulher.
— Desgraçados partidaristas… Guerrilheiros, senhorita. Estão por toda a parte, de Danuvralo até Noraburvo. Se não bastasse estarmos em menor número, boa parte de nossas forças estão ocupadas caçando esses ratos republicanos em território regencial. É um inferno.
Um estampido ecoou da fortaleza para o matagal, acompanhado por um pequeno voleio de quatro armas. Mesmo que não pudessem vê-los, os disparos dos alvirrubros eram o bastante para afastá-los.
— Vão ir atrás desses bandidos?
— Isso é exatamente o que eles querem, senhorita. Mandam um ou dois batedores como iscas para nos atrair bosque a dentro. Aí, quando estamos longe o suficiente, pegam os coitados em uma emboscada.
— Então vamos ter que ficar por aqui.
— É o melhor a se fazer. Você e o seu colega tem a garantia de segurança minha e de meus trinta homens contra esses vermes.
Rudon agradeceu o tenente pela cordialidade e retornou à fortaleza. A noite já se tornara dona do firmamento, um verdadeiro convite para partidaristas republicanos operando atrás das linhas inimigas.
O tenente continuou em sua posição até que os explosivos fossem instalados na ponte. Após o procedimento, também se abrigou dentro dos muros, junto da maior parte de seus homens, sendo que dois soldados permaneceram como guardas no exterior.
Era improvável que o marechal Juno chegasse naquela noite, mas todos tinham a sensação de insegurança. Embora em posse da arma feita para vencer a guerra, escapar do fantasma republicano parecia uma tarefa tão difícil quanto ver o que estava ao redor dos muros do pequeno castelo, espreitando na vegetação.