A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 51
Dentro de uma sala iluminada por velas, o comandante da fortificação estava em uma espécie de encontro com a enviada do frade. Sentado no sofá de acolchoado verde, dividia um bule de ervas infundidas sobre a pequena mesa de centro com a mulher enviada pelo frade Astovi.
O tenente Prazhivi despejou um pouco de chá em sua xícara, deixando-a na metade. Pôs o bule delicadamente sobre o móvel central. Depois, após tocar a aseia da chávena de líquido quente, temeu por sua língua, dando um par de sopros para esfriar a bebida.
— Suponho que, para que tenha me chamado, houve alguma mudança na situação, tenente — disse Rudon.
Após um gole, ele tirou o recipiente da boca, mostrando uma careta. Fora mais quente do que esperava. Pôs a xícara sobre o pires com cuidado e encarou a mulher com um rosto contente.
— Parece que a situação é melhor do que imaginamos. Os últimos relatos do reconhecimento garante que o exército de Juno estacionou no sul. É possível que suas linhas de suprimentos estejam sobrestendidas, o que significa que ele terá de reorganizar suas tropas e normalizar sua cadeia de abastecimento antes de nos atacar.
— Pelo menos, não o veremos tão cedo. E quanto aos guerrilheiros? — Ela levou sua xícara à boca. Para ela, o calor do chá foi menos problemático.
— Estranhamente, pararam a movimentação desde aquela hora que conversamos. Os ataques que fazem duram por muitas horas do dia, mas o de hoje parou cedo. Até a aparição deles foi algo estranho, já que fazia duas semanas que não causavam problemas.
— Acha que vão atacar?
— Não, isso não. Eles não conseguiriam nos enfrentar em pé de igualdade enquanto estivermos detrás dos muros. — Mostrou um sorriso orgulhoso. — E o frade Astovi, onde está?
— Conseguiu convencer o Patriarca a entregá-lo as Brigadas Santas — O tenente ficou surpreso. — Possivelmente virá para cá assim que assumir o controle.
— Bom. — Prazhivi tomou outro gole. — Deveriam usar tropas da Igreja desde o começo disso.
Rudon notou a alfineta escondida entre as palavras do oficial, mas evitou responder. Pelo que Vasily havia dito, o exército os apoiava menos a cada dia passado. Irritar o tenente só pioraria o problema.
Três batidas ressoaram da porta do escritório. O tenente desviou o olhar para a entrada, curioso pelo motivo da interrupção. Tinha deixado bem claro que seus homens evitassem interromper sua conversa com a asteni.
— Pode entrar.
A porta se abriu e revelou um jovem soldado em uniforme alvo e escarlate. Ele bateu continência para o oficial e esperou que ele lhe autorizasse a falar.
— Pensei que tinha deixado claro que não desejava ser interrompido. O que houve?
— Encontramos dois homens desacordados nos arredores da mata, possivelmente apanhados por partidaristas.
— Os guardas dos portões? — perguntou, surpreso.
— Sim, senhor, mas isso não é o principal. — O soldado desviou o olhar em uma tentativa de evitar a revelação. — Foram os homens do rodízio de meia hora atrás. Os guardas da hora atual ainda estão desaparecidos.
O tenente mal podia conter sua descrença. Ele encarou Rudon e achou uma face tão surpresa quanto a sua.
— Me leve ao local — falou ao guarda. Depois, Prazhivi fitou a mulher. — Fique por aqui. Podem haver guerrilheiros nos arredores dos portões.
Rudon levantou-se da cadeira, balançando a cabeça em afirmação.
***
Guardados pela ilusão da feiticeira, Levias e Tevoul assistiram dois homens andarem em direção a torre norte. Antes que eles pudessem abrir os portões, a dupla os atacou com as coronhas das armas.
Os dois homens desacordados foram carregados para dentro de um cômodo na lateral do corredor que servia como dispensa. No total, eram seis os alvirrubros desacordados.
A feiticeira fechou a porta com cuidado. Ela encarou o loiro com dúvida no rosto.
— Fez esses apagarem?
— De certo que sim, senhorita. — Levias vestiu a luva com a elegância de um pseudo-aristocrata. — Todos ficarão em sono profundo por tempo suficiente para que possamos sair.
— Ótimo. — Ela olhou para Tevoul. — Nenhum sinal dos outros dois?
Para a infelicidade da feiticeira, ele negou. Mesmo que soubesse que levaria mais tempo do que ele desejava, Marí temia a próxima ronda. Pelo menos metade dos vinte minutos já havia passado.
Sua aflição só piorou ao ouvir o som do portão se abrindo. Com o medo estampado em suas faces, o trio partiu em direção a primeira porta para o pátio.
Eles abriram menos da metade da porta, apenas o suficiente para enxergar o lado externo ao corredor. Haviam pelo menos vinte alvirrubros aos portões. Por sorte, estavam longe da carroça onde esconderam os dois guardas.
Mas a situação ainda era crítica: mesmo sem encontrar a dupla desacordada, os protetores do castelo já deveriam saber da ausência dos vigias externos. Eles podiam desconhecer da invasão, mas, dali em diante, estariam em alerta máximo.
Sob as ordens de um homem vestido feito um oficial, o grupo se dividiu em duas forças. Uma delas, a maior, foi para fora, enquanto a menor retornou ao castelo.
— Contando os guardas dos portões e os que colocamos na saleta, suponho que há por volta de dez soldados no castelo.
— O número parece melhor do que é — disse Tevoul. — Ainda somos só três protegendo a masmorra.
— Precisamos de um plano — afirmou a ruiva.
Levias sentiu-se desafiado. Ele fechou os olhos e levou a mão ao queixo. Começou a elaborar o tal plano, ainda com as memórias de cada guarda que ele desencorporou frescas em seu cérebro.
“Encontrei!”, mostrou um sorriso.
Ele abriu os olhos com a face satisfeita. Ele olhou alternadamente para cada um de seus companheiros, ambos confusos com seu contentamento.
— Creio que, para que nossa fuga seja possibilitada, deveremos explodir esse muquifo.
— O quê?! — os outros dois responderam ao mesmo tempo.
— Lembram que haviam homens trabalhando na ponte? — Os outros dois confirmaram. — Pois então! Instalavam explosivos para conter um futuro avanço republicano. Ainda há um depósito com pólvora neste lugar. Se o explodirmos, causaremos tamanho rebuliço que sequer lembrarão dos supostos guerrilheiros.
Por um momento, os dois ruivos se sentiram na pele de Nico. A fala mansa do rapaz irritava bem mais que o de costume depois de descrever um plano insano como aquele.
— E em que parte você paga nosso caixão? — ironizou o mercenário.
— Entendo sua dúvida, caro Tevoul, todavia creio que não tenhas uma solução viável como a oferecida por minha pessoa.
Era verdade. Nem ele nem Marí pareciam ter algum plano menos maluco para sair de lá.
— Onde fica o depósito? — perguntou ela.
— É logo no primeiro portão lateral do prédio ao centro do pátio. Há alguns barris do lado externo, então tomem cuidado para não se explodirem ao sair.
— Então vamos. Você nos leva até…
— Não — respondeu. — Ajudarei o major e o senhor Tadeu na masmorra. Creio que eles terão mais problemas se ficarem sós.
— Mas você…
O loiro se virou e mostrou-lhes suas costas. Ele balançava seu braço direito em um ritmo lento, como em uma despedida.
— Até mais, senhores — disse com alegria. — Encontrar-me-ei convosco já com a pequena em mãos.
Ele se encaminhou com mansidão em direção a torre norte, sem explicar ou olhar para trás.
— “Encontrar-me-ei?” Que tipo de palavra esse loiro tá inventando agora?!
— Não se importe com isso — disse a mulher, aborrecida com a atitude. — É até melhor que sejamos apenas nós dois.
Feiticeira e mercenário deixaram o corredor em direção ao pátio. Marí criou uma ilusão, ocultando a si e a Tevoul da vista das pessoas que ela conseguia sentir. Ambos atravessaram o portão lateral e rumaram para o armazém.
Levias aguardou a dupla partir com paciência. Quando a porta se fechou, mudou o seu semblante. Esconder era inútil longe do alcance de seus “parceiros”. Com o mosquete de um alvirrubro em mãos, olhou para a baioneta, reconhecendo sua silhueta no metal mal polido.
Era sua missão, afinal. Aquela que foi repassada por Fridevi e pelo Administrador. Um dever que ele teria que cumprir a qualquer custo, até sua vida.
***
No calabouço, iluminado unicamente pelas fracas velas pregadas nas paredes, Tadeu encarava a criatura à imitação de gente. A marionete verde balançava o sabre em sua mão dominante de um lado para o outro, na tentativa de intimidar seu oponente receoso.
Embora o humanoide causasse desconforto, o mercenário de cabelos escuros controlou o medo. O jeito desengonçado da coisa demonstrava que era um oponente fraco.
Porém, uma preocupação ainda habitava sua mente:
“Se o outro ficar pronto, terei problemas”, pensou.
O duelo teria que ser rápido. A vitória dependia de sua capacidade em enfrentar um inimigo de cada vez. Ele olhou para a figura em crescimento, cujas pernas eram formadas, vagou a vista para Vasily, com seu terrível sorriso estampado na cara, e parou sobre o homem de mato à sua frente.
Tadeu saltou em busca da silhueta humana de relva, que brandiu sua espada antes que ele pudesse atacá-la. O mercenário recuou com um salto. Ela tomou a iniciativa, esticando seu braço em um cipó comprido para uma estocada, obrigando o sulista a rebater o golpe para o lado direito.
Ele se atirou contra a criatura enquanto o braço dela voava para o fundo do corredor. Cortou com a lâmina do sabre em direção ao a cabeça da marionete de musgo, perfurando ao meio como se fosse uma melancia.
Contudo, ao contrário do esperado, o golpe mal feriu o ser. As duas partes de seu encéfalo partido se emendaram em uma só, deixando a lâmina do mercenário confuso cravada no lugar onde seu rosto deveria estar.
O mercenário tentou entender o fenômeno, mas cortou o pensamento ao escutar o barulho de um chicote em sua retaguarda. Quando olhou para trás, viu a espada correndo para furá-lo no peito.
“Dessa vez não!”
Ele se jogou no chão em uma cambalhota, tratando de se voltar para seu adversário o mais rápido que pôde. Viu a lâmina do monstro ser cravada contra o seu peito, desequilibrando-o. O lodo em forma de homem cambaleou, mas soube usar de seus pés curtos para evitar uma queda. Por fim, agarrou o cabo da espada com a destra de relva e a arrancou de seu peito, sem demonstrar qualquer ferimento.
“A coisa não morre com um golpe direto”, pensou. Sua mente começou a traçar hipóteses. “Será que ele só morre se o feiticeiro morrer? Se for assim, vai ser difícil…”
A criatura esticou seu braço para outra investida. Tadeu rebateu o ataque para baixo, mas a lâmina dançou como uma víbora atiçada a um bote, buscando-o de baixo para cima, estocando em direção à sua cabeça, errando por conta do reflexo apurado do mercenário sulista, obrigado a retroceder dois passos.
O musgo continuou a serpentear pelo corredor, tentando vitimar o soldado. Ele continuou a bloquear golpe, após golpe, na esperança que uma abertura permitisse um contra-ataque.
Do outro lado, o Infante assistia o embate com uma risada controlada, e sua cabeça meneava em uma negativa.
— Vai precisar de mais que isso para vencer, sulista! — exclamou.
Vasily arqueou o braço para a frente, ordenando a carga da marionete. Ela avançou com seu corpo desengonçado e sua espada brandida ao alto, pronta para partir seu adversário.
Tadeu cruzou a lâmina para bloquear o golpe. Seu braço sentiu em cada fibra a força que o braço de cipó guardou para ele, quase o fazendo largar a arma. Vendo a fragilidade, a criatura contra-atacou com um chute em suas costelas, lançando-o contra as grades de uma das celas.
O tinir da espada no chão foi a prova que o sulista estava vulnerável. Uma estocada avançou contra a cabeça do mercenário, obrigando-o a se lançar contra o chão enquanto se atirava em busca do sabre. Ele agarrou o cabo do espadim e atacou cortou a canela da criatura, facilmente trespassada pelo ferro.
Ouviu-se um bramido de ira dolorosa. A relva em forma de homem o chutou outra vez, porém, ela caiu após perder o contato com o solo. Ela tentou se erguer de toda forma, mas a falta de uma perna a deixou incapaz de se manter ereta.
Do outro lado, o mercenário abatido e ofegante se posicionou de pé. Ele percebeu o comportamento estranho do inimigo logo depois de se erguer. A perna decepada permanecia estática. Seu corpo, por sua vez, tentava se desdobrar para agarrar o cilindro de lodo que Tadeu arrancara, em uma patética tentativa de conectar o membro ao joelho.
Os olhos do rapaz viajaram da perna verde para sua dona verde, e depois para os cipós que conectavam as costas do humanoide aos dedos da destra do marionetista, com a face estranhamente nervosa.
“Precisa ter uma conexão entre ele e o bicho”, mentalizou. “Então, basta cortar os ‘cabos’ nas costas?”
Enquanto se preparava para o ato final, Tadeu buscou a massa de lodo conectada à mão esquerda do loiro. Um arrepio correu em sua espinha ao vê-la quase completa. Suas pernas, torso e braços estavam completos, restando sua cabeça para que fosse totalmente formada. Na sola de seus pés, saiam canais de musgo, similares a raízes, amontoando-se de todos os cantos da masmorra para o corpo do seu segundo oponente.
Enquanto isso, seu inimigo original terminara de religar sua perna cortada, anunciando o reinício da disputa entre carne e vegetal.
“Acho que vou ter pouco tempo pra resolver isso.”
Ele brandiu a espada para o alto, saltando em busca do seu oponente esverdeado. Suas espadas se chocaram com força. A criatura balançou seu corpo molenga para trás, perdendo brevemente seu equilíbrio.
“Agora!”
Tadeu tentou cortá-lo no meio, mas, antes que pudesse, o braço do humanoide esticou em sua direção, forçando-o a rebater a lâmina que voou contra seu peito como uma flecha. Após rebatê-lo, o mercenário levantou a lâmina contra o verde afinado, rompendo o membro esticado como se fosse um cordão tenso.
Gritando de dor, o ser botânico recuou dois passos para se recuperar da perda. Ele girou o esquerdo para trás, estalando no chão seu novo chicote contra o chão frio e escuro do ambiente.
O cipó assoviou pelo ar. Tadeu viu a corda se aproximar de seu pescoço e, antes do choque, ergueu o sabre em um corte diagonal, partindo-o como o anterior.
A chance apareceu na hora certa. O sulista avançou contra a criatura, que o respondeu com uma carga desesperada em sua direção, tentando pará-lo com o choque de seus corpos enquanto se aproximavam.
Antes do choque, o mercenário pulou para a direita, movimento que foi copiado pela abominação de musgo. Mas, antes que ela reagisse, ele saltou para o lado oposto, transpassando o ventre da coisa enquanto pousava no flanco esquerdo.
Os olhos cerrados do soldado encararam Vasily. Entre elas, haviam apenas os cipós que conectavam o humanoide ferido e seu mestre assustado.
— Te peguei, maldito!
— Morra, sulista! — O Infante gritou, puxando seu braço esquerdo com toda a força.
O mercenário disparou em busca do loiro, mas logo escutou um novo rugido animalesco à sua direita. Quando encarou o lado, viu a segunda criatura saltar contra ele, perto demais para uma reação. Seus corpos se chocaram, imprensando Tadeu nas grades da cela ao lado.
Com a espada, o jovem cortou parte da lateral do monstro, permitindo que ele se livrasse da prisão úmida. Após recuar, ouviu um novo rugido, vindo da primeira criatura. O ser saltou em sua direção com seu braço reconstruído, portando o sabre outrora perdido.
Tadeu rebateu a lâmina adversária para baixo. Com o ombro, chocou-se usando toda sua força com o corpo do lodo ambulante, desequilibrando-o suficientemente para permitir que saísse da disputa de dois contra um.
Quando ele recuou para o fundo do corredor, seu rosto espremeu em frustração. Seus dois oponentes se reconstruíam lentamente. À frente, o primeiro liderava a dupla com a arma erguida para cima, enquanto o segundo, que o separara da vitória iminente, esticou seu braço até seu mestre, agarrando o cabo da espada presa em sua cintura. Na retaguarda, um muro frio de pedra.
Nada mais poderia ser feito. Tadeu estava encurralado, deixado à misericórdia do rosto nefasto que o encarava com escárnio.
— Lutou bem, sulista, mas eu não disse nenhuma mentira. — Vasily alargou a boca, mostrando seus dentes eufóricos. Seus braços levantaram enquanto o jovem adiante se preparava para a luta que o mataria. — Eu sou dono do seu destino, sulista! Agora morr…
Um calafrio percorreu o corpo do loiro. Ele olhou de um lado para o outro, e depois encarou a retaguarda. Passos soavam do corredor do portão. O Infante deu as costas ao sulista e balançar seus braços em direção ao lado oposto de Tadeu. Suas marionetes obedeceram com uma corrida para a esquina do corredor, avançando em um ritmo desengonçado de puro pavor.
Os monstros de relva saltaram na esquina assim que o estampido soou. Musgo voou de suas cabeças estouradas. Seus corpos desabaram no chão, debatendo como o rabo de um réptil fujão.
Vasily puxou os cipós das marionetes em sua própria direção, ordenando que voltassem para protegê-lo.
— Maldito sulista! — gritou ao fitar o mercenário confuso às suas costas. — Quem mais está aqui?!
Tadeu estava mais surpreso que ele, sem entender o motivo de seu desespero, muito menos o do ataque sofrido pelo Infante. Contudo, ao ver a silhueta se desenhando da esquina à direita para o seu corredor, foi invadido pela sensação oposta a do seu inimigo.
Com a face aborrecida e seu cabelo castanho desarrumado, o sujeito largou o mosquete com o cano fumegante. Ele olhou para o fim do corredor e viu o jovem encurralado. A imagem o surpreendeu por um instante, obrigando-o a esboçar uma face de incredulidade irônica para o loiro que o encarava com ira.
O novo duelista escarneceu com a face do feiticeiro.
— O que foi, matinho? Eu te assustei? — Ele pôs a mão sobre o cabo da espada de oficial, desembainhando-a na altura de sua cabeça.
Todas as sensações de nervosismo e desespero abandonaram o mercenário, que passou a ter certeza da identidade do invasor ao ouvir sua voz.
— Major!