A Dura Vida de um Recepcionista da Guilda - Capítulo 03
O sol não demorou a romper o horizonte, aquecendo a face das três dorminhocas. Alef havia dormido sentado no pedaço de tronco, sua ratazana no espeto mais escura que carvão.
“Caralho, que dor no cu, pau duro da porra.” lamentava Alef enquanto ainda meio sonolento.
— Bem, acho que vou aproveitar e ir procurar algo pra comer. Elas devem acordar morrendo de fome, lutaram a noite inteira, menos a Karla.
Conferiu seu canivete, bateu as calças para limpar as cinzas e virou-se para a entrada da floresta. Com passadas lentas, murmurava para si.
— Essa ainda foi a primeira noite. Haha… Será que volto pra casa vivo? Merda de emprego.
Sem notar, voltou à beira da mesma clareira que estava na noite passada. Observou atentamente o rio. As águas claras esbanjavam vida.
Desdobrou o canivete e mirou com precisão no rumo de uma grande carpa que nadava calmamente próximo a beirada.
— Ali!
Splash!
— Cacete!
Como se zombando de seu esforço, a carpa gorda desapareceu no horizonte do rio. Tirou sua calça e foi atrás da arma que descia o fluxo da água.
Agarrou a empunhadura e voltou para a terra. Balançou as pernas para tirar o excesso de água e pegou sua calça que estava jogada por cima de um arbusto.
Um frio percorreu sua espinha. Se abaixou e procurou a origem daquela sensação. Podia sentir um olhar o fuzilando de algum lugar.
— Eu sei que você está ai! Se quiser me matar, pode vir! Estou armado!
Apenas o farfalhar das folhas e o canto dos pássaros ecoavam dentro da clareira. Aproveitou para se vestir, não queria ser pego com as calças arriadas.
Ao terminar, sentiu o misterioso olhar se dissipar como uma fumaça.
— Devia ser algum bicho grande espreitando. Ainda bem que foi embora.
Retornou a tarefa de encontrar alimento, mas não deu sorte. Decidiu voltar a fogueira e comer alguma coisa que trouxera de casa.
Ao chegar, mal podia acreditar em seus olhos. Por cima da fogueira havia peixes, alguns vegetais e até mesmo um gigantesco pernil rodando por cima.
— Co-como foi que vocês arranjaram tudo isso? — questionou o jovem, olhando para o sol. — Vocês estavam dormindo mal tem uma hora!
— Segredo de garotas! — exclamou Dafne, tombando a cabeça com uma piscadela e mostrando a língua.
— Ah. O-obrigado. — agradeceu Alef sem jeito.
“Ela é bem fofa quando quer…” pensava consigo. Ao tentar voltar para o conforto da lareira, sentiu a visão embaçar e sem poder reagir, caiu no chão de forma bruta, conseguindo apenas ouvir o som abafado de Karla chamando seu nome.
– – – – –
— O que aconteceu, eu ia comer e-
— Bem-vindo.
Uma voz pesada e fúnebre preencheu sua mente. Antes que se pudesse se dar conta, estava no olho de uma tormenta roxa e vermelha.
Se levantou com esforço, seu corpo inteiro ardia como se uma navalha tivesse dançado sobre ele.
Um semblante carmesim estava de pé a sua frente, grande como um touro.
— Quem é vo-
— Você não tem o direito de falar aqui. Ouvi meu nome saindo da sua boca muitas vezes nessas últimas vinte e quatro horas.
Forçava as vistas para tentar compreender o que estava acontecendo. Mal conseguiu ficar de pé, a mão da figura tenebrosa deitou sobre sua cabeça encharcada.
— Mas que merda, Dafne! Ni-
— Não adianta chamar por suas guardiãs. Você está no meio domínio aqui.
— Seu merda!
Juntando toda a força que tinha no braço, tirou a mão que repousava sobre si.
— Oh. Ainda tem uma fagulha em você.
— Quem é você? O que fez com elas?
Cambaleou para trás na vã tentativa de ganhar espaço. A adrenalina lhe fervia as veias, dando novas forças para Alef.
Como o vento corre o campo, a figura se aproximou e novamente colocou a mão sobre o jovem.
— Para com essa merda! Você é meu pai por acaso?
— Hoho, não Alef, não sou seu pai.
A mão apertou o crânio com força, se debatendo, o recepcionista tentava se livrar da dor lacerante que sentia com a pressão daquele homem.
— Não adianta se esforçar. Aqui dentro o tempo é todinho nosso. Você não tem força para me opor — disse o homem carmesim. — Por enquanto.
Usando a outra mão, a figura estalou o dedo, parando o tempo em si. A tormenta não rugia, a chuva congelada em pleno ar, como uma pintura abissal da morte.
— Seu desgraç-
Sem terminar, sentiu todo o seu sangue se esvair pelo topo da cabeça, como se aquela mão fosse um poderoso sifão.
Tum!
O corpo de Alef caiu ao chão uma segunda vez. Parecia mais uma casca de cigarra, murcho e sem vida.
Tirando uma flanela do bolso do paletó, o homem vermelho limpou a mão que até pouco segurava o corpo do garoto.
Lentamente, a chuva voltou a cair, trovões ecoavam naquele infinito sinistro.
— Foi uma experiência interessantíssima, Alef. Com certeza teremos outros encontros como esse.
Sua voz potente e pouco expressiva soou cada vez mais distante aos ouvidos do corpo espalhado no chão.
— Faça-me o favor de não morrer até o nosso encontro. Ah, como é bom cortar a fala dos outros. Haha.
— Esp…
Com um último estalar de dedos do homem, o ambiente carmesim deu espaço para a luz do dia, que se infiltrava entre os rostos das três garotas.
– – – – –
— Ah, parece que ele está acordando! Vou pegar carne pra ele!
Em um pulo, Karla se levantou e correu em direção aos diferentes tipos de assados que estavam na fogueira.
— Pensamos que tivesse morrido! Idiota! — berrou Dafne, rapidamente se levantando do local em que estava sentada de joelhos. — Idiota…
Nia apenas cutucava as rugas que estavam no rosto de Alef, como se brincasse com pequenas dunas de areia.
O jovem permaneceu deitado, contemplando o sol que ainda começava a nascer. Fitou os olhos da garota, estava complicado olhar por debaixo do capuz que cobria sua face.
— Ei, eu fiquei apagado por quanto tempo?
— Hmm… Talvez uns 30 minutos, no máximo? Você se contorceu muito. — respondeu a garota em um tom mecânico, sem interromper sua atividade. — Se você morrer, teremos que voltar pra cidade novamente pra solicitar outro observador.
— Ha, obrigado pela preocupação, sua bafo de peixe.
— Ba-bafo de peixe!
A garota se afastou em um pulo, usando as mãos para tampar a boca pequena que o capuz não cobria.
Com passos pesados, Karla voltou com um pequeno prato de madeira em mãos e uma montanha de carne por cima.
— Aqui! Isso vai te levantar em um pulo! Carne de primeira!
— O-obrigado. — respondeu Alef, pegando o prato e rapidamente selecionando as lascas mais apetitosas da pilha.
Olhou para Karla, seu imenso corpo bloqueando o sol. Por um instante, o garoto sentiu um grande calor ao notar o sorriso estampado na cara da guerreira.
“O que caralhos foi aquilo? Será que foi real? E quem era aquele cara?”
Perguntas inundavam sua mente. Aquele poder, aquela força esmagadora, tinha certeza que aquilo não foi apenas um sonho ou alucinação.
— Poxa, essa comida tá de primeira! Você que fez, Karla?
A amazona soltou uma gargalhada que espantou as aves das árvores.
— Huhu! Sim, tudo feito com minhas delicadas mãos! Que bom que gostou! — exclamou orgulhosa a mulher. — Anda, termina o seu café, o sol está ótimo! Temos que atravessar essa floresta o quanto antes!
Concordando com a cabeça, Alef se pôs a devorar a comida que lhe foi servida, mal parando para respirar.
Como o sopro do vento, se pôs de pé e começou a arrumar suas coisas. As garotas também checavam seus equipamentos e mochilas para ver se não esqueciam nada.
Ao terminar seus preparativos, ele chutou terra em cima da fogueira, encerrando o conforto do fogo que os acompanhou noite adentro.
— Bem, temos que passar por dentro da floresta, pelas instruções devemos demorar uns dois dias aí dentro, até chegarmos a outra ponta…
As três apenas o fitavam, como alunas prestando atenção ao professor.
— E pra onde iremos depois? — questionou Dafne.
— Da saída da floresta iremos chegar a um pequeno porto. Pegaremos um barco e partiremos para o reino de Ulvos.
— Barco hein. É seguro então seguirmos o fluxo do rio? — perguntou novamente a elfa.
— Sim, como podemos ver no mapa, esse rio começa diretamente ao lado do porto, não tem erro — respondeu-o, apontando com o dedo indicador o caminho que iriam percorrer.
Karla apenas franziu o cenho em uma tentativa de entender os desenhos. Nia viajava nos próprios pensamentos dentro do seu capuz e Dafne acompanhava os dedos e lábios do rapaz.
Ao terminar a explicação, as três se entreolharam e consentiram com a cabeça, decerto todas entenderam o caminho, cada uma do seu jeito.
Enquanto guardava o mapa e o restante de comida, as garotas já estavam a dianteira, entrando na floresta.
– – – – –
A caminhada seguiu tranquila até o entardecer. O grupo rapidamente despachava as criaturas que cruzavam o caminho.
Por ser o mais fraco, Alef caminhava atrás, seus pensamentos fixados no ocorrido, no poder daquele homem.
“O que ele quis dizer com ter forças para o opor? Será que ele me confundiu com algum outro Alef por aí que tá querendo a cabeça dele?”
Sem se dar conta, estava sozinho na floresta. Pelo menos o sol ainda encontrava um caminho ou outro entre as copas das árvores.
— E-ei? Alguém aí? Karla?
“Bosta! Fui descuidado! Como fui me perder! Era só seguir o rio, seu jumento!”
Rapidamente enfiou a mão dentro da sua gibeira e puxou o canivete, pronto para qualquer parada.
— Ca-cacete! Eu tenho uma bússola! Só preciso achar o rio novamente e nos encontraremos no porto!
Se agachou e começou a procurar o instrumento, quando sentiu algo saltar sobre sua cabeça.
Um jaguar negro o prensou contra o chão. Com a barriga na terra, não havia chance de escapar do golpe derradeiro.
— Bicho filho da puta! Saí de cima!
Apoiando os joelhos no chão, tentou dar um impulso para escapar do alcance da fera e conseguiu, mas suas costas jorravam um sangue carmesim intenso.
Com a adrenalina a mil, voltou a sua postura e se voltou para o animal.
— Posso até morrer aqui, mas vou te levar comigo! Eu só queria ver por baixo da saia da Dafne uma última vez!
O jaguar não esperou o final da bravata, partindo para cima de sua presa sem dó.
Empunhando o canivete preparado pro golpe decisivo, não reparou que o sangue que saiu de suas costas e que agora formava um tapete aos pés da criatura tremulava.
Um único salto encerraria uma das duas vidas. A criatura abaixou a postura e como um relâmpago partiu para cima de Alef.
— Agora! Morre desgraçado!
Com um movimento elegante, o jovem girou o tronco, a lâmina do canivete se molhou no sangue jorrante, e voou em direção a boca da fera.
“MARIONETE MACABRA!”
Em pleno ar, o canivete contorceu e começou a girar em uma espiral, absorvendo o sangue que estava no chão.
Uma broca carmesim estraçalhou a cabeça da fera e atravessou as copas das árvores, sumindo no céu, deixando apenas um rastro vermelho em sua trajetória
O oponente estava suspenso em pleno ar. Algumas últimas gotas de sangue do então carpete empalavam a criatura imobilizando-a no ar como linhas avermelhadas.
— Ma-mas q-que ca-caralhos?!
Alef caiu de bunda no chão, só agora sentia o calor do próprio sangue percorrer suas costas.
— E-eu fiz isso?
O sangue que prendia a fera se liquefez, voltando a ser inocentes gotas encharcando o chão. O estrondo da queda do jaguar levantou uma grossa poeira.
Se levantou com esforço, a dor queimava suas costas. Começou a andar em direção da fera, agora sem cabeça.
— Eu te falei, filho da puta, posso até morrer aqui, mas você iria comigo.
Ao se aproximar, deu um chute no corpo do animal e se sentou contra o cadáver gelado, puxando ar com dificuldade.
— Ha… Meninas, eu sinto muito, vão ter que achar outro recepcionista pra terminar a jornada de vocês.
Ergueu a cabeça e encarou o pôr do sol, que gerava uma confortável penumbra em sua posição.
Fechou os olhos e se deixou levar pela orquestra da floresta. O farfalhar das folhas, o canto dos pássaros e dos insetos.
“É, até que foi um final digno. Ha… Quem diria que eu ia matar um bicho desse tamanho. Marionete macabra hein? Nome meio cliché pra uma habilidade…”
O vento soprou por seu cabelo, que estava duro de sangue e terra, levando consigo seu último suspiro.
– – – – –
— Atchin!
— Ixi, Dafne. Será que você resfriou por conta da friagem de madrugada? — perguntou Karla. — Você devia usar mais roupas, essa sua saia não cobre nada!
— Olha quem fala, você além de usar saia, fica só com essa cota de malha, que mais parece roupa de banho!
— Dizem na minha tribo que quando alguém espirra assim, alguém está falando de você — disse Nia, falando tão baixo que mais parecia um murmúrio.
As garotas continuaram a descer o leito do rio, como planejaram cedo. Perdidas em suas conversas e histórias, não notaram a ausência de Alef.
Roonc!
O sol já passou do seu ponto alpino. Elas caminharam sem parar todo o trecho.
— Vamos parar para comer algo, estou morrendo de fome — disse Karla, acariciando a barriga.
— É verdade! Acho que pela iluminação aqui ser tão ruim, perdemos o horário — respondeu Dafne.
Nia apenas consentiu com a cabeça, a ponta do seu casaco saltitando de um lado para o outro. As garotas se sentaram e desembrulharam a comida que haviam preparado cedo.
— Ei, Alef! Se quiser mais, eu trouxe bastante car-
— Cadê ele? — questionou Dafne, interrompendo a guerreira.
As moças se entreolharam e deram um salto, ficando as três de pé no mesmo instante.
— Perdemos aquele idiota!