A Rosa Fantasma - Capítulo 15
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- Capítulo 15 - O paradoxo dos pássaros que tentavam alcançar o Sol (1)
▸18h15min — Pensão da Abadia◂
— Não consigo acreditar que aquela nanica foi capaz de fazer algo assim com alguém que nunca tinha visto antes!
— Supere isso, foi apenas uma brincadeira.
— Que parte daquela humilhação pareceu uma brincadeira pra você, babaca?!
A hospedaria de fachada simples e desgastada também escondia apartamentos luxuosos.
O espaçoso e requintado quarto alugado pelos legior’s era quase todo inspirado no estilo barroco. Havia uma cama de casal, um criado mudo — que foi movido até a parede para que um fino colchonete pudesse ser esticado sobre o piso de cimento queimado — e um delicado lustre de cristal com quatro lâmpadas que acendiam graças ao gás tubulado. A pintura marrom das paredes e o teto de gesso curvado davam um toque gótico ao local.
No banheiro da suíte, as bordas do espelho e todas as louças eram douradas e chamativas. Lá, Ellen dava risadas dissimuladas enquanto tentava retirar a tinta que impregnava o seu rosto usando apenas água e sabonete.
— Uma catástrofe acontecerá no momento em que eu encontrar aquela baixinha novamente…
— Já pedi para esquecer isso. Cresça um pouco.
O soldado retirou seu sobretudo e o pendurou em um cabideiro ao lado da porta de entrada, ficando apenas com a blusa preta sem mangas que usava por baixo. Depois, deitou sobre a cama e deu um longo suspiro.
Após a batalha contra o monstro do subterrâneo, os legior’s retornaram para o casarão de Marcos Arthmael e interrogaram Irene. De imediato, a empregada negou ter sequestrado Ellen usando o disfarce da pessoa de manto vermelho. E, mesmo após uma investigação meticulosa, nada que pudesse ligá-la as acusações foi encontrado.
Com Aria e Marcos a defendendo, ficou acertado a prisão domiciliar de Irene. Dois guardas foram postos de prontidão na porta do quarto dela para vigiá-la.
— Ellen, você acha que, de alguma maneira, o laboratório está relacionado com os poderes da pessoa de capuz?
Mesmo após se livrar de todo aquele equipamento, o corpo de Owen continuava estranhamente pesado. Essa tinha sido uma tarde muito complicada, e, bem no fundo, ele sentia que ficaria ainda pior. Um tom de voz familiar sussurrava dentro da sua mente, dizendo que ter trancafiado a empregada não significava o fim dessa história.
A garota de cabelos brancos pegou uma toalha e secou o rosto. Seu reflexo no espelho parecia extremamente pálido, culpa do uso excessivo das suas habilidades e da grande quantidade de sangue que perdeu.
— Não sei explicar o que tinha lá embaixo. Porém, aqueles corpos que encontrei, com certeza, estavam sendo usados como objetos. Se estivermos mesmo procurando alguém com poderes sobrenaturais, deve ter sido naquele lugar que essa pessoa foi criada.
Owen notou que as suas mãos tremiam, um sinal claro de que estava perdendo o controle das suas emoções. Diferente de Ellen, que acolhia o medo que sentia, o garoto de cabelos pretos o renegava. Não gostava de mostrar fraquezas, por isso, guardava e amontoava todos os sentimentos que julgava desnecessários em um baú trancado com cadeado. Entretanto, em alguns momentos de descuido, acabava deixando um pouco desse medo escapar.
— Algo terrível está para acontecer, eu posso sentir.
A parceira dele deixou o banheiro e sentou na beirada da cama. Os dois passaram alguns segundos assim, em completo silêncio.
— Owen, você consegue ouvir os pássaros cantando bem longe daqui? Você consegue imaginar as asas deles batendo rapidamente enquanto bailam pelo ar, buscando pelo inalcançável horizonte?
— Não… O ser humano não possui a capacidade de ouvir algo acontecendo tão longe.
Fitou a garota ao seu lado com uma expressão de curiosidade, tentando compreender os diferentes significados por detrás das poucas palavras dela. Se esforçando para decifrar os sentimentos que aquela menina impertinente queria transmitir.
— Errado. — Sorriu. — Você não consegue ouvi-los porque a sua alma não para de gritar.
— Minha alma está gritando?
— Sabe… De todos que conheço, você é aquele que mais se esforça para cumprir os deveres de um cão do exército. É quem mais se sacrifica para ajudar as pessoas. Mesmo que elas te ignorem, mesmo que elas passem a te odiar, você nunca deixa de ajudá-las.
— Isso não é…
— É a verdade. O fato dos seus esforços raramente serem recompensados, não passa de uma forma cruel de tortura. Talvez, você não esteja ciente disso, mas toda essa desconfiança, todo esse ressentimento, acaba te ferindo continuamente. Por estar sempre sofrendo, a sua alma não para de gritar.
Owen não conseguia desviar o olhar. Era como se houvesse uma espécie de imã naquelas írises verdes, prendendo-o, impedindo-o de fugir.
— O que acontece com aqueles cuja alma nunca para de gritar?
— Isso é difícil prever. Cada humano encara o sofrimento de maneira diferente. Há aqueles que entram em uma profunda depressão, outros enlouquecem, alguns encontram o alívio que tanto desejam ferindo outras pessoas…
— O que devo fazer para acalmar a minha alma? O que preciso fazer para não… perder a sanidade?
Ellen abaixou o rosto e fitou suas próprias mãos.
— Eu odeio os meus dedos, sabia? Eles já machucaram tantas pessoas e trouxeram sofrimento a incontáveis outras. Sempre que toco em algo vivo, sinto que estou absorvendo a vida que existe ali. Em certo momento, cheguei a pensar que eu era uma ceifeira nascida apenas para me alimentar da alma dos vivos. Foi aí que encontrei você. Pela primeira vez, fui capaz de dar vida a alguém em vez de roubá-la.
Retirou suas luvas, deitou ao lado de Owen e segurou as mãos dele, apertando-as com força. Não havia malícia ou qualquer outro sentimento oculto nesse gesto, apenas gratidão. Ela conseguia transmitir uma calma que deixava o seu parceiro perplexo, sem saber como reagir.
Era como se Ellen tivesse o poder de hipnotizá-lo com apenas um toque.
— Não tenho vergonha de admitir que o nosso encontro foi o que me manteve sã. Quando você me puxou daquele mundo para a realidade, finalmente, tive a oportunidade de me tornar humana. Pude aprender sobre os males e as gentilezas. Pude experimentar a alegria e a tristeza. — Sorriu. — Só que não me entenda mal, eu ainda odeio estes dedos. Só que, pelo menos agora, sei que existe alguém nesse mundo que posso tocar sem temer machucar.
Ellen era como o Sol. Enquanto estava longe, podia aquecer, mas, ao se aproximar, tornava-se uma existência com o poder de queimar, machucar e transformar tudo em cinzas.
Devido a esse momento de sinceridade, Owen não tinha coragem de dizer que o toque dela estava queimando a sua pele.
— Para não perder a sanidade, basta continuar confiando em mim. Eu nunca permitirei que enlouqueça. Quanto a sua alma, ela só vai parar de gritar quando você se livrar de todo esse sofrimento acumulado e repousar.
— Como você pode me conhecer mais do que eu mesmo?
— Nós estamos ligados, lembra? Se você não puder ouvir os pássaros cantando, eu também não conseguirei ouvi-los. Se a sua alma grita, a minha grita junto com a sua. Se você não puder descansar, eu também não poderei.
Não havia mais nada a ser dito. Os dois passaram os próximos minutos se fitando até que Owen começou a adormecer sem sequer notar que as suas mãos tinham parado de tremer.
— Bom descanso…
Quando dormiu completamente, um canto sutil e o bater de asas ecoou dentro do subconsciente do soldado. A imagem do céu ao entardecer preencheu sua mente. Estava sonhando.
Dois pardais atravessaram uma nuvem enquanto encaravam fixamente o gigantesco Sol alaranjado no horizonte. Eles dançavam suavemente, rezando para que a sua fonte de calor não desaparecesse.
“Eles nunca conseguirão tocá-lo, sabia?”
Uma voz suave ecoou junto ao bater de asas.
“Aqueles pássaros são como você, Owen.”
“O Sol é inalcançável, mas, mesmo assim, eles continuam o perseguindo.”
Ao longe, aquela gigantesca bola de fogo continuava seguindo o seu rumo, abandonando os pássaros, deixando que as trevas devorassem o céu e a terra.
“Já passou da hora de deixar de sofrer por mim. Porém, você continua se recusando a parar de me procurar. Não quer esquecer o meu nome e me deixar morrer.”
Owen tentou gritar, entretanto, nenhuma palavra escapou pela sua boca. O céu, antes alaranjado, em um piscar de olhos, assumiu um tom vermelho sangue.
“Eu sou inalcançável igual ao Sol.”
Todo o cenário mudou drasticamente, colocando-o de joelhos no quintal de uma mansão em chamas. Lágrimas desciam sem controle pelo seu rosto, um líquido perturbador escorria por entre os dedos.
Gritos, tiros e explosões vinham de todos os lados. Uma guerra impiedosa estava consumindo e devorando tudo.
— N-não… Como…?!
Caído à um passo de distância, encontrava-se o corpo de uma mulher de cabelos pretos. Os olhos vazios dela encaravam Owen fixamente. Seu corpo estava coberto por sangue.
— Estou bastante curiosa para saber por quanto tempo você ainda pretende me manter presa aqui, meu amigo. Se algum dia conseguirá me esquecer. Se me dará o direito de descansar em paz. — Ela comentou com um sorriso travesso.
Toc, toc…
Toc, toc, toc…
O soldado despertou ao ouvir o barulho de alguém batendo na porta do apartamento. Seu coração saltava desesperadamente em seu peito, suor frio escorria pelos cantos do seu rosto.
Ele olhou para a janela e notou a escuridão no lado de fora. O colchonete ao seu lado estava vazio, mas a luz que passava pela brecha da porta do banheiro entregava a localização de Ellen.
— Ouvir o choro dos pássaros não era bem o que eu esperava, bruxa.
Vagarosamente, ele levantou e abriu a porta. Assim que fitou a pessoa parada no lado de fora, seu corpo congelou.
Era uma mulher com longos cabelos pretos e várias outras características semelhantes àquela que viu sangrar até a morte no seu pesadelo. Aparentava ter cerca de vinte anos e usava um simples vestido bege que corria até a altura dos joelhos. O corpo dela irradiava uma atmosfera sedutora involuntariamente.
— E você ainda me pede pra te esquecer…?
— Senhor…?
— Ah, desculpe-me. Por um segundo, confundi você com uma velha amiga. Posso ajudá-la?
— É o Sr. Owen?
— Sim.
— Marcos Arthmael pediu para que trouxéssemos o jantar.
Ao lado dela, estava um carrinho com várias louças e panelas que espalhavam deliciosos aromas pelo ar. Poucos passos atrás, Sofia segurava um segundo carrinho igualmente carregado de alimentos.
— Aquele cara realmente tem muita comida sobrando na despensa, não? — Sorriu. — Por favor, entrem.
— Com sua licença.
As duas levaram tudo até o centro do quarto.
— Parece que nos encontramos novamente, toquinho de amarrar jegue. Espero que tenha vindo preparada para receber as consequências daquela humilhação de mais cedo.
Ellen falou com um tom provocativo assim que saiu do banheiro. Seus cabelos estavam úmidos e seu corpo escondido apenas por uma toalha.
— Olha se não é a cérebro de vento. Sabe, na primeira vez que te vi, supus que a senhorita seria uma depravada enrustida. Só que, pelo jeito, eu me equivoquei. Você está mais para uma safada sem nenhum pingo de vergonha na cara.
Enquanto a criança se divertia com esse flagra, a mulher que a acompanhava parecia estar bem mais desconfortável.
— De-desculpem-nos por termos aparecido em um momento tão inconveniente! Vamos, Sofia, não devemos importuná-los por mais tempo!
— Calma, não é nada disso que você está pensando! — Owen levou as mãos ao rosto. — Primeiro, esta bruxa estúpida fica agindo toda envergonhada com a história de dividir o quarto. Só que, logo depois, me vêm com essa. Deve estar faltando um parafuso importante na cabeça dela…
Sem dar importância para o tumulto que a sua ausência de roupas estava causando, Ellen correu até os carrinhos de comida e retirou a tampa de uma das panelas. Enquanto encarava o suculento frango assado, um sorriso bobo tomou o seu rosto.
— Uaaah! Parece delicioooso! — Fez questão de provocar inveja na pequena Sofia. — Por onde devo começar?! Pelas coxas ou pelas asas?! Uou! O que é isso aqui do lado?! Torta suculenta e fofinha?!
O plano maligno dela foi um sucesso. A criança ruiva estava com a boca levemente aberta e um olhar invejoso. Já a mulher de cabelos pretos, que antes parecia desesperada para ir embora, também foi fisgada pelo cheiro de todas aquelas gostosuras. Os estômagos das duas roncaram em completa sincronia.
— Então, vocês aceitam jantar conosco? — Owen convidou com um sorriso. — Tenho certeza de que não conseguiremos dar um fim em tudo isso sozinhos. Seria uma pena desperdiçar tanta comida.
— Oquiiiêê?!
Com a boca cheia de torta, Ellen tentou se posicionar contra a ideia, mas Owen a censurou imediatamente ao arremessar uma asa de frango contra a testa dela.
— Dá pra vestir alguma coisa antes de comer?! E não fale com a boca cheia, bruxa lesada!