A Rosa Fantasma - Capítulo 3
A velha carruagem parou na frente da nobre residência. Ao saltar para fora, Ellen observou com curiosidade a grande quantidade de guardas que vigiavam o local.
Logo após Owen bater na porta, uma mulher de meia-idade apareceu. Apesar de ser uma serva, ela estava muito bem vestida. Seus cabelos castanhos possuíam alguns fios grisalhos, o rosto enrugado e as olheiras entregavam o seu cansaço. Ela se curvou e segurou a barra da saia em reverência.
— Boa tarde. Posso ajudá-los?
— Estamos aqui para conversar com o Sr. Marcos Arthmael. — Owen retirou do bolso um colar de prata com uma pedra preciosa triangular na cor turquesa e o mostrou. — Fomos enviados pela Legião de Mahyra a fim de atender o pedido de uma carta que ele supostamente nos enviou.
— Ah, sim. Por favor, sigam-me.
O casarão da família Arthmael dava a impressão de ser ainda maior por dentro. Os legior’s seguiram a empregada, cruzando a enorme sala de estar até chegarem a uma escada que direcionava ao segundo andar.
Owen encarava maravilhado os gigantescos quadros nas paredes e as reluzentes lamparinas de cristal. Ele podia jurar que essa casa tinha mais de trinta cômodos, por isso, estava intrigado com o fato de um lugar grande assim estar tão vazio. Enquanto isso, Ellen permanecia em silêncio com uma feição desconfiada no rosto.
Os três subiram as escadas e atravessaram um longo corredor. Pararam na frente de uma enorme porta de madeira maciça que possuía duas asas de seis penas cada entalhada nela. Símbolo geralmente utilizado por soldados, políticos ou cientistas formados pela Igreja.
— Senhor Marcos, duas pessoas estão aqui para vê-lo. Eles afirmam ser integrantes da Legião de Mahyra.
Passos apressados soaram de dentro da sala e, poucos segundos depois, a porta foi aberta ferozmente, revelando um homem de aproximadamente quarenta anos de idade, trajando roupas e acessórios luxuosos. Tinha cabelos dourados com algumas falhas aparentes, barba no queixo e um corpo fora de forma.
— Ôoh, ôh! É um prazer conhecê-lo, senhor…?!
Correu para cima do jovem de preto e segurou a mão direita dele com força, sacudindo-a várias vezes.
— Owen…
— Oh, sim! E quem é a dama ao seu lado?
Os olhos brilhantes do governador pararam sobre a emburrada garota de cabelos brancos.
— Esta é Ellen Gweneth, minha companheira de esquadrão.
Marcos estendeu a sua mão direita na direção dela, mas foi completamente ignorado.
— Eh, bem… entrem. Nós temos muito a discutir. Irene, por favor, traga café para os nossos visitantes.
A empregada acenou com a cabeça, deu meia-volta e retornou para as escadas. Owen e Marcos entraram na sala imediatamente, no entanto, Ellen ficou parada por mais alguns segundos encarando os seus arredores. Desde o momento em que eles chegaram na casa, ela tinha a forte sensação de estar sendo vigiada por uma pessoa oculta.
O escritório do governador era amplo e bem iluminado. Provavelmente, aquele lugar sozinho já valia por uma casa inteira. No centro, havia uma enorme mesa com vários livros grossos espalhados por cima, e, nas paredes laterais, estantes igualmente carregadas de livros e documentos. Na esquerda, existia uma pequena mesa de chá com quatro cadeiras em volta. Já no chão, chamava a atenção um grande tapete feito de pele de animal. O soldado de cabelos pretos permaneceu de pé enquanto a sua parceira sentou na primeira poltrona que encontrou pela frente.
— Então, Sr. Owen, creio que já esteja a par da situação.
— Sendo bem sincero, a carta enviada para a Legião é bastante confusa. Após lê-la, tudo o que eu entendi foi que Jothenville está tendo problemas com ataques de onças-pintadas, nada mais que isso. — Encarou o governador com um olhar firme. — Ainda estou tentando entender o motivo para o senhor ter nos contatado, afinal de contas, situações desse tipo não são a nossa área. Estou aqui apenas porque fiquei curioso a respeito de todo o mistério por detrás desse provável trote. Não pode ser algo tão simplista como uma praga de animais selvagens, não é?
— Enfrentar uma viagem de treze horas movido apenas por curiosidade? Sr. Owen, você é uma pessoa interessante… E está correto. Não é uma simples praga. O verdadeiro problema é que estamos sendo mantidos em cativeiro dentro da nossa própria cidade.
— Com “cativeiro” o senhor quer dizer “reféns”?
— Exatamente. — Coçou o queixo. — Sabe, nós importamos das fazendas à nossa volta praticamente cem por cento dos alimentos que consumimos. Por conta disso, acabamos inteiramente dependentes delas para sobrevivermos.
A cidade de Jothenville era conhecida pelos seus valiosos criadouros de equinos, e a sua renda vinha quase que inteiramente da venda deles para as grandes metrópoles da República do Rio. Por isso, não restavam áreas dentro das muralhas para agricultura, avicultura e criação de bovinos.
— O ponto é que dezenas, ou, quem sabe, centenas de onças-pintadas estão impedindo a chegada dos mantimentos que os fazendeiros nos enviam. Todos os comboios são destruídos antes mesmo de chegarem perto dos portões da cidade.
— Destruídos? Isso é um tanto antinatural. Onças só atacam quando caçam ou para protegerem seus territórios. Elas não atacariam apenas para destruir. — Owen franziu o cenho. — E mesmo que estejam defendendo território, essa história ainda me soa de maneira estranha. Senhor, esses animais já chegaram a ferir alguém?
O governador coçou o queixo novamente enquanto pensava.
— Não. Até o presente momento, não recebi nenhuma notícia de pessoas feridas por essas onças.
— É… Acho que podemos descartar a hipótese de proteção de território.
— Ah! E não é só isso! Existe algo ainda mais estranho acontecendo! Em alguns ataques, guardas e civis relataram ter visto um humano trajando um manto vermelho com capuz no meio das onças. Correm boatos por aí de que ele ou ela estava controlando a alcateia como se fosse uma espécie de alfa. — Balançou a cabeça em negativa. — Infelizmente, essa pessoa ainda não foi identificada.
— Controlando…?
— Logo no primeiro ataque, a pessoa encapuzada ameaçou matar qualquer um que cruzasse os portões, mas, obviamente, não obedecemos. Montamos uma força armada para sair e exterminar as onças, entretanto, acabamos encurralados e obrigados a recuar devido à quantidade absurda de animais. Após várias outras tentativas frustradas, o medo crescente se tornou motivo suficiente para impedir que a grande maioria dos cidadãos tornassem a encarar a Floresta de Caaporã.
Owen sequer piscava enquanto ouvia a história do governador. Um sorriso empolgado se alargava em seu rosto.
— Quando as onças se revoltaram?
— Hoje completa exatamente duas semanas.
— Os ataques ocorrem a qualquer hora do dia e da noite?
— Sim. Já tentamos sair em vários horários diferentes.
Agora, o jovem de cabelos pretos compreendia boa parte do que estava acontecendo e o porquê de um pedido tão importante ter chegado até ele pelas mãos de um cidadão exausto e aterrorizado que sequer sabia explicar direito o que estava acontecendo.
— Depois de ouvir o seu relato, fico impressionado que tenham conseguido nos enviar um pedido de socorro.
— Em alguns casos, obtivemos sucesso em distrair as onças por tempo suficiente para que um de nós pudesse ir atrás de alimentos. Infelizmente, nosso pequeno quartel é composto por simples fazendeiros, ninguém com treinamento. Somente na nossa última excursão foi que conseguimos mandar alguém preparado para enfrentar o caminho até a capital em busca da ajuda de vocês.
Nenhum outro integrante da Legião de Mahyra criou interesse em fazer uma viagem tão longa e cansativa para constatar a veracidade de uma carta entregue por um homem atordoado. No entanto, a curiosidade de Owen foi despertada.
Onças-pintadas, a população de uma das cidades mais famosas da República do Rio trancafiada dentro da sua própria fortaleza, uma pessoa misteriosa com poderes inexplicáveis…
Esse mistério parecia excitante demais mesmo com o risco de voltar para casa com as mãos abanando por conta de um possível trote.
— Só não esperava a chegada de apenas duas pessoas. Esse fato é um tanto decepcionante.
Owen deu um sorriso amarelo em resposta.
— Sinto muito por isso, mas estou confiante de que seremos capazes de ajudar. Pode contar conosco.
— Muito obrigado, Sr. Owen. Se precisar de algo, é só pedir que providenciarei imediatamente. Temos que nos livrar dessa praga o mais rápido possível para que a nossa vida volte ao normal.
— Normal?! — Ellen, que até então estava calada feito um pequeno animal encurralado, grunhiu e levantou da poltrona com uma expressão de fúria. — Quando você diz “normal”, está se referindo ao dinheiro que costuma cair no seu bolso, não é?! O conteúdo do seu cofre voltará a encher normalmente, estou certa?!
Imediatamente, Owen abaixou a cabeça, colocou a mão esquerda em frente aos olhos e resmungou baixo. Ele já temia que uma situação como essa pudesse acontecer. Principalmente, tratando-se de Ellen e sua personalidade incontrolável.
— Se não existe alimento, Jothenville entra em colapso. E, como consequência, acaba perdendo o seu prestígio! Com ninguém comprando os seus cavalos, em um piscar de olhos, o prejuízo financeiro se torna imensurável, destruindo tudo feito um tornado, inclusive o recheio do seu querido bolso! — Ela deu uma risada curta, debochando de Marcos. — Até agora, em momento algum, vi você demonstrar preocupação com a população que te segue e morre de FOME enquanto você se preocupa apenas com o dinheiro que está perdendo!
— Por que está agindo como se me conhecesse, criança? — O governador retrucou, claramente irritado. — Tem ideia da gravidade dessas acusações?
— Ellen, você deveria…
Owen tentou interrompê-la, mas a garota não se permitiu censurar.
— Calados! Eu ainda não acabei!
— Tudo bem, tudo bem… Pode continuar.
O jovem de cabelos pretos revirou os olhos e levantou os dois braços em sinal de desistência. Às vezes, ele gostava de quando Ellen gritava para os quatro cantos do mundo tudo o que ele mantinha apenas em pensamento.
— Marcos Arthmael, aconselho que permaneça bem longe das onças enquanto eu estiver por perto, pois pode apostar que na primeira oportunidade que surgir, te usarei como isca viva!
Deu as costas e saiu, fechando a porta com um baque.
— Ninguém merece. Olha a situação em que você me colocou, bruxa doida. — Owen suspirou profundamente. — Senhor, peço que perdoe a atitude impulsiva da minha companheira. Ela é meio incompreensível às vezes.
— Não se preocupe. Tenho uma filha com essa idade, por isso, meio que já estou acostumado a lidar com explosões de temperamento.
— Agradeço pela compreensão. Enfim, voltando aos negócios, tenho um pedido a fazer. Gostaria que o senhor encomendasse alimentos o mais rápido possível. Eu preciso ver o que está acontecendo com os meus próprios olhos.
— Planeja escoltar a próxima entrega?
— Sim, exatamente.
— Oh, certo! Farei isso. Garanto que até o próximo nascer do Sol, um comboio estará se aproximando da cidade.
O soldado fez uma breve reverência.
— Estarei esperando. Agora, com sua licença. — Dirigiu-se até a porta, mas pouco antes de sair, fitou o governador novamente. — Gostaria de dizer apenas mais uma coisa, senhor. Eu concordo com a minha companheira, você não passa de um grande monte de merda.
Com um sorriso malicioso, o legior foi embora, deixando Marcos boquiaberto para trás.
∎∎∎
Ellen desceu as escadas enquanto pisava com força. Situações iguais a essa não falhavam em esgotar a sua paciência, e, em diversas ocasiões, essa falta de controle emocional resultaram em consequências graves. Ela era o tipo de pessoa que só conseguia se acalmar depois de colocar todos os seus pensamentos e sentimentos para fora.
Pessoas como Marcos Arthmael são iguais às baratas, existem aos montes e, independente do esforço, nunca conseguimos nos livrar completamente delas.
Estou ciente da quantidade absurda de dinheiro que insetos como ele ganham em cima dos mais necessitados e como reagem ao mínimo risco de falirem. Nesse momento, é muito fácil deduzir tudo o que aconteceu em Jothenville durante as últimas duas semanas.
Após o fechamento dos portões, diante da ameaça iminente de escassez de alimentos, os mercadores, visando o lucro, aumentaram o preço dos poucos produtos que, consequentemente, foram todos comprados e estocados pelos ricos. Acredito que o mesmo tenha acontecido com os aluguéis e o gás. Aparentemente, os mais pobres não conseguiram bancar o alto custo de vida e, alguns deles, acabaram expulsos das suas casas, jogados à mercê da sorte.
— Todos aqueles que vi nos portões são sem-teto. Pessoas que sequer podem fugir em busca de algo melhor, pois estão presos em uma gigantesca arapuca.
A parte final dessa história é a revolta da população contra o seu governante.
Entendo o fato de a cidade estar completamente depredada. Apesar de todos terem um pouco de culpa nessa tragédia, resolveram jogar a responsabilidade nas costas de Marcos, tirando seus rabos da reta.
Pressionaram-no a tomar medidas para reverter essa situação com as onças-pintadas usando uma guerra civil como ameaça. E já que não conseguiria fazer isso sozinho, o velhote decidiu contatar a Legião de Mahyra e transferir toda essa bagunça para nós.
Humpf. Isso acabou virando um repugnante jogo de batata-quente onde ninguém realmente se esforça para resolver o problema.
— Ele deve ter prometido para as pessoas que nós os libertaríamos. Eu e Owen somos uma espécie de anestesia para conter a fúria da população. — Deu uma risadinha sarcástica. — Bem, concordo que usar a desculpa de: “estamos chamando um dos exércitos mais conceituados de toda a Aliança Sul-americana para nos ajudar”, pode ser bem efetivo.
O que também explica a enorme quantidade de guardas no lado de fora do casarão. Eles estão aqui para proteger Marcos dos seus próprios seguidores.
— Fuaa… Odeio quando me transformam em um bode expiatório.
A legior caminhou pela sala de estar e parou na frente de uma parede que continha dezenas de retratos. Boa parte deles eram antigos e mofados, contendo homens e mulheres diferentes com poses e expressões parecidas.
Esta casa, apesar de gigantesca, não aparenta ter muitos moradores. Então, essas pessoas nos quadros mais antigos devem ser parentes distantes ou falecidos. Já os mais novos, contêm a mesma figura; uma garota de olhos azuis e cabelos dourados…
Será que ela é a filha de Marcos Arthmael? E se for, por que não existem retratos da esposa dele?
— Bem, acho que nada disso importa.
Assim que saiu do casarão, Ellen encarou os seus arredores. Estava em um jardim bem cuidado com uma fonte de água ao longe e alguns lampiões espalhados por locais estratégicos.
Dez pessoas ainda seriam poucas para cuidar de tudo isso. Aquela empregada deve trabalhar que nem uma condenada…
Só então a soldado se deu conta de algo importante. O jardim estava completamente vazio. Todos os guardas que há pouco vigiavam o casarão, tinham desaparecido.
Decidiu imediatamente que era melhor voltar para dentro, mas assim que virou de costas, passos apressados ecoaram. Ela não teve tempo nem de reagir antes de um braço agarrar o seu pescoço e um pedaço de pano úmido ser pressionado contra o seu nariz.
— Clo…ro…fórmio…?! — Após inalar o odor forte, o mundo começou a girar. — Q-quem diabos… é você…?!
A última coisa que Ellen viu antes de desmaiar, foram os calçados da pessoa que a atacou. Um par de sapatilhas simples, geralmente usado por empregadas.