A Rosa Fantasma - Capítulo 7
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▸15h20min — Setor de Criação de Animais◂
O ar próximo às grandes fazendas tinha o odor peculiar de sal e estrume. Essa área se situava próxima à muralha que separava Jothenville da Floresta de Caaporã, e era a responsável pela arrecadação de boa parte da renda total da cidade graças aos animais que vendiam para toda a República do Rio e os países vizinhos.
Owen e Aria caminhavam lado a lado por uma estrada lamacenta. Eles não haviam conversado muito durante o trajeto, pois a loira tinha medo de começar algum tipo de interação. E o legior, ciente disso, dava o espaço necessário para que a mulher se sentisse mais confortável.
Em determinado momento, uma nuvem de fumaça chamou a atenção dos dois.
Vários fazendeiros formavam um círculo ao redor de uma enorme fogueira no terreno de uma das fazendas. Lá, vários cavalos estavam sendo cremados, dando origem àquela nuvem obscura no céu. Os animais também estavam sofrendo com a falta de comida, causando não só uma enorme perda financeira como também sentimental. A tristeza no rosto de cada uma daquelas pessoas deixava isso claro feito o dia.
Owen encarava tudo com naturalidade, já Aria não conseguia nem olhar. Ela manteve a cabeça abaixada até o momento em que se distanciaram daquela fogueira. Seu estresse emocional visível em seus poucos gestos.
Determinado a dar um fim nesse clima ruim, o soldado decidiu quebrar o silêncio que parecia não estar ajudando em nada.
— Por um acaso, você chegou a encontrar uma garota? Cabelos brancos iguais os de um velho, roupa esquisita, intrometida, rabugenta e impertinente?
— Não, mas já ouvi falar sobre. — Aria deu uma risada breve. — As notícias correm rápido por aqui.
— Tomara que ela não esteja metida em alguma encrenca.
— Isso é algo que acontece com frequência? Digo, ficar encrencada?
— Você não faz ideia! Aquela estressada parece ter um imã para arrumar brigas. E o pior é que sempre sobra pra mim o trabalho de limpar a bagunça dela.
— Parece complicado. — A loira hesitou por alguns segundos. — Senhor, vocês dois estão aqui para acabar com os ataques das onças?
Owen pensou com cuidado nas suas próximas palavras. Ele não queria ser irresponsável ao dar falsas esperanças. A situação em que se encontravam era péssima e o futuro nebuloso.
— Farei o que estiver ao meu alcance para ajudar todos.
— Se encontrar a pessoa que está provocando tudo isso, o que fará?
— Pela lei, essa pessoa deve ser presa e julgada. Levando em consideração a gravidade de toda essa situação, acho muito provável que a sentença seja a cadeira elétrica.
Aria fez uma expressão de surpresa.
— O senhor me pareceu extremamente confortável ao admitir que tem a intenção de enviar alguém para a morte.
— As leis foram criadas para serem seguidas. Se eu não as obedecer, estarei me tornando um criminoso também.
— De fato, mas sempre existem escolhas, não? Nem todos concordam ou apoiam essa realidade onde a vida de alguém é ceifada após uma simples votação.
— Hum? Ei, por acaso, você está tentando descobrir se eu sou um soldado que acata cegamente uma ordem não importando as consequências dela?
— Precisamente.
— Bem, se realmente houver uma pessoa por detrás dos ataques, antes de mais nada, tentarei resolver esse problema com diálogo. Ninguém foi ferido fisicamente e gostaria que continuasse dessa forma. Não me considero alguém que apoia a entrega de oferendas para saciar a fome de uma sociedade que só se sente satisfeita ao ver o mal sendo derrotado com mais maldade. — Olhou para a loira e sorriu. — Consegue acreditar em mim? Nas palavras de alguém que faz parte de um exército que cresceu em cima do sacrifício de inocentes?
— Posso até acreditar, mas antes disso, responda-me: que tipo de pessoa o senhor é?
— Tipo? Como assim?
— Sabe, existem milhares de humanos com pensamentos e personalidades diferentes espalhados por aí, mas eu costumo dividir todos eles em apenas dois tipos. Os indiferentes, que agem e interagem com o mundo à sua volta usando o mínimo de sentimentos, não se importando com quem sofre, vive ou morre contanto que não interfiram diretamente nas suas vidas. — Fez sinal de dois com a mão direita. — E existem também os sentimentais. Pessoas que gritam, choram e tem pesadelos sempre que presenciam as tragédias que ocorrem com aqueles que sequer conhecem. A qual desses tipos o senhor se assemelha?
— Antes de eu responder, poderia me dizer a sua opinião? Quem aparento ser, Aria? Seja sincera.
— O senhor parece ser o tipo de pessoa que não liga para aqueles ao seu redor. Os seus olhos são… frios como os de um morto. Mesmo naquele momento, na praça, o senhor não aparentava se importar realmente com o que estava acontecendo. Parecia mais que estava cumprindo com o seu “dever”.
O legior encarou a nuvem de fumaça mais uma vez.
— A Terra é um lugar repleto de tragédias. Da mesma forma que as pessoas estão sofrendo aqui, milhares de outras sofrem ainda mais em outros lugares do planeta. Esse é um fato que nunca mudará. — Respirou fundo. — Eu acho errado sentir compaixão, tristeza ou pesar pelo que está acontecendo com vocês, pois isso seria desrespeitoso com todos os outros que choram por motivos ainda mais trágicos. Não sinto que tenho esse direito, sabe? Porém, isso também não quer dizer que eu sou indiferente e durmo tranquilamente todas as noites. Constantemente, tenho pesadelos e insônia por culpa das coisas que vejo durante o dia.
— Carregar essa máscara de pessoa fria não acaba fazendo com que você seja rejeitado por todos à sua volta?
— Admito que sim. No entanto, foi minha escolha viver dessa maneira. Por mais que o mundo esteja caindo em desespero, eu sempre tentarei agir racionalmente como se não fosse o fim de tudo. Salvar as pessoas não é uma obrigação, mas sim um dos meus caprichos egoístas.
Aria nunca imaginou que algum dia encontraria alguém com pensamentos tão conflitantes. Owen aparentava ser tão calmo, mas ao mesmo tempo, tão triste. Os seus desejos verdadeiramente altruístas, porém, igualmente vazios.
— Como você consegue ser tão franco com alguém que acabou de conhecer?
— Nesse momento, eu não tenho motivos para esconder os meus pensamentos. E, de certa forma, sinto que posso confiar em você.
Isso só era possível porque, de certa forma, os dois eram parecidos. Se Aria era como uma nuvem de chuva, Owen seria aquela nuvem obscura que corrompe o céu azul
— Certo, você me convenceu. Acredito nas suas palavras.
— Obrigado.
Os dois caminharam por mais dez minutos antes de pararem na frente de uma casa humilde construída com barro e taipa. Aria bateu palmas algumas vezes antes de ser atendida.
Um homem de cabelos castanhos e roupas simples abriu a porta. Imediatamente, Owen notou que ele mancava. Supôs que fosse diabetes ou alguma outra doença degenerativa. Era óbvio que exigia muito esforço apenas para ele se manter de pé.
— Oh!
Assim que os olhos do fazendeiro encontraram a loira, um sorriso largo tomou o seu rosto. No entanto, essa mesma expressão foi rapidamente substituída por desconfiança ao fitar o rapaz ao lado dela.
Owen lembrou das palavras ditas por Aria pouco tempo antes; as notícias correm rápido por aqui.
— Entrem, por favor. Sintam-se em casa.
Era uma residência pequena com apenas três cômodos. A sala de estar possuía poucos móveis, apenas uma mesa redonda com três cadeiras surradas, uma prateleira com alguns livros e muitas teias de aranha pendendo do telhado colonial. Lá estavam outras três pessoas, uma mulher grávida e duas crianças pequenas.
— Olhem o que eu trouxe pra vocês!
Aria deu um grande sorriso vitorioso assim que abriu a sacola que segurava, mostrando os pães que protegeu com muito esforço. Tanto o casal quanto as crianças sorriram como se aquilo fosse a coisa mais preciosa do mundo.
— Oh, minha querida! Muito obrigado! Não há nada que eu possa te dar em troca, perdoe-me!
O homem se curvou desajeitadamente. Já a esposa levantou sorridente e correu para a cozinha em busca de algo para acompanhar os pães.
— Não se preocupe com isso. Ter conseguido ajudá-los é a melhor recompensa que eu poderia receber. — E, numa tentativa de diminuir a tensão no ar, acrescentou. — Eu ainda não o apresentei. Este é Owen. Sem a ajuda dele, eu não teria conseguido os pães.
— Muito obrigado, Sr. Owen! Me chamo Guilherme Oliveira. É um prazer conhecê-lo.
Mesmo agradecendo com um sorriso simpático, a desconfiança continuava explícita em seu tom de voz. O legior resolveu responder por educação.
— Estava apenas fazendo o meu trabalho, senhor.
∎∎∎
A Legião de Mahyra era uma ramificação do exército criada anos antes da Guerra das Guerras com o objetivo de ser a força armada mais poderosa e influente da Aliança Sul-americana.
De fato, eles conseguiram isso. Só que com o passar dos anos, a Legião acabou se tornando famosa por ser um grupo corrupto que abusava constantemente da sua autoridade, pisando em cima dos mais fracos para alcançar objetivos que nem sempre eram benéficos.
Owen tinha apenas oito anos quando pôs os olhos em um deles pela primeira vez. Mesmo sendo tão jovem, aquele menino de feição pura já estava ciente de todas as situações horríveis que os legior’s deviam enfrentar no dia a dia. Eram soldados, e como em qualquer força armada, viam-se obrigados a encarar a morte frequentemente. Ainda assim, ele sonhava em fazer parte daquele grupo.
Desejava ser admirado.
Desejava proteger todos que amava.
Desejava ser um herói.
Alguns anos depois, quando Owen se encontrava ferido mentalmente e sozinho no mundo, conseguiu ingressar na Legião. Porém, o fez por um motivo bem diferente de quando era mais novo, movido apenas por sede de poder e o desejo de se vingar.
Os testes foram duros, muitas vezes cruéis, mas ainda assim, Owen conseguiu a primeira colocação dentro do seu pelotão, sendo considerado um prodígio capaz de derrotar até mesmo um adulto experiente.
Tudo esteve ótimo por um tempo. “O Gênio de Gelo” realizou o seu sonho de infância, fato que o deixou feliz por um breve momento. Só que então, veio a sua primeira grande missão, que dada a proporção, tornou-se popularmente conhecida como: A Queda do Paraíso.
No meio do caos, onde pedaços dos seus companheiros voavam diante dos seus olhos. Quando a desconfiança, o medo, a dor e o sofrimento apunhalavam o seu coração sem cessar, ele finalmente se convenceu de que o mundo onde seria um herói jamais existiria.