Amor & Ódio - Capítulo 1
01
25 de janeiro de 2023
Quando Lívia Carvalho finalmente acordou, a dor de cabeça mais forte que já sentira atacou, ao retomar o senso ouviu o celular na bancada branca de madeira, ao seu lado, vibrou com uma notificação de um SMS qualquer da TIM, ele desligou rápido, mas foi tempo suficiente para que ela pudesse ver: eram 22h50. A dor piorou. Levantou tonta e tateando pelo escuro tocou no abajur inglês – o qual servia para ler livros, mas sua vida estava uma verdadeira bagunça desde que saíra de Natal – e acendeu. O pequeno quarto foi iluminado sem muita dificuldade, olhou para a cama e sentiu um alívio imediato em sua mente, como se tomasse banho de banheira, com rosas e água morna. Ela nunca sequer tinha tocado em uma, muito menos o privilégio de se banhar, mas talvez aquela fosse a sensação. Liberdade. Imaginou ela. Estava em Recife, a pelo menos 280 km agora, longe o suficiente. Abriu a porta do quarto e se dirigiu até a pequena cozinha, ligando as luzes no caminho. O pequeno cômodo possuía duas caixas de papelão (não dera para levar tudo). Abriu a da direita, dentro uma caixa de plástico azul reluzia a luz da lâmpada. Tirou, colocou sobre a mesa e abriu. Floratil, Cimegripe, Ritalina (era de Daniel), Dramim… Mas o que procurava estava no fundo… Dorflex. “Ah há, achei!” Ela preferia Dipirona, mas não reclamou. Tomou dois comprimidos com um pouco de suco de laranja comprado na viagem e estava sobre a bancada (morno), talvez assim tivesse uma boa noite de sono que desde sua chegada, há dois dias, só piorava.
Olhando novamente para o pequeno recipiente azul, enxergou uma pomada roxa amarelada, Fledoid, estava bastante seca e usada, usava a pelo menos um mês (deveria durar um ano), mas ela precisava fazer os hematomas desaparecerem. No banheiro, acendeu a luz, sua pele branca reluziu: roxo avermelhada. Passou a pomada. Doía. “Maldito seja…” Pensou. Amarrou o escuro e comprido cabelo ondulado. Apagou a luz e voltou à cozinha. Abriu sua bolsa carmim de couro sintético – Daniel costumava dizer que ela parecia uma prostituta usando aquilo. – Abriu o pequeno utensílio e retirou um maço de Marlboro, ainda plastificado. Rasgou a embalagem e acendeu o cigarro com um fósforo. Seu amado isqueiro estava a quase 300 km dali, com Daniel. Tragou enquanto lembrava-se do marido. Eles não terminaram oficialmente, ela deixou uma carta na bancada da cozinha antes de pegar o Sandeiro e sair do maldito apartamento. Eles viviam uma vida linda, digna de classe média alta (tão alta a ponto de não tomar banho de banheira?). Todos falavam que eles eram o casal dos sonhos. Teriam filhos se ela não fosse infértil, Lívia agradecia agora por isso, embora Daniel já houvesse pedido… Não… Coagido ela a fazer uma in vitro. O uso dos anabolizantes, algo que ele amava tomar, também não colaborava. Lembrando agora Lívia contabilizou ao menos dez vezes em que ele broxou ao longo dos sete anos que seguiram juntos. Ela riu. Parou. Riu mais uma vez e depois tossiu. Não apenas Daniel estava acabando com a própria vida…
Era quase meia noite quando terminou o maço de cigarros. Pensar sobre ele era cansativo. E pensar que amou ele era vergonhoso. Longe o suficiente Lívia poderia analisar melhor, tinha uma delegacia da mulher a alguns quarteirões, de manhã ela poderia ir lá, torceria para que não tivesse um daqueles policiais de merda. Colocou as coisas sobre a mesa e foi se deitar, mas antes, quando estava no corredor, as luzes apagaram.
02
Lívia, a princípio, ficou assustada, mas quando abriu a janela da cozinha e viu o poste desligado imaginou que poderia ser um apagão. Talvez fosse algum erro ou apenas um ajuste em algum transformador, ou na rede de distribuição, previamente avisado aos moradores de Recife, mas ela não era moradora a pelo menos nove anos e não tinha informações da pequena metrópole desde… Desde que sua mãe morrera de câncer de mama há dois anos. Talvez… Não. Na verdade era ela um dos motivos de Lívia não ter denunciado ou fugido, Daniel pagava todas as consultas da sua mãe, a quimioterapia, os remédios… E quando brigavam ele sempre ameaçava cortar tudo.
Vendo melhor, Lívia percebeu: a parte entre a casa e o muro parecia clara e bastante visível, pensou que fosse a lua, mas olhando para cima foi possível reparar pequenos e grandes pontos brilhantes, tinham milhões ou até bilhões de estrelas. Um dos braços da Via Láctea podiam ser visto circulando todo o céu. Lívia continuou apreciando por bastante tempo, vinte ou trinta minutos talvez. A casa estava absolutamente silenciosa a não ser pelo rangido fino metálico, como se fosse um grito de aviso: alguém entrou pela porta dos fundos. Ela a tinha deixado fechada, mas não trancada – diferente do resto da pequena residência -. Segundo Victor, o homem com quem negociou duas semanas antes para alugar a casinha, disse que aquela porta estava com problema de tranca e que em breve iria ajeitar, mas Lívia estava com pressa, sair de Natal era prioridade então ela não teve objeções.
Desde a noite do dia 24 de dezembro, um mês antes, nas vésperas de sua celebração favorita (atrás apenas do seu aniversário), ela fez um jantar digno de Oscar e chamou Rute, amiga desde o fundamental II, acabou desabafando sobre o casamento, fazendo eles quase pararem na delegacia, no final Rute foi expulsa. Elas não se falaram desde então porque Daniel havia pegado seu celular, pouco antes ir acabou comprando outro. Naquela mesma noite ele bateu com a frigideira quente em seu rosto, e ela nunca se esqueceu do seu olhar doentio de ódio que avisavam: você falou demais. Causou uma queimadura de segundo grau que ela ainda cuidava. Fugir do apartamento passou a ser questão de sobrevivência. Naquela noite uma chave girou como se gira a chave de um avião que parte para longe: ela morreria se continuasse ali.
03
O rangido metálico ecoou por toda a casa. Lívia rezou para Deus: que fosse só o vento, não era possível, ele não poderia tê-la encontrando poderia? O silêncio permaneceu. Lívia ficou um tempo pensando. O histórico, ela se esqueceu de apagar o histórico de pesquisa do computador, o aparelho era dividido entre o casal, mas nenhum deles usava com frequência. A porta fora aberta pelo vento, só isso… Quer dizer, Lívia ainda estava parada na cozinha e não tinha ido até lá conferir. Seu coração batia na garganta querendo sair, seu corpo arrepiou como se aranhas andassem em cima da pele. Ela apenas olhava para o breu, a única coisa iluminada – parcialmente – era a cozinha por causa da luz das estrelas que entravam pela janela. A porta bateu, mas não fechou, ela sabia por causa do barulho, não era um barulho de quando a porta fecha, era um barulho de uma porta encostada que batia: o vento empurrava e ela batia de novo, mas nunca fechava de verdade. As vozes sussurraram em seu ouvido, cada vez mais altas: “é só o vento, Lívia. É só o vento. Ele jamais te encontraria! Não àquela distância. É SÓ O VENTO, LÍVIA.” Mas não era, e ela só descobriria depois.
04
Daniel Freitas odiava viagens com mais de duas horas, eram uma perca de tempo, mas quando olhou a carta de Lívia sobre a bancada fez questão de ir até Recife de carro, ele não gastaria com avião para matá-la. Depois de TUDO que ele fez, ela o deixaria? Não. A carta estava bem clara: ela não voltaria nunca mais, ele não se importou. Uma vadiazinha não poderia fazer isso, não com ele. A princípio, ele não sabia onde ela poderia estar. Vasculhou a casa a noite toda depois de surtar e quebrar a televisão – é claro – a geladeira e a mesa de vidro. Ele quase quebrou o computador também, mas assim que pegou a campainha tocou, e um homem idoso e baixo reclamou do barulho. “Bendito velho idiota” pensou Daniel mais tarde. Quando abriu o histórico achou mais de dez sites com imóveis à venda e para alugar. Na manhã seguinte falou com todos os proprietários pelo celular, até achar um Victor que dissera ter alugado para uma tal de Lívia Carvalho. Victor pensou em contar a ela, mas palavras de Daniel foram: “ah, ela é minha esposa, mas não confirmou se tinha alugado ou não.” Era estranho pensar que a mulher não contaria uma coisa dessas ao marido, mas ele não perguntou, não perguntou porque achou que aquilo não era da conta dele. “Eles são um casal e vão se entender” pensou. Mas eles não se entenderam, e ele dirigiu quase 300 km para fazê-la pagar. Daniel costumava chamá-la de Puta Recifense porque as putas obedeciam aos seus senhores (ou clientes, mas ele não gostava de se rebaixar assim). Agora preferia chamá-la de Cascavel Recifense porque ela havia dado o bote e ferido ele. Lívia era a culpada por toda essa baderna e se não fosse ela, ele não teria dirigido a merda do Renegade por quase quatro horas.
Quando o apagão ocorreu Daniel tinha acabado de entrar em Recife, por um momento ele ficou surpreso e assustado. De inicio, seu plano era cobrar a dívida dela na noite seguinte, mas… Aquele apagão, aquele divino apagão era uma obra divina, como se o universo, o céu e a terra conspirassem para que ele… A matasse. Sim era isso, Daniel tinha certeza, conseguia sentir.
05
Lívia escutou ruídos, talvez, só talvez, Daniel esperasse-a no pequeno quintal de cinco metros quadrados, a porta era uma forma de atraí-la.
Tentou organizar os pensamentos. Continuando daquela forma acabaria em um surto psicótico. Tateou pela mesa, pegou o fósforo, acendeu-o e caminhou a passos largos e silenciosos até o corredor. A pequena chama não iluminava muito bem. Pensou consigo mesma: “ele não está lá, é só o vento”. No final do corredor existia uma sala que – segundo Victor – era uma espécie de porão. Adentrando bem o pequeno cômodo a iluminação da vela pareceu menor, no final da parede direita do lugar a porta batia, e entre pancadas causava eco, o maldito eco, uma porta não poderia abrir sozinha, poderia? Lívia hesitou. Parada a pelo menos três ou quatro metros do pedaço de madeira. Tomou o resto de coragem a qual achava que ainda possuía e fechou. Os barulhos cessaram. E a casa continuou em silêncio absoluto. A não ser por uma respiração, uma respiração baixa, como quem não tem pressa e está calmo, o que quer que fosse estava atrás da porta, do lado de dentro, fechado com ela na casa. Em um impulso aproximou o fósforo de onde vinha o barulho, e mesmo com uma iluminação péssima ela pôde ver o rosto, o rosto que deveria estar a 280 km da porra daquela casa, o rosto que deveria estar atrás das grades de uma delegacia, o maldito rosto o qual deveria estar no apartamento, na merda do apartamento. Mas não estava. E não era um pesadelo. Lívia gostaria, gostaria tanto que fosse. Aquela voz macia e calma, ávida e animada que ela conviveu por tanto tempo percorreu seus ouvidos:
—Meu amor, o que você tá fazendo tão longe de casa?
06
O fósforo apagou. Tentando de alguma forma sair dali, Lívia caminhou para trás, ou o que ela achava que era atrás, na escuridão absoluta. Caiu por entre as pernas batendo a bunda no chão, ela queria falar, gritar e até perguntar como ele chegou até lá, mas nada daquilo realmente importava. Daniel abriu a porta novamente, iluminando o pequeno salão com a luz das estrelas que agora enfraquecia devido a nuvens de chuvas. Ele agarrou seus braços com força, suas unhas entravam em sua carne como vermes entram em seu hospedeiro.
—Burra, sua vadiazinha burra, como você acha que eu não te encontraria!?
—Danie… — A boca de Lívia amarrou-se, sua língua afugentava qualquer frase completa. —Eu não… Nós… Você sabe…
Daniel colocou as mãos ao redor da cabeça de Lívia, segurou, pressionou, fazendo-a gemer de dor, jogou a cabeça dela contra a porta como quem joga uma bola de boliche. A dor perfurou seu corpo: primeiro a testa, o nariz e depois os lábios, uma tontura forte e depois uma dor de cabeça seguiram juntas. Daniel afastou o rosto de Lívia, era apenas a primeira rodada para ele e ela estava perdendo.
Lívia sabia: ele estava com a guarda baixa porque ela nunca revidou, nunquinha mesmo. Ela poderia tentar argumentar nas discussões, mas nunca, em hipótese alguma, revidar uma tapa – ou um soco -. No final não fazia diferença, não para Daniel, eles sempre resolviam tudo na cama no final do dia e todo o estresse ia embora. Mas ali era diferente, era outro ponto da vida. Com o resto de força que tinha – ou pensava que tinha -, Lívia levantou o braço e com o punho fechado socou o a bochecha de Daniel, ela conseguia sentir os ossos enquanto batia, ouvia sua mão enquanto amassava o rosto e a mão dizia: “tá sentindo agora, caralho?” Ela definitivamente não estava bem. O rosto de Daniel colidiu com a quina da porta e Lívia jurou ter sentido uma gota (de sangue ou saliva, ela não conseguia distinguir) em seu rosto.
Correu casa adentro, por entre tropeços, tateou pelo “porão” e corredor. Derrubou algumas coisas não identificáveis. Ela poderia pegar as chaves e sair de casa, mas isso demoraria, e ela sabia disso, Daniel não ficaria atordoado com apenas aquilo. Continuou a tatear até achar a porta do banheiro, entrou, agachou e se escondeu debaixo da pia enquanto ofegava. Um grito, agora não tão macio e calmo, ecoou por toda a pequena residência:
—SUA PIRANHA, VADIA DO CACETE, PUTA DO CARALHO EU VOU TE MATAR!
07
Daniel fervia em ódio e acabou por esquecer o seu celular no bolço da calça que poderia ser usado como lanterna.
Os passos brutos no corredor faziam o coração de Lívia estremecer. O suor frio escorreu sobre o rosto. Mesmo no escuro os olhos tentavam procurar alguma coisa, qualquer vestígio de Daniel, mas apenas o breu permanecia. Sua respiração ofegava barulhenta.
Os passos cessaram, ou pelo menos o barulho, agora eram fofos e leves como passos de coiote. Lívia tentava controlar a respiração acelerada. Talvez… Talvez se ela tivesse ido a delegacia com Rute… Não, não era hora de culpar a si mesma ou pensar no que já passou, Daniel estava lá e ela também, correndo risco de morte.
As gotas batiam em seu ombro. A pia do banheiro estava vazando quando ela chegou dois dias antes. A casa era realmente básica. “Rustica” dissera Victor.
As gotículas atravessavam a camisa e molhavam seu ombro esquerdo fazendo um som oco e seco: Puh… Puh… Puh… O som misturava-se com a respiração caótica de Lívia enquanto seus olhos procuravam… Procuravam Ele, mas não havia ninguém só o breu, só o escuro. Puh… Puh.. Puh… Ela pedia a Deus que ele fosse embora, maldito. Ela ficou assim por pelo menos dois minutos. Um barulho agudo e estridente veio do quarto percorrendo os ouvidos de Lívia, como se a perseguissem. Daniel derrubou o abajur. Olhando melhor viu: no fundo do banheiro, uma luz fraca, – a luz das estrelas -, vinha da janela basculante. A única coisa que conseguia (literalmente) ver naquele momento. Era ainda mais fraca porque o vidro fumê do box as separavam. O brilho da liberdade.
Tateou pelo chão, apoiou-se na parede e levantou-se. Ainda usando a parede como apoio entrou no box e sentiu o piso molhado do banho das 21h. Estava escorregadio do creme de cabelo que caíra enquanto lavava o cabelo. Abriu a janela basculante. Ela não cabia só de ver sabia. Poderia tentar quebrar com a mão, mas talvez não funcionasse, e faria barulho. Sentou-se no chão e olhou para a enorme escuridão a sua frente. Ele a mataria, ele a mataria com as mãos, enforcando-a.
O silêncio ensurdecedor revelou longe, mas tão perto, um ar pesado: respiração. Ela não sabia exatamente de onde vinha por causa do blecaute, mas poderia sentir, sentir o barulho entrando no cômodo, no banheiro. Adentrando cada vez mais perto. Inspiração, expiração. Lívia tapou a boca para não fazer barulho. Ele estava ali. O homem com quem dormia e acordava todos os dias, todos os malditos dias, estava naquele mesmo espaço. A mão de Daniel tocou levemente no vidro fumê do box, fez um leve barulho, quase inaudível: tlic… Lívia prendeu a respiração. Suas veias pulsavam como vermes sobre a pele, sobre o rosto. Tump… Tump… Tump… O coração estourou em pulsações doendo o peito. Seus olhos tremeram espasmando rapidamente querendo pular para fora enquanto lágrimas desciam rapidamente como grande edifício o qual desmorona, um súbito zumbido forte atacou seus ouvidos, como quando uma caixa de som quebra, o pequeno ruído misturava-se com a inspiração e expiração de Daniel logo acima, abafando o box, o som ia e vinha: inspiração e expiração. Cessaram. Os passos de Daniel ecoavam leves, como se estivesse fazendo esforço para não pisar no chão, aos poucos se tornavam mais e mais fracos. Lívia soltava devagar o ar das narinas.
Foi perto da porta quando Daniel tateava pela pia, um som alto estrondou: o celular tocou. Alguém havia ligado para ele, mais tarde ela descobriu que era o chefe do trabalho.
08
Quando o aparelho vibrou e depois chamou no bolso da calça, por um breve momento, Daniel se sentiu idiota e achou que talvez tivesse a deixado escapar, mas quando recusou a chamada e ligou a lanterna – ele se culpou ainda mais por não ter pensado nisso – os raios artificiais de luz mostraram os fios escuro e o rosto pálido roxo avermelhado de Lívia sentada dentro do box.
09
Lívia soltou a respiração de uma vez fazendo mais barulho do que imaginara. Ela não viu a reação em seu rosto porque a luz da lanterna impedia isso, mas tinha certeza que era felicidade (não era?). Usou as mãos para apoiar-se na parede e tentou se levantar usando as pernas, escorregou um pouco e se segurou no suporte de shampoo.
Daniel jogou o celular sobre a pia com a lanterna virada para cima, a luz bateu no teto e refletiu para todo o banheiro.
—SUA PUTAZINHA DE MERDA!
Lívia não sabia exatamente, mas havia algo, naquele banheiro ou nela, que a fazia odiá-lo mais do que ter medo, pelo menos naquele momento, talvez (só talvez) fosse as lembranças: a frigideira quente, Rute, as chantagens, o jeito doentio que ele a tocava em casa para transarem, os gritos, o Puta Recifense e a forma como ele a deixava se sentir uma merda na frente dos amigos dele nos almoços de domingo, como se tudo isso estivesse naquela maldita frase de oito palavras. Agora ela tinha certeza: as piores palavras da sua vida não eram xingamentos, era aquele maldito “eu aceito” no cartório sete anos antes. Ela chorou não de medo, mas de ódio.
—VAI SE FODER!
Daniel entrou no box derrubando todos os produtos de higiene do porta-shampoo, Lívia ergueu as mãos, ela não tinha tanta força quanto ele, mas a cabeça fodida dele (por causa da quina) poderia facilitar as coisas, ou não. Fechou o punho e tentou uma ofensiva. Daniel segurou com facilidade e revidou. CRECK. Ela sentiu um estrondo dentro da cabeça, e depois uma dor intensamente corrosiva no nariz, quase como se o tivesse arrancado. Lívia bateu com força na parede atrás dela sentindo outra dor: o registro do chuveiro bateu nas suas costas, ela se apoiou nele, mas acabou abrindo e a água jorrou em seu cabelo e molhou o chão. Daniel seguiu e apertou seu pescoço contra a parede. Os olhos de Lívia se alternavam entre o borrão e o nítido. Ela morreria. Ela morreria depois de tudo? Sua mãe costumava dizer que o mundo era injusto. Mas ela não se importava com filosofias baratas, não naquela ocasião. Usou os últimos resquícios de força, com o pé direito, empurrou a parede e jogou seu corpo contra o de Daniel, o chão molhado junto ao creme de cabelo fizeram os dois pés dele escorregarem. Lívia conseguiu ver: ambos estavam caindo para o lado onde havia o vidro fumê.
O vidro do box, bastante velho, desprendeu das paredes do banheiro sujo e caiu. Junto a ele Daniel e Lívia seguiram. Os estilhaços voaram como urubus famintos para todos os lados cortando o rosto de Lívia e perfurando a carne de seu marido, antes dos dois arrebentarem-se no chão uma pancada aguda e seca ecoou por todo o cômodo, Lívia não conseguiu ver na hora. Ela caiu um pouco mais para a esquerda batendo o rosto nos cacos de vidro os quais estavam no chão, rasgando sua orelha e a queimadura em seu rosto.
Demorou dois ou três segundos até ela dar conta de que estava muito perto de Daniel. Afastou jogando-se para o outro lado do banheiro. Ela ofegava bastante, seu rosto doía, sua orelha queimava, seu nariz sangrava. Usou o antebraço de apoio e olhou para o lado: ele não mexia nada, nem um dedo, seu rosto estava virado para o outro lado e sua cabeça próxima do vaso… Do vaso sanitário. A tampa ficou amassada e um pouco manchada de sangue. Daniel tinha desmaiado.
10
Era meia noite e quarenta quando Lívia olhou o celular de Daniel. Olhava para ele e depois para o smartphone, fez isso várias vezes enquanto usava o aparelho. Tinha um plano básico e rápido na mente: ligar 190 e depois relatar tudo, ligar 192 e rezar para que a SAMU viesse acelerada, a pelo menos 100 km/h para… Ela parou de digitar o número. Para… Salvar Daniel? Olhou para ele: continuava deitado, imóvel. Só poderia ser brincadeira: sua cabeça pregando uma peça… Ou a moral gritando mais alto… Ela salvaria mesmo ele? Depois… Depois daquilo? Quando acordasse no hospital viria atrás dela… Uma medida protetiva era suficiente, não era? Era. Mas Lívia não conseguira acreditar, não no estado em que estava. Lívia ligaria para a polícia e… Pensou. Pensou por pelo menos trinta segundos, era pouco, mas naquela hora pareceram horas. Silêncio. E… Diria que matou Daniel por legítima defesa. Depois ligaria para a ambulância, era isso não era? Olhou o chão. Cacos de vidro de diversos tamanhos. Cortaria a jugular e… Não. Ela não era como ele, Daniel não havia matado ninguém também, mas… Mas era diferente. Ela estava se protegendo e até a Justiça poderia entender isso! Não poderia?
Lívia colocou o aparelho eletrônico com a lanterna virada para cima iluminando amplamente o banheiro. Tentou desamassar a tampa, quase com sucesso, não poderia deixar vestígios de que era algo consciente. Olhou por cima do rosto de Daniel, desmaiado. Um pouco de sangue escorrera ao lado do ouvido direito. Aquela era hora. Pegou um pedaço, o mais pontudo que achou. Colocou os joelhos ao lado do marido. Com a mão trêmula posicionou o caco sobre a jugular, ou onde achava que ela ficava. A mão enfraqueceu. Parou. Segurou com mais força até o vidro adentrar a carne da sua mão e sangrar. Posicionou novamente. Pressionou criando uma fenda pequena, jorrou um líquido vermelho carmim. Ela expandiu a pequena fenda, como uma torneira quebrada o sangue esguichou por todo o banheiro, primeiro sujando seu rosto depois sua roupa e o chão, o vaso e a parede do outro lado, o antigo box, a janela basculante e resquícios pararam na pia e celular. O líquido vermelho vivo escorria em direção ao ralo.
A ficha de Lívia só caiu quando a polícia chegou e a viu toda ensanguentada: ela matara uma pessoa… Não. Havia matado um monstro que por infelicidade do destino era seu marido. As estrelas brilhavam forte, e ela agradecia a elas por estar ali, por estar viva seja lá o que isso significasse. Deu o depoimento como tinha planejado – como realmente tinha acontecido, não? – Daniel invadiu sua residência, tentou matá-la e no calor do momento quase inconscientemente ela usou o pequeno pedaço de vidro e… Ela fingiu algumas lágrimas – por que realmente choraria por aquilo? Tinha derramado lágrimas o suficiente– foi a julgamento, mas o advogado que contratou fez um bom serviço.
O sangue de Daniel vagou pelos esgotos de Recife junto aos lixos e dejetos, banhou os ratos e os canais da velha cidade abandonada e seguiu até chegar ao Atlântico.