As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 10
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- Capítulo 10 - Charles Fritz, o melancólico
Reunidos no centro do vilarejo, o grupo decidia os próximos passos. Tudo começava a ficar mais simples com a confirmação do rumo de Herbert após Wittenberg.
— A caverna — Petry divagou, observando o mapa com os outros ao seu redor — de todos os locais possíveis, a caverna era sempre o mais provável. A ideia de haver um ‘’urso guardião’’ protegendo a pedra é bem conveniente, se for parar pra pensar.
— Mas… alguém já entrou lá? — Arthur perguntou. Ele e Luther se encontravam recuperados após tomarem as últimas poções de cura de Petry.
— Homens comuns entraram e morreram — o alquimista respondeu em tom sombrio — Lembra da história de Richter, o pastor de ovelhas? Pois é, a caverna sempre foi considerada perigosa por causa disso. Os alquimistas acabaram lhe dando a fama de ser um local de azar. Ou seja, nem mesmo os alquimistas seriam capazes de conter o urso, graças a tal superstição.
— Então isso quer dizer que Herbert nunca acreditou nessa história — Julia comentou, com um olhar feroz.
— Vagner sempre foi cético em relação a vários aspectos da Sociedade. Provavelmente pensa em lutar com o animal.
— Esse duelo lhe dá a chance de privar a própria existência? — Pulget perguntou, esperançoso.
— Melhor não pagar pra ver — Petry se virou, observando o horizonte que ainda os aguardava naquela jornada — vamos, gefährten. Nosso tempo é curto e estamos próximos de acabar com isso.
Todos seguiram o mestre de misturas. O fim da manhã chegava, uma brisa gélida dava um ar novo à peregrinação. A falta de nuvens no céu lhes trazia apreensão, diante dos novos desafios que iriam surgir.
Desamarraram as rédeas, a fim de montar em seus cavalos e deixar o sinistro vilarejo, que jamais seria temido novamente.
Na estrada, Arthur se juntou a Luther, para ouvir mais uma vez como o combate se sucedeu após ele ficar desacordado. Mesmo se sentindo tolo por ter sido nocauteado tão facilmente, não pôde deixar de admirar a perspicácia do homúnculo. Mas mais impressionante ainda era a forma como Valentin fora derrotado, um assombro.
— Mas… você realmente o mandou para um vão onde ele deixa de existir?! — perguntou pela enésima vez, recebendo novamente a confirmação do monge — mas, é possível derrotar qualquer um com isso? Até mesmo Herbert?!
— Se assim for o desejo de Skript — Luther fechou os olhos, soltando uma prece inaudível — é ele quem me concedeu e irá conceder tal poder novamente, se assim for da sua vontade…
— Espero que vossa entidade aja com conveniência — Pulget expressou, descrevendo um arco pelo corpo.
— É realmente impressionante como um elixir pode nos conceder habilidades surreais — Petry se achegou a eles, com um tom de deboche. Luther foi o único a não entender o sarcasmo do alquimista.
— De fato, o que vocês humanos conseguem fazer apenas com elementos presentes nesse mundo é impressionante.
Arthur e Pulget fizeram um sinal de desaprovação. Se existisse um homem mais teimoso e cético que Adam Wolfgang Petry, eles não o conheciam.
***
As primeiras estrelas começaram a surgir ao fim do crepúsculo vespertino. Os vales passavam a se tornar mais íngremes e menos verdes à medida que a trupe os cruzava. A brisa fria era cortada por suas vestes, que exceto pelo casaco de lã que Julia usava — dado por Petry — não eram eficientes para a proteção do clima gelado.
— Desse jeito vamos virar presuntos congelados — Arthur comentou, tremendo. O homúnculo se encontrava escondido entre os cabelos do garoto, os quais eram cobertos pelo capuz das vestes de alquimista.
— Vamos lá, rapazes — O Mestre de misturas apertou a cartola na cabeça, a fim de evitar que o vento a levasse — não está tão frio quanto parece. Acreditem, no inverno fica muito pior.
Luther, como esperado, era o único a não ser afetado pelo clima.
Julia, que caminhava sozinha por um canto, se encontrava pensativa novamente: Estavam cada vez mais perto do objetivo, de enfim terminar aquela jornada. Mas, seriam eles capazes de derrotar Herbert? E se ele conseguisse preparar o Elixir da Vida antes da trupe o alcançar? Qual era a magnitude de poder que alcançaria?
Segundo Petry, quem tomasse o Elixir da Vida, se tornaria imortal e poderoso. Isso queria dizer que Herbert provavelmente seria imbatível. O que a consolava naquele momento, é que ao menos sua habilidade poderia ser usada de forma sublime em uma caverna escura. Se tivesse a oportunidade, iria trucidar o maléfico alquimista com tanta violência, que seu corpo se tornaria uma pasta irreconhecível.
Sempre que imaginava sua vingança sendo realizada, uma intensa sensação corria pelo seu corpo, como brasas consumindo uma cabana. No entanto, tentava a todo momento lembrar do conselho de Petry; não devia ficar cega pela ira, pois era dessa brecha que o oponente se aproveitaria quando estivesse cara a cara para um combate.
É pelo senhor, pai. Pensou, tentando se justificar, ele o matou sem piedade, cometeu vários crimes só pensando em si mesmo. Ele merece minha ira, meu desejo de vingança, o senhor me entenderia…
Não possuía total certeza quanto aquela última afirmação. Mas fato é que, quando Donovan Aurora morreu, um pedaço de Julia também se foi.
Em meio a tais devaneios, a garota nem notou quando o mestre de misturas se achegou ao seu cavalo. Com um olhar severo, ela sabia que o alquimista havia notado seu semblante furioso.
— Ainda pensando na sua vingança, não é, Julia?
— E no que mais eu poderia pensar? — ela soltou, sem paciência para esconder o que sentia — é para isso que me juntei ao senhor e aos outros. Ele tirou tudo de mim, tudo!
— Não está errada em pensar assim, não poderia ser de outra forma — Petry olhou bem nos olhos dela, a fazendo se sentir constrangida, pois ele parecia saber muito mais — mas lembre-se; tudo que Herbert está fazendo, ele só pensou em si mesmo. Se você nos acompanha apenas para se vingar, não é muito diferente dele…
— Como assim? O senhor não pode estar falando sério! — Julia explodiu, achando um absurdo ser comparada a pessoa que mais odiava naquele momento.
— Veja bem, Julia, ambos possuem um objetivo, ambos os objetivos são gananciosos, não altruístas. E por mais que Herbert consiga se tornar poderoso, isso não lhe trará verdadeira satisfação. E por mais que você consiga sua vingança, ela não lhe trará verdadeira satisfação. Consegue ver? Ambos os objetivos são vazios e egoístas.
Julia simplesmente não queria mais ouvir. Pois por mais que moralmente e eticamente suas palavras fizessem sentido, ela não se importava nenhum pouco com aquilo naquele momento. Tudo que não queria era ser contrariada, muito menos comparada a Vagner Von Herbert.
Se afastou do alquimista de forma áspera, não queria falar com ninguém naquele momento. Petry suspirou e a deixou ir, esperançoso que ela refletisse
A noite caia lentamente sobre os densos vales. A trupe, já cansada, pretendia acampar em algum lugar próximo. Se pelo menos pudessem prender os cavalos, já estaria ótimo.
Entre os relevos que surgiam no horizonte, avistaram uma árvore grande, o suficiente para abrigar todos eles debaixo da sombra. Se entreolharam e sem dizer palavra, passaram a galopar em direção à árvore.
Desceram uma encosta levemente estreita, até enfim chegarem no perímetro desejado.
— Espere, tem alguém ali?! — Arthur exclamou, apontando sem necessidade para um homem de semblante abatido. Ele se encontrava sentado, encostando as costas no tronco da colossal árvore.
Petry achou a situação um tanto suspeita, já que aquela área a qual se encontravam era razoavelmente distante de qualquer cidade ou vilarejo. Mas ao mesmo tempo, havia um detalhe a mais que podia cessar qualquer suspeita: uma corda grossa estava amarrada sobre um dos galhos mais baixos, como uma forca.
Aquele homem, ou quer se suicidar, ou é um ladrão querendo pregar uma armadilha em alguém. O alquimista deduziu. Ou pior, é mais um aliado de Herbert.
— Aquele homem parece carregar um fardo pesado além da conta — Luther comentou — consigo sentir as vibrações pelo cosmos.
— Devíamos ajudá-lo, não? — Julia perguntou.
— Não sabemos se ele pode ser um ladrão querendo pregar uma armadilha…
— Mas ladrões não tem vez com a gente, Senhor Petry! — Arthur interrompeu, determinado.
— … Ou, um aliado de Herbert.
Diante da suposição, todos ficaram apreensivos. Como sabiam, Herbert não estava para brincadeira. Até onde constava, ele sabia que pelo menos Petry o procurava.
— O que faremos então? — o aprendiz de alquimista perguntou.
— Antes de nos aproximarmos, precisamos descobrir se ele é confiável ou não — O Mestre de misturas deu as costas aos heróis.
Seu intuito era se aproximar um pouco, para que pudesse trocar palavras com o estranho. Assim o fez, estando a quinze metros de distância, se dirigiu ao melancólico:
— Ei, você — O rosto do estranho se inclinou na direção de Petry. A pele corada contra a brisa fria, sua face era estampada por um bigode assimétrico, sobrancelhas largas e olhos de aspecto oval — O que está fazendo em um lugar desolado como esse?
— Foi o chefe que lhe enviou? — ele perguntou, com uma expressão chorosa — Me deixe em paz. Eu não quero mais esse trabalho. Minha esposa morreu não faz nem dois dias e ainda querem que eu conduza uma carruagem em luto?
— Não fui enviado por nenhum chefe, herr — O alquimista fez uma reverência desnecessária — Meu nome é Adam Wolfgang Petry, sou apenas um alquimista que procura alguém… o que pretende fazer com essa corda, se me permite a pergunta?
— Espero acabar com meu sofrimento, quando tiver coragem — O melancólico observou as estrelas que começavam a surgir sobre o firmamento — não há mais nada para mim nesse mundo, sem ela.
O mestre de misturas, analisando o semblante genuíno de depressão que o homem carregava, decidiu que poderia se aproximar. Não pretendia seguir caminho ignorando um suicida.
— Eu vou até ele, vigiem os cavalos — avisou para os demais, que observavam apreensivos a cena inusitada.
Mesmo se aproximando, Petry não pretendia abaixar a guarda. Os ingredientes para uma mistura, caso precisasse, já estavam armazenados nos balões, prontos para o preparo do elixir.
Chegando até a copa da enorme árvore, o alquimista se aproximou do estranho, se agachando para o encarar. Primeiro, verificou se havia relevo em suas vestes — a fim de descobrir se carregava ou não balões de fundo redondo — ele se encontrava limpo nesse aspecto.
— Como se chama?
— Charles Fritz — respondeu, ainda encarando as estrelas, lágrimas brotando dos olhos ovais — não tem mais importância, já cumpri meu objetivo, posso ir em paz agora.
— E qual era seu objetivo — O objetivo de Petry naquele momento, era ganhar a confiança de Fritz para que o impedisse de tirar a própria vida. Ao mesmo tempo, tentar lhe arrancar alguma possível informação.
— Sempre fui um homem medroso, entende? Quando decidi que não queria mais viver, pensei em várias formas de acabar com meu sofrimento. Mas nunca tive coragem para nenhuma delas, então simplesmente me sentei aqui e esperei a morte vir — Fritz então encarou o alquimista, com um olhar vago e vazio — a uma hora atrás, um homem montado em um cavalo estranho veio até mim, conversamos e eu lhe contei tudo. Ele disse que poderia me conceder uma corda, como forma de agradecimento, eu deveria atrair um homem, exatamente como o senhor, para próximo da árvore…
— QUE? — Petry se afastou de Fritz, a informação o pegou de surpresa.
— Sim, ele pediu isso para mim. Não sei o motivo, mas eu só queria acabar com o meu sofrimento. Agora que você está aqui, acho que posso acabar com tudo…
Mas antes que pudesse terminar, o solo começou a tremer. Aquilo só podia ser obra de Herbert. Não sabia se era habilidade de Fritz ou não, mas de uma coisa ele sabia, precisava fazer a mistura.
— Desgraçado, achou que poderia me enganar? — disse para Fritz, sacando os balões.
— Eu… não sei o que está havendo — o homem disse, parecendo genuinamente assustado e perplexo com a situação.
Espere, se não é Fritz quem está fazendo isso, então…
Teve sua pergunta respondida logo em seguida:
A árvore colossal começou a se mover. Seus galhos balançavam freneticamente. O tronco começou a se deformar, como uma espiral. De lá, surgiram vãos negros, formando dois olhos e uma boca feroz, que rugiu um vento forte. Seus galhos então, como tentáculos, apontaram para o alquimista.
Uma árvore, Vagner? Pensou, bebendo elixir e limpando a boca. Uma boa jogada, admito, mas não vai nos impedir com isso.
Fritz, que estava atordoado, tamanho o pavor que sentia, foi capturado por um dos galhos, que o elevou até o mais alto da copa. Petry deveria agir, e logo.