As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 14
Perambular pelas vielas estreitas e aglomeradas não era das mais simples tarefas. A educação nas ruas de Berlim não correspondia com a de cidades menores como Wittenberg, que a dupla visitou anteriormente.
Arthur caminhava da forma mais soturna que era capaz, porém não tinha sorte em desviar de olhares desconfiados e ofertas estranhas de mercadores.
— Ele é até bonitinho, que tal o convidamos, Martha? — ouviram duas moças da idade do jovem dizer alto o suficiente, em frente a um bordel.
Arthur puxou mais o capuz, onde o companheiro homúnculo se escondia por debaixo. Provavelmente não era comum ver alquimistas por ali, ainda mais os da idade de Arthur.
Pulget já estava acostumado com as abundantes paisagens que aquele mundo era capaz de proporcionar, mas pensar que toda grande cidade fora erguida pelos estúpidos humanos era de cair o queixo. Pensou até que uma veia artística poderia vir de alguns ao contemplar igrejas e castelos.
Mas todos esses elementos se encontravam apenas no horizonte, já que por onde andavam nada poderia ser mais contrastante.
O aprendiz de alquimista se pegava em vários momentos pisando em esterco de cavalo, cachorro e talvez até de pessoas. O cheiro exalava morte, peste e água salgada.
Para o homúnculo o cheiro era indiferente, mas para Arthur, sentia que desmaiaria a qualquer momento pelo odor. Decidiu então se esgueirar até um beco, onde o cheiro era menos pior.
Lá, respirou fundo, em busca de ar fresco. Foi de fato uma atitude estúpida, conseguindo apenas uma crise de tosse.
— O que está acontecendo, Art? — Pulget parecia receoso — foi atacado?
— Não… Pulget — respondeu, se recuperando do ataque de tosse aos poucos — esse lugar… fede a merda!
— Oh, que bom que meus orifícios olfativos não captam tal fraqueza. Esse cheiro nem se equivale ao de fetos frescos natimortos e tripas saltadas.
Aguardaram até enfim o garoto se recuperar do cheiro e da descrição de Pulget.
Fazia quase trinta minutos que caminhavam e não faziam ideia de onde estavam, muito menos o quão perto da Igreja Santa Maria. Pedir informações naquele local era o mesmo que tentar adivinhar qual de tantas informações estavam corretas.
— Por que tem que ser tão difícil encontrar uma Igreja aqui?
— Talvez, Art, tenhamos pegado o caminho mais desgraçado.
— O tampinha tem razão.
A voz estranha fez a dupla automaticamente se pôr em guarda. Diante deles estava um homem adulto. Sua barba completamente feita, onde uma expressão divertida os encarava por baixo do capuz. As vestes grossas junto de um coldre firme na cintura lhe dava um aspecto de saqueador profissional. Havia uma adaga embainhada no coldre.
— Quem diabos é você? — Arthur perguntou, sacando o frasco contendo seu elixir — por acaso trabalha para Herbert?!
A pergunta já poderia ser considerada natural, já que todos os encontros anteriores onde estranhos se dirigiam a eles se tratavam de enviados pelo maligno alquimista.
— Meu nome é Arkadius Hitler — o homem disse, calmamente — bem, sou apenas um mercenário. Não é nada pessoal.
***
Ao leste, Julia caminhava sem muitos problemas pelo lado mais nobre da cidade. Como sempre fora instruída por seu pai a se comportar como uma dama, andar por aquelas avenidas entupida de esnobes sem parecer deslocada era uma tarefa fácil.
O que complicou a situação foi o odor que exalava e sua aparência desgrenhada. Julia passou todos aqueles dias da jornada sem se banhar, muito menos arrumar o cabelo. Então a sensação que dava aos nobres transeuntes que a olhavam era de ser uma garota nobre, porém inimiga da higiene.
Mas para a jovem isso pouco importava, naquele momento seu foco era encontrar a Igreja de Santa Maria, assim como seus outros companheiros. Nem mesmo se importou com algumas senhoras tapando o nariz com as mãos no cruzamento.
Ao contrário de Arthur e Pulget, Julia não parou para apreciar a beleza dos quarteirões, das casas e demais construções bem articuladas, tampouco as quinquilharias dos comércios. Seus olhos varriam todas as direções freneticamente.
Estava ansiosa por terminar aquilo e enfim se vê frente a frente com o seu maior inimigo. Por saber que estavam próximos disso, sua dedicação em encontrar o local designado era sua maior prioridade.
Seu coração gelou.
Em meio a tantos pensamentos, junto de uma visão desfocada pela quantidade de coisas à sua volta, apenas um ponto a fez cessar todos os instintos.
Mas não teve dúvidas. As longas vestes negras, o bordão de apoio e uns poucos fios grisalhos espalhados na nuca era o suficiente para ela reconhecer:
— Pai!
Antes que pudesse se controlar, lágrimas vieram aos olhos, suas mãos tremiam. Agarrando com força a bainha do vestido, ela começou a caminhar, quase correndo.
Não se importou com os protestos ao empurrar alguns dos nobres para liberar caminho. Precisava alcançar aquele homem antes que o perdesse de vista. Precisava alcançar seu pai.
— Ei, senhorita, cuidado!
Mas ela continuou, dobrando uma rua e entrando em um beco mais isolado, apenas seguindo Donovan Aurora.
Em questão de segundos, suas prioridades mudaram. Já não pensava mais em seus amigos, na Igreja ou mesmo em Herbert.
***
Arthur não sabia como reagir diante da nova ameaça. Por um lado, Arkadius parecia extremamente ameaçador, mas por outro, não havia revelado possuir um frasco contendo elixir de poder.
Durante um momento, ele apenas os encarou com uma expressão divertida. Seu olhar frio indicava que matar para ele era apenas mais uma terça-feira.
— Pulget, se prepare — sussurrou para o parceiro, pois talvez suas bolas fossem necessárias.
— Eu sei o que está pensando, Becker — o cretino sabe o meu nome — o homem mal me enviou para lhe matar por um motivo que provavelmente é mal. Que coisa, não?
Hitler tirou a adaga do coldre, mas a manteve embainhada. A dupla ainda não achou que fosse hora de agir, afinal, era sempre mais interessante ver o que o inimigo tinha a mostrar.
— E você está certo, o que é uma grande coincidência, talvez — O mercenário lançou a adaga na direção de Arthur, que desviou facilmente — Mas não pense que sou um assassino tradicional… bem, talvez não tenha ficado tão claro, mas o que quero dizer é que não mato qualquer um.
— Se minhas noções interpretativas estiverem corretas, você priva a existência de outrem por barganha de capital — o homúnculo deduziu.
— Sua dedução, tampinha… ESTÁ COMPLETAMENTE ERRADA!
O grito assustou Arthur, que recuou desconfortável, sentindo um arrepio no braço. Qual é o problema desse cara?
— Hum-hum, deixe-me explicar — Hitler então abaixou o capuz, revelando uma careca envolta por uma enorme cicatriz, que se estendia até o canto direito da testa. Não era uma visão muito agradável — tudo aconteceu quando eu tinha apenas nove anos. Morava com meu avô. Ele era um grande maldito, me odiava por que meu sonho era limpar esterco de cavalo das infatarias, dá pra acreditar?
Dá. O aprendiz de alquimista pensou, mas nada disse.
— Ele então me batia, em especial na minha cabeça. Dizia que as pancadas iriam me consertar. A vizinhança toda era composta por velhos trogloditas e todos apoiavam o comportamento e pensamento ultrapassado de meu avô. Também os odiava. Mas um dia, em especial, ele derreteu ouro. Segundo ele, se me maculasse com ouro, seria como um sacrifício a Deus, assim, eu seria curado de minha loucura… preciso dizer o que aconteceu? Ou conseguem ver com seus próprios olhos?
A dupla não respondeu, um tanto chocada com todos os aspectos daquela história.
— Pois é. Naquele dia, eu prometi me vingar dele. Eu o matei derretendo todo o seu ouro e o cobrindo. Talvez tenha sido generoso demais, não acham? Coberto por tanto ouro ele passou a valer alguma coisa — o mercenário riu como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo — enfim, também matei todos os vizinhos. Fui taxado de assassino e fiquei conhecido como o Matador de idosos. O que não é justo, já que meu melhor amigo é um velho pestilento. Bom, eu mato sim idosos, aqueles que considero de mente ultrapassada. Vocês podem achar que eu mato também atuando como mercenário, mas aí que se enganam, vocês são exceção à regra.
— Por quê?! — Arthur agora cerrava os dentes, odiando Hitler.
— A imagem que o meu cliente me mostrou me fez clarear os olhos. Nunca vi nada parecido.
— Está dizendo que Herbert o seduziu através de hipnose e manipulação de ideais?
— Não, Becker — Hitler sorriu, retirando um frasco do coldre — ele me mostrou a maior pilha de ouro que já vi, e tudo isso vai ser meu apenas por sua cabeça!
O Matador de idosos bebeu o conteúdo do frasco, limpando a boca e sorrindo maliciosamente para a dupla.
— Pulget, manda bola!
Preparado desde o início, o homúnculo obedeceu, lançando a sua bolinha cromada contra o clássico ponto fraco da existência: a testa.
Mas sem o menor esforço, Hitler desviou do projétil apenas com uma virada de pescoço, como se tivesse super-reflexos. Arthur e Pulget ficaram incrédulos.
Não pode ser! O jovem não queria acreditar, mas só pensou haver uma explicação para aquilo. Talvez a fórmula dele seja a mesma que a minha… até a cor era a mesma!
Sem perder mais tempo, também tomou a sua. Pelo visto, aquele combate sobraria para ele no final das contas.
Mas o homúnculo não cessou os disparos, lançando mais de dez bolinhas cromadas contra Hitler, que desviou com extrema facilidade. Incrédulo, Pulget parou, sabendo que não teria utilidade naquele embate.
— Eu cuido dele, Pulget — Arthur declarou, com fúria nos olhos — fique aqui.
O homúnculo então se jogou em uma pilha de feno amontoado ali perto. O aprendiz de alquimista começava a sentir o efeito do elixir por seu corpo. De alguma forma, sentia um peso maior naquele momento. Em várias ocasiões, perder foi uma opção, já que tinha seus amigos. Mas agora era só ele contra Hitler.
— O que está esperando, Becker? — o matador de idosos perguntou — não pode adiar a morte certa!
Arthur investiu.
Seu primeiro golpe se destinou para a jugular do oponente, que de certo o imobilizaria. Mas Hitler foi mais rápido, desviando e recuando um pouco. Sem perder tempo, ele investiu com uma rasteira no jovem, que escapou com um pulo longo o suficiente.
Mais golpes.
Os punhos de ambos naquele embate só serviam como bloqueio, já que aparentemente eram incapazes de se acertar. Mas Arthur não desistiu, tentando de forma incansável encontrar a brecha necessária.
Hitler, por outro lado, apenas desviava, na esperança de que o oponente ficasse exausto. Mas essa possibilidade parecia menos concreta à medida que os segundos avançavam.
Ao que tudo indicava, por possuírem as mesmas habilidades estavam em um eterno empate. Mas algo precisava ser feito, o mercenário não perderia todo aquele ouro por nada.
— Muito bem — disse, quando os dois se separaram por um momento — lamento decepcionar, garoto, mas isso aqui nunca vai terminar.
— Vai sim, quando eu acabar com você — A respiração de Arthur estava um pouco pesada.
— O quão prepotente um idiota pode ser?
De forma imprevisível, Hitler saltou para a parede do beco, pulando entre elas para chegar ao teto, coisa que só era possível graças à agilidade garantida pelo elixir.
— En garde, Becker — e após dizer isso, sumiu de vista.
Aceitando o desafio, o aprendiz de alquimista imitou os movimentos mirabolantes do outro para chegar ao teto. Não foi tão complicado quanto imaginou.
Lá em cima, viu o oponente acenando para ele em meio às frágeis telhas de uma arena de combate curvada. Qualquer movimento errado ali concederia uma queda letal.
Arthur imaginou que o plano de Hitler era justamente derrubá-lo de lá, mal sabia ele que o jovem fora mais esperto e já havia deduzido isso.
Começou a correr atrás do seu inimigo, que não cessou as provocações não-verbais.
Fato era: correr naquelas ladeiras de telhas não era fácil, muito menos inteligente. Arthur chegou a escorregar várias vezes por aquelas ladeiras curvas, mas não era nada muito arriscado em sua opinião.
Como era ruim estar errado, ele descobriu.
Sem se dar conta de uma quina que conectava a estrutura de uma lareira, acabou tropeçando como um idiota e rolando como a carga de um besouro rola-bosta pela ladeira do teto. Felizmente — e isso era relativo — conseguiu segurar na ponta do teto antes de despencar uns trinta metros abaixo.
Segurou firme, como se sua vida dependesse disso, o que era verdade.
Mas como imaginou, nada é tão ruim que não possa piorar. Hitler, seu pior inimigo surgiu com um sorriso maliciosamente triunfante, observando a decadência do jovem.
— Como eu imaginei, mais burro que você só outro, hia.
Mas enquanto o Matador de idosos cantava vitória, o derrotado contemplava as possibilidades. Abaixo dele, havia uma varanda larga, onde poderia cair e se refugiar dentro da casa. No entanto, as chances dele conseguir cair lá ao invés do piso duro das ruas era tão grande quanto uma espada cega perfurar uma armadura.
Preciso tentar, o efeito do elixir talvez me ajude, pensou.
— Por que está olhando para a morte certa, Becker? — Hitler perguntou — Apenas uma sorte divina lhe salvaria de uma situação como essa.
Então que Deus me ajude.
Soltar suas mãos daquele teto foi a ação que mais lhe exigiu coragem em toda sua vida. Ao cair, sentiu como se tudo ocorresse lentamente. Viu a varanda, o chão duro da rua e ao lado uma pilha de feno. Se estivesse naquela direção, sobreviveria à queda, o que queria dizer muito a respeito do seu azar naquele dia.
Mas como que por providência divina, suas mãos alcançaram o corrimão da varanda e apertaram firmemente a madeira seca.
Obrigado, Deus, Skript, ou seja lá quem for.
Conseguiu então adentrar a casa, que parecia vazia, até duas moças surgirem de forma súbita, parecendo assustadas. Estranhamente, as reconheceu de imediato. Eram as garotas que o chamaram em frente ao bordel.
— Espere um pouco… É ele, Martha — a primeira o reconheceu, era ruiva e esbelta, cujas roupas apertadas e pernas expostas fizeram o jovem engolir em seco.
— Estou vendo, Brianna — Martha sorria, seus olhos verdes fitando o aprendiz de alquimista. Ela usava apenas um vestido branco com um grande decote.
— Sabe, essa roupa de médico não me enganou — Brianna começou a se aproximar — nem mesmo bateu na porta, já partiu para o ataque invadindo, gosto disso.
— E bem no nosso momento de pausa…
— Espere, senhoritas, eu não…
— Não precisa se fazer de difícil agora, meu bem. Ou entrou aqui por engano?
Arthur queria responder que era exatamente isso, mas à medida que Brianna e Martha se aproximavam, ele se sentia impotente diante dos seus encantamentos. De fato, nunca esteve naquela situação antes.
Felizmente ou não, aquele momento foi interrompido. A chegada inesperada surgiu pela mesma janela que Arthur. O aprendiz de alquimista se afastou dali rapidamente, ficando em uma distância aceitável do Matador de idosos.
— Ora ora, parece que o subestimei — Hitler cuspiu — um pouco.
— Mas quem é esse? — Brianna perguntou, confusa.
— Esse aí é um tanto… feioso — Martha deixou escapar.
— Ainda não viu o que é feioso, mulher — Hitler sorriu, sacando sua adaga afiada.
Então ele tinha outra. Arthur pensou.
As moças gritaram assustadas, indo se refugiar nas costas de Arthur. Aquilo o encorajou mais, pois pelo visto parecia uma figura protetora naquele momento.
— Senhoritas, fujam! — Arthur não precisou repetir, com Martha e Brianna deixando o recinto urgentemente.
Mas antes de sair, Brianna piscou para ele, o que o deixou corado. Mas sem perder tempo, retomou o foco ao combate, fitando seu oponente.
— Bem que meu cliente avisou que poderia ser irritante — o sorriso sumiu do rosto do assassino — seguinte: eu vou matá-lo e ficar com aquele dinheiro. Não irei mais pegar leve, Becker.
— Certo — o jovem não parecia abatido, sustentando uma expressão determinada — você quer? Então venha me pegar!
Como um covarde de excelência, o aprendiz de alquimista saiu disparado dali, correndo até a varanda sul. Na realidade, ele queria atrair Hitler para fora dali, alterando a arena de combate.
Usando de sua super agilidade, foi fácil retornar ao teto do aglomerado de casas. Esperou atentamente até seu inimigo surgir, como esperado.
— Chega de joguinhos, Becker — Hitler agora parecia realmente irritado — abrace a morte de uma vez, é tudo que lhe resta.
Sem retrucar as palavras de Hitler, Arthur partiu para o ataque. Ambos começaram novamente o combate sem ataques, onde a super agilidade de ambos cessava tal possibilidade.
Mas diferente do chão da rua, lutar em cima de um teto cujo piso era íngreme e traiçoeiro necessitava usar das habilidades para também não despencar de uma altura de quase quinze metros.
Por esse motivo, Arthur conseguiu desferir um golpe no momento em que Hitler se distraiu ao tentar não tropeçar em uma telha quebrada. Mas a desvantagem servia para ambos, então logo o mercenário conseguiu investir também.
Arthur escorregou alguns centímetros graças ao golpe, tendo de se afastar do inimigo para se recuperar. Por pouco não despencou.
— Você não pode me vencer — Hitler sentenciou, ofegante — já matei velhos mais perigosos que você, Becker. Na realidade, foi mais difícil derreter aquele ouro e jogá-lo em cima de meu avô, se quer saber.
A determinação e coragem deixaram subitamente o jovem naquele momento. Mas não por causa das palavras de Hitler, mas sim pelos devaneios que lhe ocorreram a respeito da jornada.
De repente, se deu conta que ele nada fizera de útil. Desde a derrota de Saymon até Fagner, tudo que ele fez foi fracassar diante dos desafios, restando aos seus amigos superá-los.
Por que eu tenho que ser tão inútil?
Quando olhou para o céu em busca de respostas, nada teve. Sua melancolia naquele momento era maior que qualquer força que pudesse usar.
Eu sempre fui uma decepção. Meu pai estava certo, deveria ter ficado com ele na forja o resto da minha vida. Talvez a minha família seja apenas isso. Talvez os Becker sejam apenas meros ferreiros sem grandes ambições. Talvez só assim suas vidas deem certo.
Sem que pudesse evitar, lágrimas encheram seus olhos. Arthur, como uma criança, começou a chorar, prantos depressivos saiam de sua boca.
Hitler, vendo a situação deplorável de seu inimigo, começou a gargalhar alto.
— Como eu imaginei, você não é de nada — revelou sua adaga, cuja lâmina reluziu na claridade diurna — prometo que acabarei com seu sofrimento rápido, afinal, só estou fazendo um serviço, não estou aqui para torturar ninguém.
Arthur não se importou, pois já havia aceitado seu destino. Desde o dia em que decidiu ser mais do que deveria, já havia aceitado a morte.
— Por que a nossa mente prega tantas mentiras? — Uma voz experiente, rouca e familiar disse — eu digo, nossa mente é a chave essencial que decide nossos destinos e de outrem, por isso ela é tão traiçoeira.
Ao se virar, Arthur não acreditou quem viu naquele telhado:
— Professor Paracelso! — disse ao alquimista a qual fora aprendiz. Aquele cuja morte o motivou a seguir aquela jornada — O Senhor está vivo… Mas como?!
— Oh, mas é claro que não estou vivo, tudo isso é fruto da sua imaginação — Paracelso descreveu um arco pelo corpo, exatamente como Pulget — estou aqui para lhe trazer a voz da razão, de que não deve desistir.
— Mas, professor, eu não posso derrotar Hitler. Assim como não pude derrotar Saymon, Valentin, o fanático e nem mesmo a árvore amaldiçoada, meus amigos quem fizeram isso. Eu não sirvo pra nada, muito menos para impedir um monstro como Herbert.
— É aí que está o seu engano e equívoco, Arthur Becker. Você se queixa de não ter derrotado nenhum obstáculo de Herbert, mas sim seus amigos. Ora, você não é o personagem principal deste mundo, não pode derrotar todos de qualquer forma. Você diz que talvez o seu destino fosse ficar na forja o resto da vida, mas se esquece que eu o escolhi por ser o meu melhor aluno dentre todos do período. Você não se julga importante, mas a quem foi confiado guardar o broche que concede entrada a Sociedade Secreta dos Alquimistas?
Arthur não respondeu. O professor tinha razão. Mesmo que não tenha feito absolutamente tudo na jornada, não foi tão inútil quanto sua mente pregava. Ainda assim, sentia a insegurança lhe dominando.
— Não é sobre ser o herói que supera todos os desafios, ou o mais habilidoso. Para superar essa jornada, você precisou de seus amigos, precisou do sacrifício de Adam. Mas agora, chegou a sua vez, Arthur, agora é o momento em que seus amigos precisam de você. Não pode negar a isso, apenas aceite o seu destino, que não é o fracasso, me ouviu?
Aquelas palavras inspiradoras que provavelmente vieram de sua própria cabeça o fez abrir os olhos. Finalmente entendeu quem era e seu dever naquele momento.
Quando saiu daquele transe, viu Hitler diante dele. O matador de idosos já tinha o combate praticamente ganho e sua adaga estava pronta para perfurar o pescoço de Arthur.
— Wiedersehen, Becker, foi realmente bom conhecê-lo.
Hitler fez. Levou com tudo a adaga até a traqueia do jovem, em um golpe fatal. Mas inesperadamente, Arthur impediu. Com um movimento rápido, segurou o braço de Hitler.
O rosto do jovem alquimista era de fúria e intimidador. Levantou o braço do oponente como que para quebrá-lo, mas o Matador de idosos reagiu. Ele tentou se desvencilhar da chave de braço imposta por Arthur, mas não conseguiu.
Logo uma pequena disputa começou, onde ambos pareciam estar em desvantagem. No fim, Hitler não teve escolha, com um empurrão brusco, soltou-se de Arthur e despencou do telhado.
Poderia ter virado um saco de batata se a sorte não estivesse do seu lado.
Caiu em uma pilha de feno que um dono de uma carroça havia deixado capotar a pouco no meio da rua.
Arthur ficou incrédulo com aquela situação. Aquele milagre parecia obra do próprio Skript.
Até mesmo Hitler, depois de recuperar da queda amortecida, contemplou sua sorte com incredulidade. Após se apalpar para verificar se estava mesmo vivo, olhou para o teto, na direção de Arthur. Sorriu triunfante, fazendo um sinal de pescoço se cortando para o oponente.
“Cuidado!”, ouviu vozes aleatórias de alguém na rua, “Ele está descontrolado!”
Ao tentar localizar a voz, do nada uma grande carruagem surgiu no meio da rua. Arthur notou que era idêntica à do Sr. Chucrute, mas não era Fritz quem a conduzia, mas sim um idoso, cuja face rosada e gestos acelerados indicavam que ele estava bêbado.
A carruagem não parecia capaz de ser parada e em alta velocidade, avançou para o meio da rua, onde Hitler se encontrava completamente vulnerável e sem tempo para fugir.
O resultado, nem a maior sorte do mundo podia alertar.
Um pandemônio se instaurou após a colisão. A carroça foi completamente destruída, assim como a carruagem. O velho que a conduziu foi arremessado e se salvou em outra pilha de feno longe dali. Os cavalos que se soltaram partiram assustados pela rua.
Hitler se encontrava ali embaixo, em algum lugar, com provavelmente todos os ossos do corpo esfarelados.
Por ironia do destino, o Matador de idosos havia sido morto por ação imprudente de um idoso.
***
— Ai, cuidado por onde anda, moça — Um nobre bem vestido exclamou, após pisarem em seu pé.
Mas Julia não parou, continuando a seguir apressadamente pelas vielas aglomeradas da capital sem se preocupar com nada, exceto alcançar seu alvo.
É o meu pai, tenho certeza de que foi ele quem eu vi. Convenceu a si mesma, ignorando a improbabilidade daquele fato e a possibilidade de ser uma armadilha.
Viu a cereca com uns poucos fiapos de Donovan Aurora deslizar pelos transeuntes como se estivesse fugindo. Mas Julia não o perdeu de vista um segundo sequer, abrindo caminho à força. Às vezes até usava suas mãos negras para tirar alguns caixotes do caminho.
Finalmente, seu pai dobrou em uma viela mais vazia. Dessa forma, a distância entre os dois pôde cair por terra. Enfim, ele parecia ter encontrado seu destino: um estabelecimentos de ervas e artigos medicinais, cujo aspecto era um tanto mórbido.
Mesmo assim, a garota não se deixou impedir de segui-lo para dentro. Ela se encontrava totalmente hipnotizada pela possibilidade de ser realmente seu pai quem viu.
Empurrando a porta da loja de ervas, viu que se tratava de um local rústico, onde os artigos não estavam organizados. Tudo lá dentro transmitia uma misteriosa aura perturbadora, de fato uma péssima aparência para atrair clientes.
Lá estava seu pai, de costas e imóvel no meio da loja. O local inteiro parecia vazio, exceto por eles dois, o que tornava as coisas levemente estranhas.
— Pai! — ela pronunciou, esperançosa.
Ele respondeu ao seu chamado, se virando. As vestes de alquimista, junto da barba grisalha e olhos azuis vivos como os dela. Sua expressão no primeiro momento era vazia, logo depois foi estampada por um sorriso bem característico dele.
— Julia! — ele disse, com aquela sua voz jovial e simpática característica.
A garota não foi capaz de conter a emoção que transbordava de seu interior naquele momento. Derramou lágrimas, muitas. Por mais que quisesse entender aquela situação, pensou que poderia se permitir deixar levar pelo sentimento, pelo menos um pouco.
— Por que não vem aqui?
Por que não? Ela pensou, vendo que o local estava mal iluminado, se sentiu segura.
Foi em direção a ele, sentindo o mundo girando ao seu redor. A pessoa que mais amava naquele mundo e que havia perdido estava de volta, ali na sua frente, como se fosse mágica.
O abraçou sem pressa, sentindo o calor aconchegante dele. Memórias nostálgicas e gostosas perduraram em sua mente. Uma sensação de conforto. De repente a missão, seus amigos e até mesmo Adam Wolfgang Petry deixaram seus pensamentos.
Fechou os olhos, apreciando tudo que havia de bom naquele momento. Tudo que as pessoas que perderam alguém almejavam durante o resto de suas vidas havia se concretizado com ela.
— Eu senti tanto a sua falta, filha — ele disse, solenemente — podemos acender as lamparinas? Este lugar tá um breu. Quero ver melhor o rosto da minha menina.
E naquele momento ela se obrigou a voltar à realidade.
— Sim, papai — ela respondeu, mantendo o abraço — mas antes, eu quero que me responda… eu preciso saber de algumas coisas.
— Ah… querida, eu também quero esclarecer tudo, mas acho melhor fazermos isso… estando confortáveis.
Ele tentou se desvencilhar do abraço, mas Julia apertou mais, o deixando sem opções.
— Não, pai, eu prefiro que seja agora. Não quero lhe soltar nunca mais — ela o fitou profundamente, agora que retomou a razão, sabia o que precisava fazer — me diga, quantos anos eu tenho?
Donovan Aurora parecia nervoso, seus olhos incapazes de fixar a filha.
— Dezoito anos, naturalmente.
Julia sorriu, mas não parecia completamente satisfeita.
— Então o senhor lembra daquele dia em que estávamos no quintal, catando lírios e colhendo maçãs, não é?
— Claro que lembro deste dia marcante, minha filha.
Foi nesse momento em que sua ficha praticamente caiu. Lágrimas lentamente voltaram a brotar no seu rosto diante da triste realidade. Mesmo assim, não o soltou do longo abraço, ainda.
— O senhor também se lembra da poção que sempre deixava em cima da bancada de sua sala particular? Aquela que pedia para eu nunca beber e que traria cura a mamãe — Aquela a qual você pesquisou mesmo depois da morte da mamãe, para que outras pessoas pudessem se curar dessa maldição de doença.
A mudança de expressão do seu pai foi bastante visível, assumindo um semblante melancólico.
Como se fosse incapaz de falar, apenas acenou, não encarando Julia.
Muito esperto. Ela pensou.
— O senhor se lembra da fórmula desse elixir, não é? — Dessa vez sequer piscou ao fazer a pergunta, que para Donovan Aurora seria mais que óbvia.
Mas obviamente o Donovan Aurora que estava diante de si não sabia. Ele engoliu em seco com a pergunta, começando realmente a suar,
Ela então o soltou, o homem ficou paralisado, muito nervoso. As mãos negras brotaram da escuridão instaurada no recinto. Lágrimas de ódio e decepção ainda escorriam por seu rosto. Mas mesmo assim, lá no fundo ela sabia que não era ele.
Era impossível que seu pai retornasse, era impossível tê-lo de volta. Lembrou das palavras de Petry, de que a vingança realmente não compensa. No fim, deveria aceitar sua provação. As pessoas que mais amava um dia morreriam, não havia jeito de trazê-las de volta.
Matar Vagner Von Herbert não lhe traria total satisfação. Impedí-lo não era sobre ela, era mais que isso, Julia devia aceitar aquilo, se apegar ao bem maior, só assim poderia encontrar a verdadeira satisfação. Deveria ser como o pai, que não desistiu de fazer o bem mesmo depois da morte da mãe.
— Quem é você? — ela perguntou de forma lenta e ameaçadora — me diga a verdade!
— Por favor, não me machuque — o estranho com a aparência de seu pai se jogou no chão, assustado — meu nome é Anselm, sou um nobre que entrou na falência, vivo agora como um mendigo pelas ruas.
— E porquê está trabalhando para Herbert?
— Ele me ofereceu uma quantia de ouro que eu nunca vi, tá bem? — Vendo que não convenceu a jovem, ele continuou: — ele me deu uma poção, que permite que eu fique com a aparência de alguém. Para a sorte de Herbert eu já vi o médico Donovan Aurora algumas vezes… me escuta, ele disse que vocês eram inimigos e que queriam perturbar a vida dele, mas agora eu vejo que não é bem assim.
Julia suspirou. Sabia que o tal Anselm queria apenas se livrar da morte. Mas mesmo sabendo disso, não viu motivo para matá-lo, já que o mendigo parecia apenas um mercenário e não aliado de Herbert.
— Escute bem — ela se aproximou dele, a aura trevosa e presença sombria fez Anselm quase engasgar de tanto engolir em seco — você vai embora. Nunca mais vai se envolver com monstros assassinos. Nunca mais vai enganar as pessoas nem tomar mais esse elixir novamente, sabe por quê?
Tremendo da cabeça aos pés, o mendigo apenas acenou negativamente.
Julia sorriu.
— Está vendo essas mãos negras? É uma maldição que eu carrego. Se fizer isso que eu falei para não fazer novamente, elas o puxaram para o vão da morte quando menos esperar! AGORA SAIA DAQUI E TORÇA PARA NUNCA MAIS SE ENCONTRAR COMIGO NOVAMENTE!
Anselm só conseguiu sair rápido dali graças a aparência saudável de Donovan Aurora, mas aos poucos voltava a ser o mendigo corcunda e pestilento. Depois do aviso de Julia, prometeu por tudo que era mais sagrado ir confessar na igreja mais próxima e pagar a indulgência.