As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 15
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- Capítulo 15 - A Sociedade Secreta dos Alquimistas
Para infelicidade de Luther, não foi da vontade de Skript lhe guiar até a Igreja de Santa Maria. Não reclamou, obviamente. A habilidade de conjurar portais seria muito útil para acelerar o processo em meio a toda a enrolação que tiveram que lidar em toda aquela jornada.
Mas graças a persistência humana, que havia aprendido durante todo o tempo possuindo aquele casulo não-transcendental, ele conseguiu encontrar o local desejado.
Ficou algum tempo observando a finíssima estrutura, com todos aqueles adornos muito bem posicionados. A arquitetura humana poderia surpreender, por mais que fossem seres limitados e com data de validade.
O monge perguntou a si mesmo como poderia haver uma sede secreta ali dentro sem nenhum cidadão comum saber. Queria pensar que não fosse uma espécie de esconderijo subterrâneo, seria avançado demais para aquela época.
Resolvendo deixar os devaneios de lado, decidiu que era hora de trazer seus amigos até ali, após meia hora de reflexão.
Eles devem estar bem. Pensou. Bem perdidos.
***
Arthur e Pulget observavam do beco a aglomeração formada em torno do trágico acidente. O senhor que conduzia a carroça por algum milagre alheio saiu ileso da situação. Já Hitler não teve a mesma sorte, muito pelo contrário, da forma mais horrível imaginável.
O jovem alquimista estava muito chocado com o ocorrido. Mas ele não podia se culpar, estava apenas tentando preservar a própria vida, e Hitler não era o tipo de pessoa que poderia se dizer ser “do bem”, em sua opinião.
— Seu fim foi a consequência de um trágico e poético ciclo de más escolhas — Pulget afirmou.
Arthur não poderia ter concordado mais com o homúnculo. Mas não era tempo para reflexões filosóficas, Hitler fora só uma tentativa de Herbert para os atrasar.
Será que Luther e Julia também tiveram problemas? Se perguntou, torcendo para que não fosse o caso.
— Precisamos encontrá-los, Pulget. Eles podem estar em perigo e Julia está em desvantagem caso seja atacada a céu aberto.
— Receio que Julia possa cuidar dela mesma sem interferência de outrem, Art. Acho que isso já foi provado em vários momentos desde que a conhecemos.
— É, você tem razão — Arthur retirou o broche dado por Petry e o contemplou — vamos encontrar essa igreja, talvez isso demore minutos, horas, dias, mas no fim, vamos terminar com isso, acabar com a raça de Herbert, honrar meu profe…
O monólogo de Arthur foi interrompido por uma fratura no espaço-tempo, de onde um portal mal diagramado se formou. Luther surgiu de lá, tendo um pouco de dificuldade para sair.
Ao se recuperar, sorriu forçadamente para os companheiros:
— Encontrei a bendita igreja.
Garoto e homúnculo ficaram assombrados. Mesmo conhecendo as capacidades de Luther, ainda eram surpreendidos.
— Vamos.
***
Sozinha dentro da misteriosa loja a qual fora atraída por Anselm, Julia observava as vestes de alquimista deixadas para trás pelo oponente. Ver seu pai novamente, mesmo que por um impostor, a deixou completamente abalada.
Por mais que tivesse aceitado sua sina, era difícil se livrar do choque, da possibilidade e esperança que a pouco tomaram conta dela. Poderia ficar ali o dia inteiro, refletindo sobre o que fazer dali em diante, de como viveria após o luto.
Mas lembrou que antes disso, precisava encontrar os outros para resolver as pendências envolvendo Vagner Von Herbert. Esperava que eles não tivessem sido atacados, em especial Arthur, que manifestou um tremendo azar nos últimos combates.
No mesmo momento, algo clareou o recinto e um som como de um tecido sendo rasgado ecoou por toda parte. Se virando, a jovem recuou diante da fissura transdimensional sendo aberta bem na sua frente. Uma cena que não fazia sentido algum.
De lá, viu Luther, o que a deixou mais aliviada. Não era a primeira vez que o tal manifestava um poder indescritível.
— Encontrei a igreja, senhorita. Vamos.
— Onde estão Arthur e Pulget?
— Já os encontrei, e estão inteiros.
— Certo… — ela parecia hesitante em se aproximar — então esse é o portal?
— Sim.
— Tem certeza de que é seguro entrar aí?
— Há um por cento de chance de ir parar em outro universo, ou até mesmo no vão da inexistência, mas fora isso, é totalmente seguro.
Engolindo em seco, ela decidiu ir. Que outra escolha tinha?
Assim que tocou na fissura, sentiu o corpo ser sugado para uma viagem psicodélica de cores conhecidas e desconhecidas. No fim, estava caída no chão de uma rua, diante da Igreja de Santa Maria.
Com a ajuda de Luther, se colocou de pé e junto com os companheiros contemplou a verdadeira rota final da jornada.
A estrutura externa da igreja era composta por cores de tons pastéis. Sobre o gigante teto triangular, uma torre se erguia, cujos ornamentos semelhantes a engrenagens douradas se destacavam, reluzindo na claridade diurna.
— Chegamos — Arthur disse lentamente, boquiaberto — esse lugar chama atenção demais para um esconderijo secreto, não acham?
— Creio que a lógica reversa possa perfeitamente ser aplicada nesse caso — Pulget comentou — por ser um local óbvio demais para não se montar um esconderijo, quem por ventura desconfiaria?
— A sede provavelmente está no subsolo — Luther deduziu.
— Mas isso é impossível, né?!
— Em cerca de quinhentos anos vão descobrir que não é.
— Não acham que podemos deixar as perguntas para depois, senhores? — Julia os interrompeu.
— Claro, precisamos acabar com Herbert de uma vez!
E dizendo isso, Arthur e os companheiros começaram a caminhar em direção a entrada da igreja, que estava aberta.
Lá dentro, se surpreenderam novamente, apreciando a beleza da igreja. Os bancos bem arrumados, pilastras, lustres com velas acesas e um mosaico no teto faziam parte da magnífica composição do ambiente.
O único presente na igreja além deles era um padre; um homem já idoso e rechonchudo, com uns poucos fios grisalhos na cabeça. Ele orava com olhos fechados andando de um lado para o outro em um canto.
— Ah… senhor… — Arthur tentou chamar, um tanto envergonhado.
O padre fez um gesto para que eles aguardassem. Então a trupe permaneceu estática até que o fiel terminasse sua prece.
— Amém — o padre concluiu, abrindo os olhos e fitando os convidados — saudações, irmãos, sejam bem-vindos a nossa igreja. Sou o Padre Willy, responsável por aqui, na ausência do Bispo. Vejo que são rostos novos.
— Muito prazer, Padre Willy — Julia se adiantou, claramente impaciente — Meu nome é Julia Aurora, esses são Arthur Becker, Pulget e Martin Luther. Vamos direto ao ponto: estamos aqui para visitar a sede da Sociedade Secreta dos Alquimistas.
O padre pareceu incrédulo no primeiro momento. Mas logo retomou a postura, encarando os visitantes com certa desconfiança. De repente soltou uma breve risada.
— Que história é essa, hein? Não existe nenhuma Sociedade Secreta de Alquimistas. E mesmo se existisse, o que eu e essa igreja teria a ver com iss…
Suas palavras cessaram no momento em que Arthur sacou o broche de Petry. O padre novamente tirou um momento de reflexão e processo da informação, como se estivesse em um transe, até voltar a atenção para os convidados:
— Legal, isso é de fato interessante. Me sigam.
Ele saiu caminhando para o norte, por onde sumiu em uma escadaria secreta por detrás de uma porta. A trupe o seguiu, cada vez mais ansiosos.
A escadaria em caracol levava a um lugar coberto completamente por sombras. Desceram degraus e mais degraus iluminados por poucas lamparinas… com velas? Eles não sabiam dizer, já que elas estavam cobertas por uma esfera fosca.
Após quase cinco minutos de descida, enfim encontraram uma porta. No entanto, não era uma porta comum; se tratava de um relevo cilíndrico na parede, com uma maçaneta redonda, sem fechadura.
— Chegamos — o Padre Willy anunciou com um tom indiferente — vamos abrir a porta.
Ele tirou um frasco do seu saco de utilidades, onde um líquido azul reluzia. Bebeu todo o conteúdo e imediatamente sentiu os efeitos pelo corpo.
Willy então segurou a maçaneta da estranha porta, mas não a inclinou da forma convencional, e sim a puxando como se fosse quebrá-la. Aquilo parecia exigir um esforço enorme, pois mesmo sob o efeito do elixir de poder o padre demorou até por fim conseguir abrir a porta.
— Wow! — Arthur exclamou diante da nova visão.
Um novo corredor se estendia na frente deles. Seu aspecto: totalmente diferente de tudo que a trupe havia visto até então.
O chão era liso como um espelho, refletindo tudo acima de si. Já as paredes e o teto, tinham o mesmo aspecto fosco das esferas-luminárias que se encontravam por toda parte, no entanto sua composição era de um tom sépia.
Dois alquimistas surgiram de uma curva do corredor. Eles estavam vestidos da mesma forma que Arthur. Pulget se escondeu debaixo do capuz do parceiro, pois alguma coisa lhe dizia que era melhor os alquimistas não o verem.
— Duke, Holmes, esses senhores desejam falar com a alta cúpula — Willy disse, sem receber resposta dos dois mal encarados — essa é Julia Aurora, e esse é Arthur Becker, aprendiz de Paracelso. Acredito que a alta cúpula queira ouvir o que eles têm a dizer.
Os alquimistas sentinelas se entreolharam, fitaram a trupe, repetiram o processo e por fim, fizeram um gesto com o pescoço, pedindo para lhe seguirem.
Assim fizeram, caminharam alguns metros pelo espaço liminar, onde os sons de passos ecoando criavam uma sinistra atmosfera de solidão e incômodo. Mas mais incômodo foi quando a porta a qual adentraram a sede se fechou.
Por algum motivo, Arthur sentia um mal pressentimento. Talvez fosse pela atmosfera e geometria não convencional do local, ou talvez fosse por aquele lugar lhe lembrar do sonho em que sua mão fora decepada.
Não, aquele lugar era diferente. Tentou convencer a si mesmo.
Dobraram para um corredor tão vazio quanto o anterior. Era sufocante pensar naquilo, em como os corredores eram milimetricamente semelhantes.
Julia tentava manter a calma, mas sentia o coração batendo mais forte. De alguma forma indescritível aquele lugar a incomodava. Precisou abafar um grito quando as luzes oscilaram.
Luther e Pulget eram os únicos a não se incomodarem, pelo contrário achando o local fascinante.
Um novo corredor.
Finalmente se depararam em um ambiente diferente do anterior: um pátio gigantesco muito movimentado. Alquimistas, pessoas bem vestidas e até crianças transitavam pelo local. Havia várias ‘’atrações’’ por toda parte, incluindo a tão famosa Poção Biomolar.
Era como um balão de fundo redondo só que vinte vezes maior. Um líquido verde berrante preenchia todo o espaço, mas não era um líquido comum. Imagens aleatórias de pessoas desconhecidas surgiam eventualmente, acompanhadas de status que Arthur não conseguia decifrar.
Pelo visto fora daquela forma que Petry foi capaz de localizá-lo.
Caminhando mais um pouco, havia outras atrações, mas nenhuma foi capaz de chamar tanto a atenção da trupe. A arquitetura diferenciada já foi impressionante o suficiente.
Deixaram o pátio de atrações, entrando em um novo corredor, semelhante aos anteriores.
— Esse lugar é um tanto esquisito, não acha? — perguntou a Julia, aos cochichos — pensei que fosse como a universidade.
— Bom, o Senhor Petry e meu pai atuavam aqui. Então creio que estamos seguros — o tom de voz de Julia não demonstrava segurança, como se quisesse afirmar aquilo para si mesma.
Chegando ao meio corredor, um homem de meia idade surgiu. Ele não estava trajado como um alquimista, mas sim como o mais nobre da corte. Ele ostentava uma barba digna de um filósofo grego e sua expressão era simpática.
— Olha só, meus convidados. Estava à espera de vós — dirigiu a trupe com um sorriso — Meu nome é Peter Adler. Sou o mestre sênior da Alta Cúpula de nossa Sociedade… sou aquele que toma as decisões.
— Muito prazer em conhecê-lo, senhor — Julia o cumprimentou — Não sabíamos que estava à nossa espera, mas estamos muito ansiosos para lhe revelar coisas que descobrimos.
— Sei, sei. Vamos andando para a Sala Circular. Pode me contar tudo no caminho.
TEC TEC!
De repente, ouviram sons como de passos tilintando em metal, ele parecia vir das paredes ou teto.
— Ah, não se preocupem com isso, deve ser aquele maldito rato fujão — Adler os tranquilizou — faz dois dias que pertuba a paz do ambiente caminhando pelas tubulações. Mas me contem sobre suas aventuras.
A trupe se revezou para contar ao mestre tudo que sabiam sobre Herbert e a Pedra Filosofal, além da morte de Petry que ele parecia já ter conhecimento.
Pulget não se manifestou em nenhum momento.
— Entendo — Adler disse — Herbert aprontando, não vou dizer que estou totalmente surpreso.
— Senhor, seja onde for que a Pedra Filosofal esteja, precisamos protegê-la de Herbert urgentemente, ele deve estar dando um jeito de se infiltrar aqui — Julia explicou.
— Não, não precisamos, Senhorita Aurora — Peter Adler parou, Duke e Holmes fizeram o mesmo — digamos que… houve um mal entendido aqui.
— O que quer dizer com isso?! — Arthur perguntou, um tanto desconfiado.
— Sabe, agora que notei. Onde está o homúnculo que caminhou convosco durante a jornada?
Arthur consultou e para a sua surpresa, Pulget não estava nem em seus ombros, nem entre seus cabelos. Na mesma hora ele e Luther se colocaram em posição de combate. Julia tentou manifestar suas mãos negras, mas era impossível, não havia sombras escuras o suficiente por ali.
Duke e Holmes apontaram os dedos indicadores para os heróis, como se isso fosse de alguma forma intimidá-los.
— O que fizeram com Pulget? Quem são vocês afinal?
— Somos estranhos, Arthur. Sua mãe já não lhe disse para nunca confiar em estranhos? — a expressão de Adler se tornou séria abruptamente — sobre o homúnculo, não se preocupe, não faremos mal algum a ele. Na realidade é uma conquista e tanto para a ciência.
— Isso não faz sentido — Julia comentou — meu pai, o Senhor Petry… eles trabalhavam para vocês. Como pode tudo isso ser uma farsa e na verdade estarem colaborando com Herbert?
— Bem, querida, não é tudo uma farsa, entende? Apenas a alta cúpula e, hum, alguns sentinelas. Você sabe, o parlamento sempre muda. Eu acho que entregar a Pedra Filosofal a um alquimista brilhante como Vagner seria a melhor decisão.
— Então já entregou a Pedra a ele?!
— Ai é que está, Arthur. Não temos conhecimento da localização da Pedra. Mas tudo bem, Vagner tem quase certeza de onde encontrá-la.
— Mestre Adler, isso não pode acontecer — Julia interveio — se Herbert conseguir, vai saber o que ele pode querer fazer contra outras pessoas.
— Bobagem, querida. Acha mesmo que ele quer a Pedra apenas para “dominar o mundo”? Que ideia mais megalomaníaca.
— Então porquê matar pessoas inocentes como meu pai, Paracelso e o Senhor Petry?
Adler pareceu atordoado pelos argumentos, mas logo recuperou a postura e respondeu na simplicidade:
— Os fins justificam os meios. A morte chega para todos. É meio que algo predestinado, entendem?
A trupe não respondeu, todos pareciam furiosos e prestes a arrebentar a cara do Mestre Sênior da alta cúpula.
— O que vai fazer para nos impedir que termine com sua existência, pústula? — Luther perguntou, preparado.
Holmes e Duke então revelaram sua habilidade, usando o indicador para disparar uma bolinha cromada em alta velocidade.
Se Arthur não tivesse se agachado com agilidade teria sua testa perfurada em cheio. Aquilo pegou a trupe de surpresa, que esperava estar um passo à frente de Adler em um provável combate.
Mas Luther não se deixou abalar, pois ele não precisava tomar elixir ou estar em condições específicas para investir.
— Que interessante, nessa última visita vocês humanos não cansam de me surpreender — encarou Holmes e Duke com firmeza — por que não tentam de novo?
Os alquimistas se viraram para o Mestre da alta cúpula, que parecia aturdido pela audácia do monge.
— O que estão esperando? Mostrem a ele o nosso poder.
Assim aconteceu. Os sentinelas novamente dispararam bolinhas cromadas dos dedos, em direção a Luther, que as rebateu usando o punho. Sentiu sangue escorrer daquela região, mas não importava, tudo que precisava fazer era avançar mais.
Holmes e Duke arriscaram um disparo certeiro, mas o impacto não foi como o esperado, apesar de ter surtido algum efeito. Por mais que Luther possuísse um corpo limitado e tivesse que arcar com as consequências de ferimentos mesmo sem sentir, o fato de ser uma entidade cósmica fazia o corpo ganhar mais resistência que de um humano comum. Caso contrário, teria perecido muito antes de se juntar com a trupe. Teria perecido contra Pulget e suas bolas.
Faltavam apenas cinco metros para uma distância corpo-a-corpo. Cerrando os dentes, os alquimistas sentinelas continuaram a disparar à queima roupa, mas no fim, seus destinos já estavam traçados.
Luther concentrou todo poder que Skript lhe concedeu nos dois punhos, com eles chegando até a reluzir tamanha a energia. Dukes e Holmes de repente perderam o semblante sério e pareciam desesperados. Mas era tarde demais. Com os dois punhos, o monge criou uma onda de impacto por todo corredor, fazendo Adler e o resto da trupe perderem o equilíbrio e cair no chão.
Já os que sofreram direto o impacto, nem seus átomos resistiram, Luther sabia.
Peter Adler se colocou de pé, tentando encontrar seus sentinelas, mas não os encontrou em lugar algum. Assombrado, viu Luther a poucos metros, parecia bastante ferido e incapaz. O Mestre então aproveitou essa deixa e o fato de Arthur e Julia ainda estarem se recuperando para comunicar suas unidades de sentinelas para irem ao seu encontro.
Pelo visto, a mistura a qual foi designada como sua e que por anos achou inútil, enfim serviu para algo.
Em poucos segundos, Arthur e companhia se viram cercados por dezenas de sentinelas, com seus dedos apontando diretamente para eles. O jovem alquimista não tinha ideia do que fazer, pois se reagissem, certamente morreriam. Mas esse fato, ao que tudo indicava, parecia ser questão de tempo.
— Amarrem-os — Adler ordenou, parecendo um tanto temeroso — em especial o monge agostiniano. O julgamento acontecerá na Câmara Secreta da Alta Cúpula.
Quando a trupe estava devidamente amarrada — e Luther acorrentado — Adler e a dezena de sentinelas começaram a marchar para o local de execução.
Pulget, onde está você? Arthur perguntou, você é nossa última esperança.
***
Caminhando nas tubulações daquela estrutura, o homúnculo notou que aquele lugar era tão labiríntico quanto os corredores da sede, porém totalmente escuro e silencioso. Cada passo seu criava um eco metálico enorme, que começava a incomodar seus orifícios auditivos.
Creio que Art e os outros estejam em apuros, preciso planejar um resgate estratégico, do verbo strategia.
Mas se ao menos tivesse um mapa, pensou que em cerca de trinta ciclos diurnos e noturnos encontraria uma saída dalí.
Assim, tudo que lhe restou foi caminhar, caminhar e caminhar mais um pouco no escuro absoluto. O medo já sentido uma vez pelo homúnculo, agora se mesclava com o suspense que aquele ambiente regular até demais trazia.
Desde que entraram na sede, ele teve um mal pressentimento sobre algo dar errado. Considerando o estrondo que ouviu pouco depois de fugir e encontrar as tubulações, ele estava certo.
Pulget enfim encontrou um desvio daquela linha reta. Como imaginou, tudo que encontrou foi um mini corredor idêntico ao anterior. O homúnculo começava a acreditar que o arquiteto daquele lugar tinha um único objetivo em mente: causar incômodo e estranheza aos que pisavam pela primeira vez nele.
Ao chegar no meio do corredor, ouviu vozes, quase inaudíveis. Aquilo seria sua bússola para encontrar uma saída dali.
TEC TEC!
O homúnculo teve um sobressalto ao ouvir o ranger metálico às suas costas, não produzido pelo próprio. Sem pestanejar, materializou uma bola, encarando o breu do caminho de onde viera. Mas não havia ninguém.
Talvez seja o fator psicótico me atacando graças a solitude do ambiente. Esclareceu para si mesmo.
Continuou sua caminhada rumo às vozes. Cada vez que se aproximava podia distinguir a quem pertenciam.
— A sentença será executada assim que os termos forem lidos — ouviu a voz do tal Peter Adler.
Precisava ser mais rápido, pois seus amigos estavam prestes a perder sua existência. Então correu, produzindo mais e mais ecos metálicos pelo ambiente. Virando mais um corredor idêntico ao anterior, as vozes se tornaram ainda mais nítidas, ouvindo Julia praguejar:
— Malditos sejam, por causa de vocês meu pai e o senhor Perty morreram! Que Skript os mande para o vão da inexistência!
— Se assim for de sua vontade — Luther comentou.
— Isso não vai acabar assim, Sr. Adler! — Arthur soltou ferozmente.
— Silêncio — Peter Adler ordenou alto o suficiente — se continuarem falando terei que acelerar o processo. Então fiquem calados e aguardem um auxílio que nunca virá.
O homúnculo cerrou os dentes e acelerou mais o passo. Suas curtas pernas nunca se esforçaram tanto quanto naquele momento. Enfim dobrou no corredor que levaria exatamente à saída das vozes, mas assim que o dobrou, teve uma desagradável surpresa.
Raios. Exclamou mentalmente.
Uma espécie de moinho metálico girava, bloqueando a brecha onde poderia localizar os amigos. Não fazia ideia do motivo daquilo estar posicionado ali, a melhor explicação que achou era “fora bom demais para ser verdade”. Jamais devia esperar soluções fáceis naquela jornada.
Como se isso já não fosse o bastante, ouviu um ecoar de passos rápidos pelo solo metálico, obviamente não produzido por ele.
Ao se virar, contemplou aquele que lhe assombrava desde que se infiltrou na tubulação.
Um rato, uns seis centímetros maior que o homúnculo, vinha correndo em sua direção. Um verde reluzia em seus olhos de forma diabólica, arreganhando as presas afiadas. Em uma de suas patas, ele segurava uma miniatura de um balão de fundo redondo, contendo um pouco do conteúdo verniz que era seu elixir.
Pulget não se deixaria ser devorado por uma peste, não era daquela forma que gostaria de deixar de existir. Então se esquivou da captura, rolando para o lado e fazendo o roedor quase colidir contra o moinho metálico, que girava freneticamente.
Rato e homúnculo agora se encaravam, já postos na arena de combate inusitada. Pulget odiava a ideia de enfrentar um inimigo sem nome, então resolveu apelidá-lo de “El Ratón”. Não fazia ideia de onde tirou aquele nome, foi a primeira coisa a vir em sua mente.
— Doravante, El Ratón — Pulget manifestou seu poder — não pode resistir a esta pelota.
Arreganhando mais os dentes, El Ratón ingeriu o restante do elixir, começando a se contorcer violentamente em seguida. Pulget pensou que ele fosse ter um treco e cair ali mesmo, mas infelizmente fora apenas o elixir fazendo efeito.
Em poucos segundos, o roedor se recuperou, ficando estático por um momento. Achando aquilo suspeito, Pulget se aproximou, segurando firme a bola. Óbvio que precisava estar preparado para ataques surpresas…
— Squik! Squik! — El Ratón disse, erguendo a cabeça para o homúnculo, sorrindo de uma forma que nem o mais astuto dos ratos era capaz.
Não podia questionar aquilo, afinal, era a primeira vez que via um rato de perto. Quem sabe aquilo não fosse típico.
Pulget se afastou o suficiente dele, sabendo que as coisas em breve esquentariam. El Ratón mostrou as presas afiadas. Estando mais expressivo que nunca, esfregou as patas, como se estivesse planejando algo maligno.
Em seguida, fez um gesto como se desafiasse o homúnculo a se aproximar.
Uma provocação. Pulget deduziu. Pelo visto, El Ratón sabe jogar na esportiva.
Lançou a bola de forma certeira contra a peste oponente. El Ratón não tentou desviar, apenas segurou o balão pela boca com as duas patas. A estratégia não fazia sentido, mas quando a bolinha o alcançou, o roedor rebateu usando o próprio balão, que graças a sua resistência foi capaz de refletir o golpe, retornando em cheio para o provedor.
Pela segunda vez naquela jornada o homúnculo sentiu o disparo sair pela culatra, sendo acertando em cheio pela própria bola.
Agora estava uns bons metros afastado de El Ratón. Mesmo com a dor, o homúnculo se forçou a pôr-se de pé, sentindo determinação. Viu seu oponente gargalhar sem emitir som, de forma como apenas um rato com efeitos de elixir poderia fazer.
A provocação novamente foi feita. El Ratón o chamava, pronto para rebater qualquer golpe de Pulget. Foi exatamente isso que lhe entregou, disparando três bolas consecutivas.
El Ratón rebateu duas com maestria, mas a terceira lhe escapou, entrando no moinho metálico. Pulget fugiu das duas, mas sem perceber que o moinho iria rebater a outra, lhe acertando por pura coincidência e azar.
Receio que terei necessidade de uma elaboração complexa de combate.
Bom, ele poderia lançar quantas bolas quisesse, mas não seria páreo para os reflexos de El Ratón. O que teve em mente então foi:
Preciso compactuar com a mesma linha esportiva de El Ratón.
Mas como poderia rebater as bolas? Só havia um jeito!
Materializou uma bola, mas não a disparou, simplesmente a colocando no chão ao seu lado. Em seguida materializou outra, dessa vez pronto para o ataque. Fitou com ferocidade o inimigo, que caia na gargalhada com a falha de Pulget, mas quando este notou a seriedade do homúnculo, se recompôs, novamente provocando.
— En Garde.
Efetuou o disparo. Sem perder tempo, pegou a bolinha que estava no chão, pronto para rebater a outra. Mas diferente de El Ratón, Pulget necessitava de mais precisão nesse quesito.
O oponente rebateu, como esperado, Pulget igualmente. Não esperando tal ato, o roedor acabou sendo atingido, mas o efeito não foi como esperado. Ele apenas pareceu um pouco tonto, mas logo se recuperou, encarando o homúnculo com fúria.
Pelo visto terei que recorrer a velhos hábitos.
Novamente deixou a bola rebatedora de lado, materializando outra, repetindo o mesmo processo de vai-e-vem contra El Ratón.
A próxima rodada foi árdua, com o roedor se esforçando mais para impedir de ser atacado. Mas no fim, Pulget acabou deixando-a passar, ouvindo o som metálico quicando por toda parte. E sem perder tempo, materializou outra.
El Ratón era incansável, rebatendo mais e mais bolas com toda a habilidade que possuía. Talvez o rato imaginasse que o homúnculo estava apenas desesperado e usando todo o poder que tinha nas mãos. Logo seu semblante pestilento se tornava egocêntrico, levando aquele jogo apenas como uma forma divertida de humilhar um pequeno ser bípede.
Isso precisa dar certo. Pulget pensou, sentindo suas forças ir se esvaindo à medida que lançava suas bolas.
— Squik, Squik! — o inimigo ria sem parar, após rebater uma trigésima bolinha.
— Parece que El Ratón foi vitorioso nesta disputa — Pulget admitiu — mas infelizmente ele também subestimou seu oponente.
Os sons metálicos antes abafados, agora voltaram com tudo pelo corredor. A expressão de El Ratón mudou automaticamente, tornando-se apreensiva. Segurou com firmeza o balão de fundo redondo, pronto para… uma saraivada de bolinhas.
Perfeitamente calculados, nenhuma delas acertou o homúnculo, logo sobrou para o roedor o maior desafio, rebater tudo. Assim ele fez, decidindo impedir as isoladas, já que as enfileiradas seriam mais fáceis de evitar.
Sua agilidade e seu bastão eram eficientes para aquela tarefa, infelizmente o homúnculo não contava com sua astúcia. Logo, conseguiu rebater não só todas, como ainda fazer uma atingir Pulget, que dessa vez caiu e não teve tempo para se recuperar rapidamente.
El Ratón se aproximou, mais triunfante que nunca. Se sentindo completamente satisfeito com seu desempenho, viu Pulget como um prêmio, já que este seria sua refeição. Assim que ficou perto o suficiente dele, arreganhou os dentes e mostrou suas garras.
Pulget não parecia abalado, na verdade, começava a contemplar o quão tolo poderia ser o fim de alguém…
Boom!
A imagem seguinte não foi nenhum pouco agradável: A bolinha surpresa voltou com tudo, atingindo o roedor sem qualquer piedade, o arremessando até o moinho metálico que girava freneticamente.
O resultado: o moinho parou e seu oponente agora coexistia com os demais os quais enfrentaram naquela jornada.
Pulget sentia o pequeno corpo todo dolorido. Aquele de fato havia sido seu combate mais árduo, mas a vitória nunca foi tão satisfatória.
Mas não havia tempo para devaneios que faziam bem para o seu ego, precisava salvar seus amigos. Com o caminho liberado, o homúnculo rumou para além do moinho metálico destruído, assim como El Ratón.
Os restos do oponente roedor estavam espalhados por ali, uma imagem tão agradável quanto a de Fagner Von Herbert após levar milhares de socos. Mas preferiu não ficar muito naquilo, já que o lembrava do fardo da inexistência.
Seguiu reto até o fim do corredor-túnel, cuja iluminação se tornou escassa quando chegou ao meio. As vozes de Peter Adler lendo a burocracia ainda continuava, ou seja, ainda possuía tempo para agir. Apressou o passo em busca de encontrar a saída daquela tubulação.
Enfim a claridade foi chegando aos poucos. Logo sua visão encontrou a saída, coberta por uma grade, a qual seria facilmente derrubada por apenas uma de suas bolas, que no momento estava fraco demais para materializar, então ainda segurava a que usou para retrucar as rebatidas de El Ratón.
Caminhou mais e mais, até por fim conseguir observar pelas grades; Adler lia os termos usando todo o arcabouço vocabular rebuscado que Pulget tão bem conhecia. Mas aquilo pouco importava. Seus amigos estavam amarrados, sem qualquer possibilidade de agir diretamente contra os alquimistas apontando os indicadores em suas direção.
Luther até poderia mandar todos para o vão da inexistência, mas ao que tudo indicava não era da vontade de Skript no momento. Arthur sem um elixir era inútil, já Julia…
A ignorância é de fato uma benção. O homúnculo pensou, a respeito dos alquimistas maus que não aguardavam ele destruir todas as lamparinas foscas com sua bolinha. É realmente esplêndido como as coisas podem convergir como uma coincidência planejada.
Calculou a distância das sete lamparinas presentes no recinto. Seria uma trajetória hexagonal perfeita. O local ficaria em um breu tamanho que talvez as mãos negras de Julia nunca tivessem tanto poder quanto naquele momento que estava prestes a acontecer.
Adler ainda não havia acabado de ler os termos:
— … segundo o estatuto número 38 do protocolo de sigilo, houve ainda mais uma regra quebrada; com Arthur Becker, Julia Aurora e Martin Luther revelando a arte secreta das misturas para um criado proletário chamado Charles Fritz — largou na mesa o pergaminho ao qual leu tudo aquilo — com essas infrações, além claro, de impedir planos honestos do alquimista Vagner Von Hebert, Segunda Patente, Sênior de Pesquisas, eu os declaro culpados, sobre a pena de execução.
— Oh não, oh meu Deus, eu não quero morrer. Por favor, gente! — Arthur ia implorando — vocês precisam entender, Herbert é a verdadeira ameaça…
— Chega, Becker. Sentinelas, podem atir…
PLAFT, PLAFT!
Inesperadamente, ouviu-se vidro se quebrando. Sem tempo para pensar, reagir ou processar o ocorrido, todos no recinto se viram em um breu total.
Os próximos acontecimentos obviamente foram indistinguíveis. Sons de disparos, gritaria, socos feitos por mãos muito maiores que a de humanos. Enfim, um caos completo.
O homúnculo ficou apenas sentado ali, esperando o fim do combate na escuridão. Uma brecha já aberta para ele entrar na câmara.
Arthur e Luther, sem poder ajudar, simplesmente se jogaram no chão enquanto Julia e suas mãos faziam o trabalho pesado. Gritos de horror dos sentinelas podiam ser ouvidos antes dela finalizá-los. Arthur não queria nem imaginar o que significavam os sons de ossos sendo torcidos.
— Céus, céus — ouviram Adler gritando em algum canto distante — AHHH, POR FAVOR, ME DEIXE EM PAZ, FOI UMA MAL ENTENDIDO.
— Onde está a pedra? — a voz calma, porém ameaçadora de Julia perguntou.
— Eu não sei… está aqui em algum lugar, mas ninguém sabe, isso é assunto da Cúpula Angular, não sabemos nada sobre ela além de sua existência… POR FAVOR, ME DEIXE IR!
Outro som de osso torcendo. Adler calou a boca.
Agora tudo parecia silencioso naquele escuro. Arthur, Luther e Julia tentaram se localizar, até por fim se encontrarem.
— Meu Deus, eu pensei que a gente fosse morrer — Arthur disse — que merda foi essa?! Quem nos ajudou?!
— Foi Pulget — Luther disse — ele viajou pela tubulação, consigo sentir sua presença.
— De fato foi árduo chegar até aqui, semelhantes afetuosos — o homúnculo disse, perto deles. Foi levado até o ombro de Arthur pelas mãos de Júlia.
— Foi genial, Pulget — Julia disse, séria, porém orgulhosa — certo, o que fazemos agora? Pelo visto Adler não sabia nada sobre a Pedra.
— Se sairmos daqui, creio que toda a sociedade irá nos apedrejar por assassinar o Mestre da Alta Cúpula, o que até seria justo, já que não conheciam sua índole — Luther deduziu.
— Mas e a tal Cúpula Angular? — Julia indagou — então isso só pode querer dizer que há alguém acima de Adler, que Herbert não tem contato.
— Eu nem imagino onde podemos encontrar esse…
Arthur foi interrompido quando do teto, surgiu uma iluminação do olho que parecia apenas um adorno. Conseguiram ver todos os sentinelas e seu mestre abatidos. Mas sem tempo para processar, uma nova reviravolta.
No canto inferior direito, o chão começou a se deformar, de uma forma que eles nunca viram na vida. Uma escada em formato de caracol se formou para outro subsolo. De lá, saiu um homem alto, mas não era isso que mais chamava a atenção.
Ele trajava vestes completamente desconhecidas para os membros da trupe: um sobretudo negro, óculos escuros e chapéu de feltro cinzento. Sua aparência também era peculiar, com a pele morena e cabeça ao que tudo indicava raspada.
Ele não estava sozinho, sendo acompanhado por duas sentinelas femininas com roupas coladas escuras e reluzentes, com o rosto coberto por um visor em degradê. Nada daquilo fazia sentido.
— Oh, meu Deus, eu estava esperando por vocês… talvez não sob essas circunstâncias — sua voz era jovial e nenhum pouco ameaçadora — meu nome é Aaron Schmidt, Líder da Cúpula Angular da Sociedade Secreta e Oculta dos Alquimistas.