As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 17
Os corredores da sede, antes de um branco limpo bem iluminado, agora passavam a carregar uma atmosfera totalmente oposta. As luzes fluorescentes em sua maioria se encontravam estilhaçadas, pifando no chão. Já as paredes estavam maculadas por sangue, enquanto corpos e mais corpos de soldados jaziam caídos, em condições não muito agradáveis de se olhar.
Um verdadeiro banho de sangue aconteceu em apenas alguns minutos após a invasão.
A trupe já não parecia tão determinada e corajosa quanto antes de deixarem o laboratório. A cena macabra os fez ficar mais atentos e temerosos quanto ao inimigo que enfrentavam, afinal, ainda não sabiam a verdadeira habilidade de Herbert.
Talvez ele não esteja sozinho. Julia pensou, conseguindo materializar algumas mãos negras graças ao pouco de escuridão do local.
— Onde será que ele está? — Arthur perguntou, sussurrando — eu não quero olhar pra trás…
— Eu consigo sentir a presença do pergaminho com as teses — Luther disse. Ele ia na frente e não sentia real temor da situação, apesar de receoso por não ter conhecimento da localização do inimigo.
— Confia, Art — Pulget comentou, encolhido nos cabelos do jovem, sentindo o mesmo medo de quando Herbert invadiu a cabana de Paracelso e como um bom mal educado, lhe privou da existência.
Chegaram ao fim de mais um corredor. Conseguiam ver diversas portas abertas e mais sentinelas abatidos. A qualquer momento seriam surpreendidos, a tensão se instaurando a cada segundo que passava.
Ao fim daquele outro corredor, notaram que as luzes piscavam com mais frequência. Conseguiam ouvir os gemidos finais de alguém no fundo. Arthur começava realmente a suar.
ZOOM!
Um vulto passou tão rápido diante deles que não conseguiram captar seu dono. Logo em seguida, ouviram um som de algo rolando no chão. Ninguém se moveu… era um pergaminho.
Um pergaminho razoavelmente grande surgiu no campo de visão da trupe. O objeto mais aleatório possível, se encontrar um daqueles não fosse o objetivo de Luther desde o início da jornada.
— São as teses, eu sinto — o monge afirmou, sem tirar os olhos do pergaminho caído alguns metros diante deles — enfim meu fardo se encerra nessa peregrinação.
O homem possuído pela entidade cósmica se dirigiu até o seu objetivo, que nunca esteve tão perto. Arthur se colocou em seu caminho, pois aquilo só podia ser uma…
— … Armadilha, Luther — Mesmo que o garoto e o monge não tivessem uma diferença de altura tão discrepante, Arthur sabia que ele era capaz de mandá-lo para a inexistência com apenas um corte de seu braço.
— Saia do meu caminho, Arthur.
— Não acha que está fácil demais pra ser verdade?
— Concordo com tal provérbio — Pulget entrou no convencimento — ele tem se provado fidedigno desde o início desta labuta itinerante.
— Não importa. O que esperam que aconteça? Acham eu não consigo desviar de um ataque surpresa?
Arthur continuou em seu caminho, mas Luther conseguiu o afastar facilmente, ambos sabiam que o garoto não era páreo para ele. Em especial naquele momento, onde Skript o auxiliaria de toda forma para recuperar as teses.
O monge avançou determinado. A missão enfim seria concluída e ele finalmente ia poder deixar aquele casulo não-transcendental e o mundo dos humanos. Por algum motivo, não sentia total satisfação com aquela perspectiva.
Parou diante do pergaminho caído. Tudo que precisava fazer era se agachar e pegá-lo. Após um suspiro e aproveitar um pouco da melancolia, ele se agachou, mas…
ZOOM!
O vulto foi ligeiro ao catar o pergaminho do chão primeiro que ele. Agora o captor se encontrava grudado na parede norte. No fim não se tratava de uma armadilha, apenas de uma aparição surpresa e medonha.
— Arthur Becker, não esperava que fosse ir tão longe, confesso — Vagner Von Herbert disse. Sua voz imponente fazia parte do pacote ameaçador que ele era naquele momento. Hebert usava apenas uma calça como vestimenta. Sua aparência ficava entre o bruto e o selvagem, com seu físico sendo muito mais musculoso do que sua idade era capaz. Seus pés e mãos tinham unhas enormes e afiadas, tal qual suas presas caninas e o cabelo como pelo de um felino — ainda conseguiu aliados. Derrotou todos os meus vassalos ridículos… até meu irmão — apesar de parecer nitidamente feroz com aquele fato, Herbert não mudou a compostura de vilão metódico.
Arthur cerrava os dentes, assim como Pulget, que logo materializou uma bola. Luther apenas observava com cautela o pergaminho na mão de Herbert.
— Seu desgraçado, seu maldito — Julia explodiu, as mãos negras totalmente emergidas — você vai pagar! Não vai sobrar nada seu depois que eu colocar minhas mãos em você.
— Oh, a Senhorita Aurora veio até aqui em busca de vingança — Herbert sorriu, como se tudo aquilo fosse divertido, como se sua vitória estivesse garantida — você era a coisa que seu pai mais amava nesse mundo, acredite. Sua pesquisa estava indo bem, mas precisava de algo a mais. Eu lhe disse que ajudaria nisso, mas que coisa, quando apresentei meus planos, em vez de agradecer, disse que me denunciaria para a alta cúpula. Bom, não havia outro jeito. Mas mesmo assim, eu honrei o seu pedido antes dele sucumbir, deixei sua querida filha viva, afinal, que ameaça ela poderia representar de qualquer forma? Jamais seria capaz de prever que ela cometeria a tolice de ingerir aquele elixir incompleto, muito menos que seu efeito fosse positivo de alguma forma. Por isso decidi nunca mais aderir a gratidão.
— Seu… monstro, covarde! Eu vou te estrangular, vou socar tanto sua cara que vai ficar igual aquele pedaço de lixo que era seu irmão! — A garota parecia realmente descontrolada, seus olhos mais estreitos do que o normal.
Provocá-lo sobre Fagner pareceu ter dado certo, já que sua expressão agora assumiu um tom sério e de raiva.
— Desista, Herbert! — Arthur bradou — não é páreo para todos nós.
— Talvez sim, talvez não. Jamais saberemos — Com um olhar e sorriso maquiavélico, Hebert ergueu o pergaminho das teses — a menos que queiram um Paradoxo Temporal. Eu realmente não me importo, a Pedra seria minha do mesmo jeito.
— Como pode saber do Paradoxo? — Luther perguntou, com sua postura incisiva, imutável quando se tratava do seu objetivo.
— Simples. Acham mesmo que a “possessão” de um monge agostiniano no meio da cidade do castelo não iria repercutir? — Herbert coçou o cavanhaque mal diagramado, enquanto observava a incredulidade no rosto da trupe — pois é. Não só isso, como as palavras do monge sobre o fato de ser uma entidade cósmica se espalharam. Alguns dos que testemunharam a cena criaram um grupo… quase uma seita, eu diria. Agora eles saem por aí pregando as palavras do possuído, entrando em detalhes, como o fato de sua missão ser encontrar um pergaminho. Foi assim que eu descobri essa informação. Quando Fagner roubou esse pergaminho eu pensei que não serviria para nada, mas após essa informação, tudo se mostrou como uma conveniente coincidência para o meu sucesso.
— Maldito! — todos disseram em coro.
— Não sabe das consequências com as quais está se metendo — Luther explicou — um Paradoxo afetaria tudo à sua volta, talvez até resultando no fim deste mundo ou deste universo.
— É exatamente por isso que eu lhe dou a oportunidade de evitar esse infortúnio — Herbert era o triunfo em pessoa naquele momento — mate seus aliados e eu lhe devolverei esse pergaminho intacto.
Um silêncio de tensão tomou conta do ambiente. Era muito óbvio que Herbert tentaria aquilo, mas a confirmação fez todos ficarem sem reação. Inclusive Luther, que estava a alguns metros distante dos outros.
— Não acredite nele, Luther — O ódio de Julia conseguiu aumentar ainda mais após a chantagem da pessoa que mais odiava — é óbvio que está blefando.
— Sim, na primeira oportunidade ele vai te apunhalar pelas costas! — Arthur concordou.
— De charlatões só se pode esperar o pão que o diabo amassou — Pulget insistiu.
Luther nada respondeu por um tempo. Pela primeira vez ele sentia a indecisão humana tomar conta completamente de si. Pela primeira vez, em milênios como uma entidade cósmica existente, descobriu o que era um dilema. Por um lado sabia que Herbert não estava blefando, era capaz de perceber a sinceridade nos humanos, por outro, não queria matar seus amigos, além de que o objetivo deles era tão nobre quanto o de Luther.
Fechou os olhos, em busca de uma resposta de Skript. Tentou o chamar, mas ele simplesmente não respondia. A última vez que aquilo aconteceu, havia um propósito de crescimento para a entidade cósmica.
Então ele concluiu que Skript esperava algo dele: que tomasse a decisão certa, que cumprisse seu objetivo. Aquela era sua provação final.
— Desculpem, amigos — seu olhar se tornou um vazio, mas o que ele sentia naquele momento era mais inclinado para a melancolia do que estava prestes a fazer — desde o começo dessa jornada os acompanhei com um único objetivo. Agora que cheguei aqui, por mais que tenha que fazer o que vou fazer, não tenho outra escolha. Herbert não mente, não neste caso.
— E o que acontece depois, Luther?! — Arthur gritou, indignado — vai deixar ele roubar a Pedra Filosofal e acabar com tudo?!
— Eu posso lidar com isso depois — E então começou a caminhar em direção aos amigos, como um mercenário prestes a cumprir sua missão.
— Merda, o que faremos?! — Arthur perguntou, desesperado com a forma que Herbert virou o jogo.
— Acabamos com ele — Julia simplesmente jogou a solução, vendo a incredulidade no rosto do garoto e homúnculo — Que foi? Que escolha a gente tem?
— Receio que caso vençamos essa peleja, Herbert destruirá o aglomerado de teses religiosas, assim criando o Paradoxo Temporal — Pulget lhes lembrou.
Aquele dilema em que Herbert os colocou fez todos ficarem comprometidos. O vilão no fim sempre estava um passo à frente deles, e mesmo que eles conseguissem lidar com os obstáculos, no fim a última cartada do vilão se mostrou certeira.
Mas não tinham tempo para pensar ou convencer Luther do contrário, pois este parecia determinado em cumprir seu objetivo.
— Vamos atacar — Arthur disse, se lembrando de como Petry tratava a questão de Luther ser uma entidade cósmica — ainda há esperança.
Julia e Pulget acenaram positivamente. Estar unidos era o mais importante naquele momento.
O homúnculo logo materializou uma bolinha, atirando contra Luther. Arthur avançou para um ataque direto e Julia materializou todas as mãos negras que conseguiu.
Mas como imaginavam, Luther era muito mais durão quando queria, ou melhor, quando Skript queria.
— Não quero machucá-lo, Arthur — disse quando o garoto tentou uma investida direta — quero que seja rápido.
— Digo o mesmo — Então tentou um chute na canela do monge, não tendo muito sucesso.
Luther usou o cotovelo para imobilizar Arthur, conseguindo o fazer se ajoelhar. Ergueu a mão, pronto para executar um corte fatal… mas hesitou.
Pulget aproveitou essa brecha para atingi-lo com suas micro-bolas.
O braço foi ferido, uma distração suficiente para Arthur escapar do alcance do corte letal. O monge então se virou para o homúnculo, que naquele momento agia em cima de uma das mãos negras de Julia.
— Sucumba, @#$?, trago as memórias de nosso último embate.
— Eu estava jogando com leveza, pequeno — Luther deu uma cambalhota épica — agora tudo posso, naquele que me fortalece: Skript!
Pulget continuou com seus ataques, mas Luther desviava de todos com a maestria de um dançarino executando sua melhor performance. Mesmo assim, o homúnculo não parou, tentando todos os ângulos possíveis. Até mesmo quando elas retornavam o monge era capaz de desviar.
— Não adianta, meu objetivo é maior que qualquer determinação humana — Já próximo o suficiente do oponente menor, juntou os dedos para eliminá-lo.
O homúnculo sustentou o olhar de Luther. Era bem óbvio que ele não queria fazer aquilo. Era incapaz de lidar com o sentimento novo da indecisão, ainda mais sem instruções diretas de Skript.
Foi tempo suficiente para Julia investir. Suas mãos negras atingiram em cheio o monge, que acabou sendo arremessado alguns metros.
Apesar de um pouco atordoado, logo se recuperou. Mas assim que se pôs de pé, os três vieram em um ataque conjunto. As mãos de Julia socando freneticamente, assim como Arthur, enquanto bolas cromadas surgiam de forma imprevisível.
O monge se via sem escolha, precisaria machucar seus amigos por mais que fosse contra sua vontade. Se concentrou enquanto recebia os ataques, em seguida usando uma potente descarga de poder cósmico, jogando o trio para longe.
Arthur, Pulget e Julia caíram com tudo no piso duro, atordoados e imobilizados. Mas antes que qualquer um deles pudesse reagir, Luther se aproximou rapidamente dos três. Ambas as mãos prontas para um corte fatal.
— Muito bem, entidade cósmica — Herbert, que observava tudo de longe na parede, parabenizou — agora acabe com eles e impeça este Paradoxo Temporal.
Luther observou os três companheiros no chão, mas não era temor que via em suas expressões, e sim uma tristeza e desistência.
As memórias de toda a jornada e o tempo que passou com eles vieram à sua mente. Arthur sempre corajoso, apesar das falhas; Pulget sempre se provando forte e grande, apesar da pequenez; Julia e seu agir em favor da missão sem pestanejar.
E claro, de Petry, que sacrificou tanto o poder quanto a vida mais pelos amigos, do que pelo sucesso da missão.
Até onde a entidade cósmica sabia, os humanos eram apenas pequenas formigas desprezíveis no universo. Mas entre todas as experiências que teve na Terra, aquela provou que os humanos podiam ser muito mais.
Pela primeira vez, Pulget sorriu.
— Me alegra saber que ao menos morrerei nas mãos de um confrade em prol de um bom objetivo — ele comentou, em um tom de luto.
O monge foi incapaz de conter o sentimento que transbordava em seu interior naquele momento. Uma lágrima lhe escapou involuntariamente. Ele sorriu para os amigos. Apesar dos pesares, sabia qual decisão queria tomar.
— A morte virá para vocês — decretou, abaixando as mãos — mas não será hoje e nem pelas minhas mãos.
Arthur e Julia se entreolharam, perplexos, enquanto o homúnculo ainda tinha um sorriso de orgulho estampado na face. Ainda sim, não era o momento de comemorar, pois aquela ação não viria sem uma consequência.
Eles então se colocaram de pé e encararam Herbert junto com o monge. O alquimista maligno parecia tão perplexo quanto os demais com a situação. De fato não esperava aquela virada e nem sabia o quão ruim seria rasgar aquele pergaminho.
— Bom, isso é surpreendente, sacrificar tudo à sua volta para deixar seus amiguinhos vivos. Me pergunto como uma suposta entidade cósmica chegaria a tal nível de tolice.
— Seria injusto ceifar almas inocentes, além de ser contra meus princípios.
— Muito tocante, mas entendam uma coisa, vocês vivos são uma pequena pedra no meu sapato, do tipo que eu não quero preservar. Então se o meu plano pode dar errado, porque não acabar com tudo de uma vez? — Sem hesitar, rasgou ao meio o pergaminho.
A trupe prendeu a respiração, a tensão se perpetuando por todo o corredor. Em câmera lenta viram o pergaminho despedaçado cair no chão. Em poucos segundos chegaria o fim…
…
Dez segundos se passaram e o dito Paradoxo Temporal não parecia visível. Todos se entreolharam, havia confusão em seus rostos, inclusive no de Luther. Este começou a virar sua cabeça em todas as direções, para se certificar do tão temido ocorrido.
Mas nada parecia ter mudado.
— Luther… o que deveria acontecer? — Arthur perguntou, perplexo.
— Um Paradoxo Temporal — o monge simplesmente respondeu — uma quebra no espaço-tempo completa.
— E isso devia ser visível? — Julia perguntou.
— Provavelmente.
— Receio que o cosmos jamais se enganaria — Pulget comentou.
— MAS QUE DIABOS?! — Herbert bradou — nada aconteceu, como isso é possível? Meu plano era perfeito, vocês seriam incapazes de me enganar dessa forma!
— Ora, parece que fomos mais espertos que o diabo, não? — Arthur debochou.
Naquele momento, Luther caiu de joelhos, parecendo abatido. Seus amigos foram em seu auxílio. Pelo visto, falhar aquela missão havia lhe custado.
— Tá tudo bem, cara?! — Arthur perguntou enquanto o monge ainda parecia aéreo.
Repentinamente, sua expressão se tornou alegre, seus olhos brilharam, como um choque de epifania. Ele encarou seus amigos, cujos rostos exalavam preocupação.
— Por que expressas tal comodismo positivo, confrade? — Pulget perguntou.
— Eu entendi tudo errado, amigos… Skript não me mandou aqui para impedir um Paradoxo Temporal. Por anos ele tentava me convencer de que todos os seres racionais, por mais limitados e pequenos que parecessem, eram muito complexos… as teses não eram um problema, pois se elas fossem rasgadas, o monge poderia reescrevê-las. O curso das coisas seguiria normalmente, apenas com alterações de data.
Todos ficaram boquiabertos com a revelação, incluindo Herbert, que ouviu tudo afastado dos heróis.
— No fim eu estava aqui para aprender e aprendi. Obrigado, Skript — disse, olhando para o alto, logo em seguida se voltando para os amigos — obrigado, Arthur, Julia, Pulget. Vocês e Adam Wolfgang Petry me mostraram que a humanidade não é um completo desperdício.
Então fechou os olhos.
Uma aura prateada pareceu dispersa no ambiente, aos poucos subindo e sumindo. O trio que restou viu o monge caído e roncando, sabendo que agora ele era apenas Martin Luther.
— Malditos sejam — Herbert gritou, saindo correndo dali como um quadrúpede.
A trupe não agiu imediatamente. Se entreolharam se perguntando se deveriam deixar o corpo desacordado do monge ali mesmo.
Convenientemente, Aaron e suas duas sentinelas surgiram no corredor. Uma delas parecia ferida. Vendo o monge caído, o homem de sobretudo já pensou o pior.
— Ele está vivo — Julia o tranquilizou — Só voltou a ser apenas um monge agostiniano.
— Ah, excelente — Aaron respirou aliviado — se perdemos esse homem, aí sim veremos o pior Paradoxo Temporal possível.
— Não há mais tempo — Arthur se colocou de pé — precisamos impedir Herbert, ainda há uma chance.
— Precisamos impedir e acabar com a raça daquele desgraçado — Julia lembrou.
— Concordo em número, gênero e grau — Pulget manifestou.
— Certo, então vão — Aaron se voltou para a sentinela menos ferida — Agente M, vá com eles. Agente B, me ajude a levar este homem.
Assim, Arthur, Pulget, Julia e a sentinela M saíram pelos corredores mal iluminados, em busca do inimigo.
Era notável o estrago de Herbert pela estrutura da sede. Havia ainda mais corpos de soldados dilacerados no chão, de formas que a trupe não se atrevia a ficar encarando. A atmosfera silenciosa e crua deixou todos em alerta para um ataque surpresa.
A Agente M tirou um bastão das costas, aparentemente seu instrumento de serviço. À medida que caminhavam o medo do inesperado só crescia. A sentinela de Aaron, apesar do rosto coberto, demonstrava fúria ao contemplar os companheiros mortos pelas mãos de Herbert.
Continuaram caminhando mais um pouco, até avistarem um soldado caído, porém ainda vivo. M se achegou até ele, bastante preocupada.
Mas assim que se aproximaram, o soldado disse:
— Atrás… de vocês!
Houve um rugido como de um felino, em seguida a investida. Por sorte e graças às mãos de Júlia, conseguiram escapar das garras — literalmente — de Herbert.
Antes que o trio pudesse, a Agente M investiu contra o inimigo. As habilidades felinas de Herbert lhe proporcionaram uma boa agilidade, escapando facilmente dos golpes consecutivos do bastão de M.
A sentinela atacava com toda a ferocidade, enquanto o vilão se divertia com a impulsividade e falta de estratégia presente nela. Em um determinado momento foi capaz de acertar uma de suas pernas, conseguindo que ao menos recuasse.
Em uma distância considerável, estavam de frente um para o outro.
— Está com raiva por eu ter matado seus companheiros, não é? — perguntou com desdém para a oponente — Puff, eles não passavam de uns crápulas insignificantes. Nunca mereceram a honraria de lutar como soldados. No fim, morreram como uns inúteis.
— Cala a boca e morra, seu demônio! — Agente M bradou, seu tom era de um ódio tamanho, que por pouco não gaguejou.
Ela então correu para seu alvo, sem pensar, apenas queria trucidá-lo. Herbert também correu em sua direção. Em uma cena digna de grandes duelos, os dois se aproximavam para um golpe final.
— Agente M, não! — Julia tentou avisar, lembrando do conselho de Petry, mas era tarde demais.
Tão rápido quanto começou, aquele combate teve seu fim. A sentinela havia conseguido acertar em cheio o ombro do oponente, mas em contrapartida tinha garras bem afiadas perfurando seu abdômen.
Julia levou as mãos à boca, Pulget sentiu náuseas pela primeira vez. Arthur cerrou os dentes, se segurando muito para não ir até Herbert.
— Sempre funciona — disse, retirando suas garras do corpo de Agente M, fazendo-a cair no chão — sempre fácil demais.
— Um ato de covardia, merece punição a altura — Pulget declarou, com fúria nos olhos, como ninguém nunca o vira antes. Logo materializou uma bola — eu odeio Vagner Von Herbert!
E com esse veredito, o homúnculo disparou não uma, nem duas, mas várias vezes em uma velocidade impressionante.
O vilão precisou de todo o esforço para desviar, mesmo assim não conseguindo impedir que algumas a atingisse. Pulget não cessou os ataques em momento algum, decidindo que iria até o seu limite.
Genialmente imprevisível, o vilão admitiu diante da determinação do pequeno, Terei que deixá-los vivos por ora.
E como um bom covarde, saiu correndo das bolas de Pulget, que quicavam por toda parte.
— Droga, ele fugiu! — Arthur disse o óbvio.
Pulget continuou disparando mesmo assim, mas logo o ritmo foi-se reduzindo. O homúnculo havia chegado ao limite com seu poder e precisava descansar.
As bolas cessaram, Pulget adormeceu.
— Vai ficar tudo bem, amigão, vamos acabar com ele — o aprendiz de alquimista disse — precisamos levá-lo a um lugar seguro.
— Leve-o, Arthur — Julia pediu, encarando o corredor para onde Herbert havia sumido — eu cuido de Herbert.
— Não… Julia, você não pode fazer isso sozinha…
— Nem pense em me impedir, Arthur Becker — ela disse, em um tom furioso, materializando várias mãos negras — eu não preciso de ajuda. Leve Pulget e volte se quiser. Eu não vou esperar mais um segundo!
Então saiu correndo pelos escuros corredores, com toda a confiança do mundo. Arthur obedeceu e foi em busca de deixar o pequeno amigo seguro.
***
Julia caminhava freneticamente pelos corredores, com as mãos negras em seu encalço, prontas para destruir o inimigo. Herbert não poderia ter ido tão longe.
— Apareça, maldito — seu grito ecoou por toda parte — você não deveria ter me deixado viva, esse foi seu erro!
— Não sei se concordo — ouviu sua voz, em seguida surgindo como um vulto — já descobri onde a pedra está, matar vocês agora não vale o esforço.
— Vai fugir como um bom covarde que é.
— As pessoas não nos ensinam isso, Julia, mas também há burrice na coragem — e então correu.
A perseguição se iniciou. Julia podia não ser tão rápida quanto ele, mas suas mãos se estendiam em uma distância considerável. Ao menos era capaz de não perdê-lo de vista.
Precisou tomar cuidado para não tropeçar em corpos ou escorregar em sangue no chão. Por pouco não se estatelou em um certo momento, agradeceu a Skript.
Herbert pegava impulso pelas paredes, na esperança de ir mais rápido, mas ainda assim não tirou as mãos negras do seu encalço.
Não se preocupou tanto com isso, pois enfim chegou ao seu destino.
Chegaram até um corredor sem fim, com uma grande porta vermelha se projetando no horizonte, que era um beco sem saída. Agora lá estava ela, Julia e suas mãos, enquanto o vilão se encontrava cercado.
— Ora, eu imagino que deve estar chateada pelo seu pai — ele começou — mas saiba que a proposta que eu lhe fiz seria melhor para ele e para você, já que ele possuiria mais bens…
— Em troca de sangue inocente e tirania? — ela perguntou, com o semblante de ódio — meu pai jamais aceitaria isso. Ele jamais poderia imaginar que morreria nas mãos de quem considerava um amigo. SEU COVARDE! VOCÊ VAI PAGAR PELO QUE FEZ COM MEU PAI E O SENHOR PETRY!
— Ah, então é vingança que você quer. Se bem conheço Adam, ele reprovaria esse comportamento.
— Não é vingança, você merece morrer.
— E quem define isso?
— Eu defino — Seus olhos se tornaram órbitas negras, pois usava as habilidades de sua maldição ao limite.
Sem medir esforços, ela investiu contra Herbert. Por um triz ele conseguiu fugir. Mas em seguida foi acertado em cheio no estômago por outra mão, caindo no chão, sem fôlego.
— Eu não vou tornar isso rápido, seu maltido, vou te fazer sofrer… como nunca sofreu antes.
Enquanto Julia continuava a externar suas intenções para com o alquimista maligno, este retirou um cartão do bolso de sua calça. De forma sorrateira, fingindo que apenas se recuperava do soco, ele encaixou o cartão, fazendo diversos alarmes soarem.
Mas que merda é essa? Julia perguntou, se distraindo no processo.
A porta vermelha abriu e Herbert se lançou no breu total. Julia praguejou ao ver que perdeu seu inimigo de vista. Mas logo se recuperou, pois a vantagem naquele campo de batalha era sua.
Poderia não ver Herbert, mas podia materializar suas mãos por toda parte, então ele não tinha escapatória. Nem mesmo sair da sala, já que Julia continuava bloqueando aquela passagem.
— Acabou, seu monstro — ela disse, tentando ouvir o rastejar de Herbert — você jamais conseguirá a Pedra, jamais sairá daqui com vida. Aceite isso.
O vilão sentia genuíno medo, rastejava desesperado pelo ambiente sem luz. Ele subestimou demais seus oponentes, mas não importava, tudo que precisava era encontrar a maldita alavanca.
BAM!
Sentiu um forte soco na lombar, a garota havia o achado. Logo outros socos vieram, totalmente impetuosos.
Herbert não tinha mais opções, tateou pela parede, mas era impossível… sentiu um cilindro metálico.
Que Deus abençoe o arquiteto deste lugar, pensou, puxando aquilo com toda sua força.
Em questão de milésimos, todo o local estava iluminado. Uma grande sala circular e grids de luzes azuis por toda parte.
Ao extremo norte havia um pedestal, nele, uma jóia vermelho-sangue reluzia, contida em um retângulo de vidro.
Então ele planejou tudo isso? Por isso correu para esse beco sem saída.
Ainda assim, Herbert estava abalado no chão, após tantos golpes de Julia. Então ela decidiu que terminaria aquilo de uma vez. Foi às pressas até ele, cega pela vingança novamente.
Como eu imaginei, o vilão pensou.
Ela chegou tentando acertar um chute, mas repentinamente ele se recuperou e conseguiu recuar. Agora a imponente figura de fera felina estava novamente diante dela, e Julia, incapaz de utilizar seu poder.
Droga!
Sem perder tempo — e decidindo não subestimar mais — o alquimista agarrou a garota pelo pescoço, levantando-a. Apesar da situação, não viu medo em seus olhos. De todos os inimigos que pisaram no seu caminho, ela foi a mais determinada.
— No fim sempre fomos iguais, julia — Herbert disse, com um sorriso triunfante — se não estivesse do lado de Arthur Becker e Adam, poderíamos ter nos dado bem. Poderia ter lhe criado como minha filha após matar o seu pai, uma pena que não houve tempo. Percebe como é uma questão de probabilidade nossa semelhança ser usada para o meu propósito maior.
Unindo todas as forças que lhe restava, Julia conseguiu cuspir de forma certeira no rosto de Herbert. De fato, uma resposta a altura.
— Desgraçada! — sem qualquer paciência, arremessou Julia para perto da porta. Ela acabou batendo a cabeça e ficando inconsciente — Já chega disso!
Mas antes que pudesse agir, viu uma silhueta no fim do corredor. Aos poucos ela ia se aproximando, por fim se revelando ser Arthur Becker. Ambos se encararam, com fúria. Mas assim que adentrou a câmara da Pedra Filosofal, Arthur viu Julia caída, indo ter com ela, cheio de preocupação.
— Não, Julia! — levantou ela, a fim de consultar sua respiração. Felizmente ela ainda estava viva. Logo depois voltou-se para Herbert e viu que ele estava mais perto que nunca da Pedra. Precisava impedi-lo — Maldito seja, Herbert!
— Ora ora, Arthur Becker. Finalmente nos encontramos a sós — o vilão continuava com o bom humor — confesso que nunca imaginei que sobreviveria sequer a Saymon. Talvez não tivesse, se não fosse aquele metido do Adam, sempre xeretando meus negócios. Mas foi melhor assim, sem obstáculos, que graça teria? Agora Adam está morto, assim como seu mestre. Paracelso era inteligente, mas questionava demais. Mais da metade dos soldados da Sociedade Secreta e Oculta estão mortos e em breve você e seus amigos também. Eu venci, Arthur.
— Venceu uma ova! — o aprendiz de alquimista partiu para cima do seu maior inimigo — você não passa de um covardezinho meia boca. Matou meu professor pelas costas, matou o pai da Julia com ajuda, um combate injusto, deu uma corda a um suicida, bateu em uma mulher! Mas quer saber de uma coisa? Por causa de Petry seu irmão maldito morreu, eu consegui ver o pavor nos olhos dele quando o enchemos de socos!
Herbert então cerrou os dentes. Logo o combate se iniciou. Garoto e homem estavam furiosos na mesma medida, desferindo seus golpes sem pudor algum.
A batalha era tão intensa que mal dava para descrever. Não havia estratégia, apenas a força do ódio. Palavras não eram mais necessárias, pois tudo que tinha de ser dito já fora.
Arthur continuava desferindo, mas Herbert o acertava vez ou outra. Enfim, o alquimista maligno conseguiu erguer o corpo do seu oponente e arremessá-lo. Mas esqueceu de consultar a direção, fazendo Arthur colidir com tudo contra o pedestal da Pedra Filosofal.
Apesar de ferido, o jovem conseguiu ver a Pedra há alguns metros de distância. Tudo que precisava fazer era se arrastar até ela. Logo Aaron e as sentinelas restantes estariam ali para acabar com Herbert.
Ouviu passos atrás de si, ele estava vindo. Precisava agarrar a Pedra e não soltá-la por nada.
Mas não tardou para ele aparecer, quando Arthur estava a menos de um metro da Pedra.
— Não adianta, Arthur — ele então pegou um caco de vidro bem afiado — o mal precisa ser cortado pela raiz.
Um dejá vù tomou conta do aprendiz de alquimista. Seu braço sendo cortado, memórias daquele sonho em que tentava pegar a Pedra antes de Herbert.
O pavor o dominou e então instintivamente se afastou do altar. Mas logo o que tanto temiam finalmente ocorreu. Herbert tinha a posse da Pedra Filosofal em uma mão, e um punhado de ingredientes misteriosos na outra.
— Finalmente! — comemorou, levantando o pedestal de madeira para servir como mesa e tirando os balões de fundo redondo da cintura — agora é só fazer a mistura.
Apesar de não possuir nenhum papel com a fórmula, era óbvio que ele havia decorado tudo.
Logo Aaron, alguns sentinelas e alquimistas chegaram. Um deles trazia Pulget. Julia também recuperou a consciência e ficou de pé, assim como todos, horrorizada com o que estava prestes a acontecer.
— Muito bem, contemplem a maior maestria química — ele então começou a misturar os ingredientes, colocando primeiro uma folha verde no balão — Primeiro, a fonte de potássio. Em seguida, mirtilos — ele colocava os ingredientes como um cozinheiro preparando sua receita — logo depois, um bicho-de-seda… E POR FIM, O INGREDIENTE PRIMORDIAL.
Herbert, usando de suas habilidades de super força, conseguiu fragmentar a Pedra, transformando-a literalmente em um pó vermelho, adicionando a mistura.
No momento que ele concluiu, houve um estrondo por toda parte. Puderam ouvir trovões pairarem na superfície. Todos já estavam com medo e sem esperança. Restava ao trio, Aaron e os outros observarem tudo indo por água abaixo.
— EU VENCI! — E então bebeu o Elixir da Vida.