As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 9
Arthur estava pronto. Não fazia ideia de como Valentin conseguiu os balões de fundo redondo, nem como aprendeu a arte das misturas. Muito provável que aquilo tivesse a ver com Herbert e seus planos.
Seja o que for, nunca esteve com tanto ódio de um oponente. O que o fanático fazia, era desprezível e ele devia ser parado, a qualquer custo.
— Você vai pagar!
— YOHOOOO — Com um sorriso maliciosamente triunfante, Valentin alterou seu semblante de forma brusca, como se fosse começar a orar novamente — Que bom que já aceitou sua condenação, impuro.
O jovem estava pronto para atacar. Mas antes que pudesse investir, Valentin revelou seu poder.
Da pequena poça de água entre eles, bolhas de tamanho médio se elevaram. Elas irradiavam um brilho amarelado ao redor, indicando que devia tomar cuidado.
— Contemplem o poder divino — Valentin levantou as mãos, fazendo as bolhas se elevarem mais um pouco — nenhum ser impuro desse universo é capaz de resistir às minhas bolhas purificadoras. Pois só há um meio de se chegar a Deus: a morte! YOHOOOO.
Cansado de ouvir lorotas, Arthur resolveu investir. Correu em direção ao padre louco, cheio de fúria e desejo de justiça. Mas quando estava para cruzar a poça, de onde subiam as bolhas, Valentin ergueu o indicador ao oponente.
Duas das bolhas foram ao encontro do aprendiz de alquimista. Mas graças ao reflexo aprimorado causado pelo efeito do elixir, foi capaz de desviar com facilidade.
— O mortal tem talento, de fato — Luther avaliou.
— Art é um prodígio em formação — Pulget comentou, no ombro do monge — em breve será capaz de enfim enfrentar qualquer infortúnio.
Valentin se assustou com o feito do jovem, já que ele não esperava adversários a altura, pois o único que Herbert lhe pediu para tomar cuidado foi um vestido de forma extravagante — casaco de lã e um cartola na cabeça — que não se encontrava ali.
— Argh — O padre cerrou os dentes, novamente erguendo o polegar. Fez isso com tanta força, que quase tombou para frente — MORRA, IMPURO!
Mais três bolhas seguiram para o ataque. Arthur foi capaz de desviar, mas se exaltou. Na hora de evitar a terceira, foi surpreendido: antes de atacar, a bolha cessou movimento, fazendo Arthur se prevenir do ataque com facilidade. Mas no momento seguinte, a bolha retomou a locomoção na direção do jovem, de forma abrupta. Arthur foi atingido de cheio no ombro.
— ART, OLHE PARA O LADO Á SUA ESQUERDA — O homúnculo alertou.
Mas tarde demais.
Uma outra bolha surgiu e ele não pôde notar. A dor excruciante que sentiu ao ser atingido pela primeira cessou seus sentidos. A outra bolha acertou em cheio seu peito, lhe causando um impacto tão forte, que seu corpo voou para longe.
— YOHOOOOO — O fanático bradou, triunfante. — Eu sabia que seria fácil. Jovens sempre são prepotentes. Claro que ele nunca imaginaria que eu mudaria minha estratégia.
Luther e o homúnculo foram até o companheiro derrotado. Ao se aproximarem, Pulget se jogou sobre o corpo inerte do garoto, pela primeira vez sentindo preocupação. O ombro e o peito pareciam ter sido queimados.
— Art, pelas forças do cosmos, desperte — o pequeno parceiro disse, ansioso — você ainda mantém sua integridade existencial, eu confio nisso!
— Mantém — Luther disse, com uma mão sobre o peito esquerdo de Arthur — seus batimentos cardíacos ainda constam, graças ao cosmos.
Pulget respirou aliviado. Novamente, se pegou imaginando o dilema da inexistência. Já Luther, parecia pensativo, observando o céu.
— O que faremos? — perguntou para ninguém em específico. Aguardou a resposta. — Vai me conceder seu poder? Certo, eu irei… um monstro como aquele homem não merece preservar sua existência!
— Eu concordo com todos os pontos apresentados — o homúnculo disse, cheio de determinação — esse humano irá morrer, nem que eu precise usar todas as minhas bolas contra o tal.
— Você lutou bem, jovem mortal — Luther disse para o nocauteado Arthur — agora é nossa vez de terminar esse combate. Vamos, pequenino!
Pulget juntou os dois punhos e cerrou os dentes. Estava pronto para o combate.
Luther caminhou até Valentin, com o homúnculo em seus ombros. Era capaz de sentir o ódio humano que não sentia desde a última vez que esteve na Terra. Não tinha noção de até onde a maldade humana havia chegado.
— YOHOOOOO — O fanático, com seu semblante triunfante, os encarou com malicia — mesmo depois de derrubar seu amigo, ainda ousam se aproximar do Sacerdote de Deus? Eu posso sentir a impureza em seus corações, mesmo o pequenino.
— Está errado — Luther, erguendo a mão esquerda, levantou cada um dos dedos até o céu — você disse que seu poder é purificador, não é? Sendo assim, como é possível purificar um ser perfeito?
— O que quer dizer com isso, insolente? — o padre louco fez mais bolhas reluzentes flutuarem.
— Use o seu poder, humano!
Assim, o monge começou a caminhar em linha reta, alheio à ameaça adiante.
— MORRA, INIMIGO DE DEUS, YOHOOOO — Valentin, apontando para o oponente, guiou as bolhas.
O homúnculo, no ombro de Luther, ficou apreensivo ao vê-las se aproximar em linha reta. Mas não fez nada, apenas confiou, pois sentiu que poderia.
As bolhas então colidiram contra o monge. Uma pequena ferida se abriu nos braços, na coxa esquerda e no pé direito. Sangue jorrou de seu corpo, mas mesmo diante disso, Luther pareceu inabalado, encarando o fanático com ira.
Valentin se assustou com o que viu. Não era possível aquele homem não sentir dor.
Maldito seja Vagner Von Herbert, não me avisou de tal perigo. Pensou com desgosto, parece que não terei outra escolha senão usar minha carta na manga.
— YOHOOOO. Surpreendente, não posso negar. Mas contra o poder de nosso Senhor, não há barreiras!
Lançou as últimas bolhas que conseguiu extrair da poça contra o monge, logo em seguida correndo para o interior da catedral.
As bolhas novamente atingiram Luther, mas este foi capaz de rebater algumas. Com a ajuda do homúnculo e suas bolas, conseguiu não se ferir tanto. Pois por mais que os ferimentos causados pelo poder de Valentin não o fizesse recuar, a entidade cósmica devia lembrar que ainda possuía um corpo mortal.
Agora só lhes restava seguir o padre louco no interior do local santo. Mas a aura pesada que fugia pelos portões entreabertos, junto do que sabiam que encontrariam lá dentro, os manteve apreensivos. Mas não era tempo de recuar, pois acima de tudo, o fanático devia ser punido por seus crimes.
Seguiram a linha reta adiante rumo à entrada da catedral. À medida que se aproximavam, o cheiro pútrido se tornava mais forte. Luther, graças às suas habilidades, era capaz de ignorar o cheiro. Para Pulget, aquele odor foi uma ofensa às suas cavidades olfativas.
Cruzando enfim os portões, o interior se mostrou exatamente como esperavam:
Um local mal iluminado por poucas velas. Imagens, pinturas e mosaicos estampavam as paredes e o teto. Sobre o chão, uma grande tapeçaria simbólica a São Simão se estendia até o altar, onde Valentin se encontrava.
— Conseguem ver, não é? — disse, indicando os bancos da igreja.
A grande maioria deles era ocupado por um cadáver putrefato de uma mulher, onde de cada estômago aberto, um feto — todos ainda na placenta — se localizava, fresco
— Esses são os verdadeiros filhos de Deus. Aqueles que nunca pecaram, aqueles que não tiveram o desprazer de nascer nesse mundo, os puros. Apenas eles são dignos de ouvir a Palavra de Deus. Eu faço isso todo dia e, não são vocês, blasfemadores e anátemas que irão me impedir, YOHOOOO!
Os próximos acontecimentos foram tão atordoantes que até Luther tardou em compreender. Todas as placentas contendo os fetos natimortos flutuavam até uma altura considerável. Eram muitos, e o resplendor indicando a habilidade de Valentin estava presente neles.
— Maldito seja — Luther bradou, como não tinha feito até então — não passa de um covarde, um louco, cruel…
— Diga o que quiser, pecador, já está condenado ao inferno — o padre declarou, um desespero triunfante estampado no rosto — Pode ser resistente ao meu poder, mas ainda é ferido por ele. Não será capaz de sobreviver a um ataque massivo, YOHOOOOOOOO!
— Pulget — O monge ergueu os punhos, preparado para o desafio — ele tem razão, se eu for atingido por todos, esse casulo não-transcendental não irá resistir. Então, fique ciente que precisarei de sua habilidade para chegar até o altar.
— Minhas bolas estão ao seu dispor, vamos acabar com esse desvairado.
Houve um momento onde todos as placentas se direcionaram até Luther e Pulget. O homúnculo materializou a primeira bola. Valentin ergueu o indicador na direção deles.
— VAMOS, FILHOS DE DEUS, MOSTREM A ESSES IMPUROS O LUGAR DELES!
Todos os fetos partiram em ataque. Luther começou a caminhar a passos largos, enquanto o homúnculo lhe dava suporte, atingindo duas placentas com a primeira bola. Para evitar que os obstáculos perigosos atingissem partes vitais do corpo, Luther rebateu as placentas com seus próprios punhos, causando um grande sangramento naquela região, o que por ora não importava.
Mais quatro placentas com fetos foram enviadas. O homúnculo acertou três delas, mas uma conseguiu lhe escapar, colidindo em cheio contra o ombro direito do monge. Ele não sentiu a dor, mas sabia que toda vez que era atacado, o casulo humano o qual possuía ia se desgastando. Ainda assim, continuou seu caminho, pois não faltava tanto para chegar até o altar.
Valentin sorria agora com genuíno gosto. Pois se sentia forte, poderoso, abençoado por Deus. Herbert lhe dará a tarefa de derrotar apenas um deles, mas no fim teria derrotado três oponentes, que não eram fracos. Como sacerdote e profeta da verdadeira voz de Deus, se sentiu na liberdade de se deleitar em seu ego, que a cada segundo só inflava mais.
Cinco placentas vieram ao encontro dos heróis. Luther rebateu duas com o cotovelo, Pulget derrubou mais três. Mas mesmo diante de cada triunfo, ainda estavam longe de exterminar todos os obstáculos. Se continuasse naquele ritmo, era provável que fossem derrotados pelo cansaço.
— Precisamos mudar nossa estratégia, Pulget — o monge informou, cedendo aos ferimentos e se ajoelhando — enquanto ele continuar comandando essas coisas, não vai dar certo.
— O que tem em pauta, meu confrade? — O homúnculo rebateu mais quatro placentas, por pouco não errou uma.
— Não vejo outra opção senão imobilizá-lo temporariamente usando sua técnica de rebatimento. Aquela que usou de forma tão formidável contra mim em nosso combate no período vespertino do dia anterior.
— Muito bem colocado — Pulget concordou, com uma bola nas mãos, a bola final — mas para realizar tal feito, há necessidade de tempo de cálculo. Portanto, terei de ficar isento de investidas.
— Sem problemas, pequeno — mesmo lhe custando muita energia, o monge se levantou, abatido, se colocando em posição de combate — eu posso dar-lhe cobertura.
Eram muitas placentas flutuando. O homúnculo precisava calcular com precisão não só a rota da bola, como a pressão de seu impacto contra os alvos. Enquanto sua mente moldava a estratégica investida, Luther rebatia duas placentas em seu encalço.
O chão estava cheio de fetos, o fedor ainda maior. Aquilo tudo era de fato uma insanidade. Mas nada era mais insano que a expressão diabólica de Valentin, que queria mais do que tudo ver os impuros destroçados.
O homúnculo estava para concluir seu cálculo, quando uma das placentas essenciais para a rota que traçava mentalmente partiu para o ataque de forma inesperada. O monge foi atingido em cheio no rosto.
— Que infortúnio! — Luther tinha plena noção de que o ataque lhe fez um estrago, apesar de não sentir nada — Tem como acelerar as coisas, pequeno?
De fato, Pulget começava a sentir nervosismo, pois a missão de encontrar uma nova rota para a bola final era desafiadora. Mas, observando um canto mais à direita do ambiente, encontrou a brecha que queria.
A nova rota era menor, mas a distância entre as placentas favorecia melhor o momentum que necessitava. A posição dos obstáculos formava precisamente a constelação de ursa maior.
Com toda a destreza que conseguiu, Pulget lançou a bola cromada. Seu trajeto descreveu de forma exata seus cálculos. À medida que a bola quicava nas placentas, elas eram estouradas, deixando os fetos caírem. O padre louco estava tão imerso em sua euforia por ver Luther se ferindo, que não notou o trajeto da ursa maior enfim se completando.
— YOHO… QUE?
O alvo final foi atingido com êxito. Valentin caiu para trás, tropeçando nas próprias vestes. Por pouco aquela bola não atravessou sua testa. Todos os fetos caíram com tudo contra o piso, fazendo as placentas estourarem. Luther, que estava ajoelhado, se colocou de pé, lançando ao fanático um olhar mortal.
Caminhou até ele sem pressa, pois diante da queda dos fetos, ele não era capaz de os atacar. Valentin, apavorado, se agarrava a um dos candelabros que ficavam nas extremidades do altar.
— Por favor, eu peço misericórdia — disse, arrastando as vestes junto do corpo para trás à medida que o oponente se aproximava — eu sei que caí no pecado do orgulho, da arrogância. Subestimei demais meus oponentes.
— Tem certeza que foi apenas esse o seu pecado, abominação? — Luther sentia uma real fúria, pois nunca antes viu os humanos chegarem àquele ponto de crueldade.
— Me perdoem, eu fui anátema, eu admito. MAS POR FAVOR, NÃO ME MATEM!
— Disserte tudo que tem conhecimento sobre a pessoa de Vagner Von Herbert — o homúnculo exigiu saber.
— Eu não sei muito — O padre enxugou o suor que escorria freneticamente da testa, tentando lembrar do que sabia — eu tenho uma coisa. Eu o ouvi comentando com o irmão sobre uma tal caverna… e que lá ele encontraria uma tal de Pedra Filosofal.
Luther e Pulget se entreolharam. Ao menos poderiam confirmar a suposição de Petry. Mas mesmo com a preciosa informação, o monge não pretendia deixar o lunático Valentin sair de lá com vida.
— Seus crimes contra a humanidade foram tão cruéis, que houve comoção até mesmo entre entidades cósmicas — Ele ergueu o braço direito, juntando os dedos, como se estivesse prestes a desferir um golpe nocauteador — sua punição será pior que a morte! Pois assim foi o desejo de Skript, que me concedeu tal poder.
— ESPERE, POR FAVOR! — O padre se colocou de joelhos, implorando por sua vida — EU PROMETO QUE NUNCA MAIS FAREI DE NOVO. PODE ME LEVAR A UMA MASMORRA, SÓ NÃO ME MATE — diante do olhar incisivo do monge, o desespero de Valentin só aumentou — POR FAVOR, POR TUDO QUE É MAIS SAGRADO!!!!
Luther não se moveu. Por alguns segundos observou o desespero do fanático, saboreando o momento. Chegou a sorrir, um sorriso de pura malícia humana, agora ele começava a entender os mortais melhor. Valentin pareceu até minimamente esperançoso quando Luther abaixou a mão, mas isso fora apenas um blefe.
— Não.
E dizendo isso, desferiu o golpe. Mas o efeito não foi de nocaute ou de um golpe letal. O corte da investida criou uma espécie de quebra no espaço-tempo. Ao entrar em contato com a brecha avassaladora, o corpo de Valentin foi sugado para dentro, como um elástico sendo dilatado. Ao fim, a brecha sumiu e nada do padre restou, pois…
— Agora ele jaz no vácuo da inexistência.