As Sombras de um Novo Começo - Capítulo 12
Após horas consecutivas de um sono mal aproveitado, despertei 20 minutos antes que o teste tivesse seu início marcado pelo ponteiro do relógio.
Agora, sentado em um banco no pátio, observava os alunos que ainda dormiam tranquilamente, alheios ao tempo que progressivamente passava. Pela primeira vez, ser preguiçoso e me deitar cedo para relaxar havia demonstrado seus frutos agridoces para mim.
Diante das várias pessoas em um profundo cochilo, precisava me controlar para não rir das expressões estranhas que estavam estampadas em seus rostos. No entanto, se dormir era o momento mais vulnerável aos constrangimentos, perguntava-me se realmente foi uma boa ideia capotar primeiro naquele colchão macio. Mesmo assim, tentando esquecer essa probabilidade, precisava me preocupar com outra coisa.
Eu, uma pessoa normal, tinha um hábito tão natural quanto possível, mas que era inconveniente ser do conhecimento de todos.
Desde sempre, pelo menos de acordo com as minhas memórias mais frescas, fui uma pessoa pensativa. O problema é que esses pensamentos eram, muitas vezes e inconscientemente, expressos em voz alta, ou seja, eu conversava sozinho.
Não posso negar que aprecio isso. Falar comigo mesmo, ainda que pareça ser uma conversa entre duas pessoas, é aliviador e esclarecedor de uma forma que nem consigo explicar. Então, tudo que posso fazer é evitar que palavras sem um destino certo saiam da minha boca quando estiver na presença de outras pessoas…
— Ahh… Que dor nas costas. — Uma voz calma e serena, característica clara de uma pessoa, interrompeu meus pensamentos. — Mais um pouco, e estávamos no brejo. Ainda bem que não preciso de despertador para acordar.
Fiquei surpreso com as palavras descontraídas dela. Entre todas as pessoas que observei diariamente, Clare era, sem dúvidas, a mais enigmática delas. Ela possuía uma relação próxima à Siris, além de, aparentemente, ser inteligente e… um pouco fria. Nunca a observei nutrir intimidade com os outros alunos e ela também nunca foi de conversar muito. Entretanto, foi curioso vê-la dessa forma, mas tenho certeza que ela, de costas para mim, não sabia que alguém ouvia suas declarações.
— Olhe para isso. Todos dormindo tranquilamente… Deverão ser gratos pela minha responsabilida…
Seus olhos impassíveis encontraram os meus. Por vários segundos, nos fitamos intensamente. Eu, incapaz de esquecer sua atuação anterior, buscava apenas evitar um sorriso sincero, enquanto ela me analisava com a boca entreaberta, como se pensasse “Será que ele ouviu?“
— Boa noite — saudei, fingindo-me de desentendido. — Dormiu bem?
Recompondo-se, Clare rapidamente se levantou e começou a organizar suas coisas. Essa interação era nova para nós dois, já que nunca tínhamos conversado ou trocado olhares antes.
— Não. Aliás, achei que você fizesse parte da nossa equipe.
— E faço.
— Não é o que parece, ou você planejava nos desclassificar?
— Hum… — Eu não estava muito afim de conversar, principalmente quando estava sob uma acusação de traição.
— Foi o que imaginei. Sinceramente, você não me parece uma pessoa muito confiável.
Não respondi e apenas continuei olhando o redor. Essa garota realmente era apática. Sua voz era gélida e carregava uma perspicácia diferente, algo tão afiado como uma lâmina de gilete, e eu não queria debater ou tentar provar algo para uma pessoa assim.
— Falta apenas alguns minutos — ela declarou em um sussurro, percebendo que não ouviria nada sair da minha boca. — Devemos chamar os outros.
Seus olhos azulados em um tom realmente profundo, como se fossem as profundezas do oceano, buscaram concordância em minha expressão. Entretanto, apenas olhei-a calmamente antes de dar de ombros. Seu maxilar se moveu para formar uma resposta, mas antes que pudesse expressar suas palavras, foi interrompida.
— Vejo que vocês dois são os únicos acordados — disse Yoshi, levantando-se do colchão como se estivesse consciente o tempo todo. — Acordarei os outros para discutirmos as questões sobre o teste.
Seus movimentos despreocupados despertavam, além de Julia, Akime e Marc, outras pessoas que bocejavam em evidente preguiça. Os líderes dos outros grupos, agora cientes da situação, entoavam suas vozes sonolentas, tentando, ainda sim, demonstrar firmeza e liderança.
Clare, após terminar suas preparações, aproximou-se e se sentou sobre o banco ao meu lado. Sua cabeça girava em todos os sentidos, mas seus olhos ignoravam a minha existência enquanto seus possíveis pensamentos eram a única coisa que permeavam o espaço entre nós.
Considerando-a agora, talvez, só talvez, tenhamos começado de uma forma… inapropriada, mas ela parecia ser uma garota complicada também, então eu não carregaria toda a culpa.
— Muito bem — entoou Yoshi, aproximando-se de nós enquanto era acompanhado pelo restante do nosso grupo. — Agora que estamos todos acordados e prontos, quero tratar sobre a organização da nossa equipe.
Não respondemos ou expressamos qualquer oposição as suas indicações. Yoshi era o tipo de pessoa que naturalmente agia como um líder e, tão natural quanto, todos já o enxergavam dessa forma.
— Antes de tudo, gostaria de propor uma conversa mais interna. Durante o teste, precisaremos de uma formação pré-estabelecida para facilitar e melhorar nosso percurso. Então, para definirmos a posição de cada um, peço que vocês expliquem suas habilidades e afinidades antes de começarmos.
— Certo! Gostei disso, então começarei primeiro! — concordou Akime, soando animada. — Eu tenho afinidade com água e terra e, embora esteja em processo de aprendizagem para outros dois feitiços, posso dizer que domino pelo menos outros dois: o restaurativo e o metálico.
— Eu — Começou Marc assim que Akime encerrou suas palavras. — Possuo afinidade com terra e ar, domino o feitiço metálico e… Apesar de fraco, sei usar o elétrico também.
Em um primeiro momento, pode parecer estranho. Mas, pensando melhor, não é realmente assim. Na verdade, sabemos conjurar mais feitiços, mas esses não são considerados, pois já são algo meio que “natural”. Nesse caso, me refiro aos feitiços básicos, que, dependendo da afinidade, são aprendidos desde o início. Por isso não os contamos.
— Bem… — Julia gesticulou com as mãos, procurando pelas palavras certas. — Tenho afinidade com água e fogo. Além dos dois feitiços básicos, sei apenas o elétrico.
— Ar e água — entoou Clare sem cerimônia. — Utilizo apenas o feitiço azul e o restaurativo.
Após suas palavras, o silêncio instalou-se entre nós, e apenas as vozes próximas e ao redor eram divagadas pelo vento.
Em um único movimento, suas cabeças viram em minha direção exalando expectativa. Suas feições cobravam uma continuidade da minha parte, e, pelo jeito, Yoshi planejava ser o último a fazer sua apresentação, mas isso era irrelevante, pois não planejava criar suspense.
— Dois elementos: fogo e ar. Sobre os feitiços… Sei apenas um.
— E… Qual é? — perguntou Akime, cruzando os braços.
— Primeiro nível do feitiço mental — respondi simplesmente.
— Ohh! Mostra aí! — gritou ela, parecendo uma criança com olhos brilhantes.
Apesar de ser a única que realmente estava animada, as outras pessoas do grupo também demonstraram interesse, no entanto, em resposta a atenção indesejada, apenas neguei com cabeça, arrancando de seus rostos qualquer curiosidade possível.
— Certo. Veremos isso em outro momento. — A voz Yoshi acabou por encerrar de vez qualquer intensão de insistência, atraindo, ao mesmo tempo, os olhares em sua direção. — Tenho afinidade com três elementos, que são água, terra e fogo. Além disso, utilizo o feitiço elétrico, metálico e magmático.
— Muito bem — Marc prosseguiu. — Agora podemos organizar a formação da nossa equipe, e, para isso, tenho uma sugestão. No nosso grupo, apenas o Sete, Clare e eu possuem afinidade com o ar, e duas pessoas, Akime e Clare, dominam o feitiço restaurativo. Nesse caso, a minha proposta é centralizar o nosso poder de cura e expandir nossa área de rastreio pelas laterais.
— Concordo, Marc. O domínio do ar é realmente eficaz para escanear a área, já que seu alcance é maior em comparação à habilidade sensorial da terra. Dessa forma, Clare e Akime ficarão no centro, enquanto você, Julia, Sete e eu, ocuparemos as laterais. Então só precisamos entender a magnitude do domínio de cada um.
Entender a magnitude… Era um bom plano. A manipulação do ar, assim como a manipulação dos outros elementos, permitia a execução de certas especialidades. Entre essas especialidades, estava a capacidade sensorial que podia ser usada através da manipulação de terra e ar.
— Você consegue manipular o ar dessa maneira, Sete? — Marc perguntou, atraindo a atenção para mim. — Minha habilidade não é muito eficaz nessa parte.
— É… — soei incerteza. — Dá pra usar.
— Bom, então você ocupará a retaguarda. Marc e Julia ficarão nas laterais, e eu manterei-me à frente, já que consigo usar a manipulação de terra para estender minha percepção. Todos estão de acordo?
Como esperado, todos concordamos com o planejamento inicial.
O ponteiro do relógio no meio do pátio lançava suas batidas surdas em meio à comoção agitada que vigorava no lugar. A ansiedade, apesar das discussões organizadas em toda parte do cômodo, marcava sua intensa presença enquanto os últimos cinco minutos se desenrolavam em uma mistura de aflição e desespero.
— Me respondam… — A voz de Yoshi nos trouxe de volta a realidade. — Vocês conseguem pular o muro da escola?
— O que? Por quê? — contestou Akime, expressando nossa dúvida conjunta diante da expressão pensativa de Yoshi que segurava seu queixo como se organizasse suas ideias.
— Entendo… — comentou Marc. — Você pretende ganhar tempo, ao invés de partir pelo caminho tradicional.
— Exato! Percebam que, naturalmente, sairíamos pelos portões da escola e depois faríamos a volta nela, já que o primeiro nível está, de certa forma, atrás do colégio.
— Bem pensado. — A voz de Clare pontuou em seguida. — Há alguns quilômetros até a fronteira, é temos 15 minutos para percorrer todo caminho, além, é claro, dos obstáculos presentes durante o percurso. Se pudermos ganhar algum tempo, mesmo que seja mínimo, já é o suficiente.
— Certo, certo. No entanto, não contem ainda com isso. Se um de nós ficar enroscado naquela grade, já era. — Akime cortou as ideias animadas antes que crescessem mais.
— Bem… — Julia interviu. — Concordo, mas não creio que isso aconteça. A grade é alta, entretanto, acredito que, apenas ampliando nosso corpo, possamos atravessar sem problemas. Além disso, mesmo que algo de errado, podemos pedir suporte do ar para o Sete, Marc ou a Clare.
— Certo… Então tudo está resolvido — disse Yoshi, considerando cada um de nós antes de olhar para o seu próprio equipamento. — Fiquem atentos para sairmos assim que relógio marcar meia noite.
Três minutos… Esse era o tempo restante antes de tudo começar.
Era hora de ser sincero. Eu não estava nem um pouco confortável com isso. Desde o primeiro momento, minha barriga revirava e um suor frio escorria pelo meu corpo a cada pensamento que passava pela minha mente, e o pior de tudo era a premissa de entender que ficaria uma semana contínua ao lado de estranhos.
Nesse momento, o que gerava alivio era observar a tensão mal disfarçada no rosto de cada pessoa ao meu lado, porque algo em suas expressões desconfortadas era aconchegante…
— Um minuto — alguém sussurrou.
Ao mesmo tempo, o ar mudou. Em conjunto, a circulação de energia Gama estourou por toda parte, e a pressão interna aumentou, pressionando-me de todos os lados.
O silêncio tornou-se mortal; como uma tempestade que anuncia sua chegada, somente os ventos que sopravam pela cidade eram audíveis.
TAC!
E então… A leve e suave batida de um pequeno ponteiro trouxe a ação.
Como um vulto ou um intenso borrão alinhado, fomos, juntos, em direção às portas do colégio que se abriram instantaneamente para a nossa passagem.
Do lado fora, no imenso jardim, os grupos se dispersaram, mas todos, com exceção do nosso, seguiam o mesmo caminho.
— Vamos.
Era o suficiente, sabíamos bem o que deveríamos fazer agora e não precisávamos de mais palavras.
Enquanto os outros grupos olhavam para trás, buscando entender o que estávamos fazendo, nós corríamos pelas laterais da escola em direção à imensa grade branca que bloqueava nosso caminho.
— Sabem, olhando de perto, não me parece tão fácil… Caso isso dê errado, espero que se lembrem do meu aviso — comentou Akime, exibindo um sorriso nervoso enquanto analisava a imensa estrutura.