Ataraxian: Shoujo - A Garota da Profecia - Prólogo
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- Prólogo - Primeiro dia escolar e o violão misterioso.
Tóquio, 20 de janeiro de 2022, segunda—feira.
Após dois anos de uma forte pandemia que havia deixado países em lockdown por meses consecutivos, o mundo se recuperava lentamente do estrago devastador de um vírus agressivo. Aos poucos, milhões de pessoas voltaram à sua rotina diária. No meio delas, estava Mio Ayasaka, uma colegial de estatura média que estava sentada no fundo do transporte coletivo, indo em direção à estação de Hatsudai, uma hora e meia adiantada para o seu primeiro dia escolar após meses de quarentena domiciliar imposta pelo governo devido ao vírus.
— Não faça essa cara de medo para a janela — disse Ayasaka, friamente, olhando para um ponto fixo no horizonte. — Você consegue, já fez isso várias vezes — completou, corando as bochechas e fazendo uma expressão brava que qualquer garoto comum morreria de amores.
Ayasaka sofria de uma condição chamada de fobia social; qualquer interação fora de sua casa, que poderia parecer uma atividade comum para qualquer pessoa, se tornava um verdadeiro desafio para ela. Ela ficava olhando para a foto do plano de fundo do seu celular enquanto o ônibus andava. Era uma foto dela mais nova, com um garoto misterioso e sorridente. Ambos faziam o símbolo de vitória com a mão. Depois de um tempo encarando a imagem, Ayasaka desligou a tela, aumentou o volume de sua música preferida e se isolou do mundo exterior.
O ônibus parou em frente à estação de Hatsudai, onde ela desceu e seguiu seu caminho até chegar em seu colégio. Lá, era aluna do segundo ano do ensino médio.
Na porta do seu colégio, a mente de Ayasaka foi inundada de pensamentos desesperadores diante da quantidade tão grande de pessoas ao seu redor, algo a que ela não estava mais acostumada há meses.
— Será que meu uniforme está amassado? Ou meu cabelo está desarrumado? — disse Ayasaka com um tom melodramático aflorado pela sua situação atual. Logo em seguida, respirou fundo e adentrou o colégio, subindo até sua sala.
— Mio—chan! — gritou um menino na entrada do portão.
Ela estava com a música pausada, mas fingiu que não ouviu e continuou seu caminho até sua sala de aula. Agora, com passos mais seguros, o garoto a alcançou. Ainda ofegante, com uma voz repentina, mas clara, sorriu e perguntou:
— O que faz na escola uma hora dessas? Falta literalmente uma hora para a aula — indagou o garoto, pasmo.
Ela, sem reação, baixou o olhar, desviando dos olhares do garoto eufórico.
— Não queria me atrasar, Yusuru—san — respondeu a garota, analisando o menino de soslaio. Ele era alto, usava óculos de grau, tinha cabelos escuros e vestia o mesmo uniforme do colégio. Sem expressar mais nada, ela continuou o caminho até sua sala de aula.
Yusuru, sem jeito, colocou a mão atrás da cabeça e soltou uma risada desengonçada em resposta à reação tímida e fechada de Mio. Também seguiu seu caminho até o interior do colégio.
Ayasaka já havia escolhido seu lugar na nova sala de aula, perto da janela. Ela ficou olhando para o horizonte do segundo andar do extenso colégio de quatro andares, esperando as horas passarem. Enquanto isso, ela checou os e—mails em seu smartphone e aguardou o início da aula com seus materiais escolares devidamente organizados.
Era uma aluna exemplar, resultado da notória criação familiar de uma família tradicional japonesa.
Ayasaka deu um pequeno salto na cadeira ao ouvir o som dos sinos, que anunciavam o início das aulas, era o sinal que a fez saltar na cadeira onde estava prestes a cochilar. Observando ao redor, viu a sala completamente cheia de pessoas, o que a deixou tensa e desconfortável diante de todos os olhares e conversas que se entrecortavam em todas as direções, como se estivesse em terra sem lei. Ela respirou fundo e disse:
— Ok, lá vamos nós — suspirou enquanto abria seu caderno na matéria certa e fazia anotações importantes sobre os pontos que considerava interessantes em sua primeira aula presencial em dois anos. Tinha sorte de ser sua matéria preferida, e o tempo voou para Ayasaka.
O sino para o intervalo tocou, desta vez ela estava preparada para o som e não se assustou. Arrumou seus materiais e, de repente, lembrou de um pequeno detalhe importante:
— Que coisa, esqueci meu obentô — e seguiu em direção à cantina, no andar de baixo, para comprar sua comida preferida, o Oshiruko, uma sopa de feijão doce que muitos costumam comer como sobremesa, mas Ayasaka era diferente, comia como almoço, já que qualquer pequena refeição satisfazia seu pequeno estomago.
— … Isso deve servir, tanto faz, obrigada pela comida — completou, encarando o item com um olhar sem piedade ou compaixão.
— Mio—chan! — uma voz empolgada ecoou da escada na entrada do refeitório na direção de Ayasaka; era Yusuru, acompanhado de seu veterano do terceiro ano.
Ayasaka olhou na direção da voz de relance enquanto abria sua refeição e se dirigia a uma mesa vazia no fundo do refeitório. Antes que conseguisse se acomodar, Yusuru já estava em frente à mesa para a qual ela se dirigia.
— Eu vi que você esqueceu seu almoço, comprei um vale da cantina para você, vim entregar — disse Yusuru, estendendo o vale refeição.
— Como você sabe que não trouxe almoço?… — Debochou Ayasaka sem demonstrar expressões, com receio de que o veterano de Yusuru fizesse alguma brincadeira que a deixasse tímida.
— Nada mais que a sua obrigação, Kanade—chan — falou o veterano, se referindo a Yusuru pelo primeiro nome, dando um tapa no ombro dele, quase fazendo com que ele voasse em cima da mesa de outros alunos no refeitório.
— Qualquer dia você vai deslocar meu ombro, sério cara! — exclamou Yusuru indignado com seu veterano.
Ayasaka soltou uma leve risada, enquanto Yusuru e seu veterano se afastavam, seguindo em direção à cantina com as bandejas em mãos para pegar suas refeições.
“Finalmente, posso comer em paz,” pensou Ayasaka, aproveitando a distração deles.
Rapidamente, ela colocou de volta o vale—refeição na gola da camisa de Yusuru e observou—os se afastarem em meio a reclamações mútuas em um tom baixo e sarcástico.
Agora, Ayasaka conseguiu se acomodar na mesa e saborear sua comida favorita peculiar. Enquanto comia, fazia sons semelhantes aos de um gato feliz e birrento.
Depois do intervalo escolar, o tempo passou até chegar o temido momento para Ayasaka: a aula de inglês. Devido à sua condição, geralmente tinha pouca ou nenhuma experiência em falar as palavras necessárias na aula; sempre entrava em pânico e travava. Infelizmente, dessa vez não foi diferente.
Levando em consideração que o professor pediu que ela recitasse uma frase em inglês de Shakespeare, que estava escrita no livro didático que ela segurava com força, demonstrando nervosismo.
“To be or not to be, that is the question.” Era tudo o que ela precisava falar. Ayasaka estava nervosa, olhando fixamente para um ponto da página de seu livro. Seu nervosismo estava aumentando, fazendo—a começar a tremer.
O professor a encarou, esperando que ela continuasse.
“Você pode fazer isso, Ayasaka,” pensou consigo mesma.
— E então? — indagou o professor. — Tenho certeza de que nossa aluna exemplar pode recitar essa famosa citação com esmero — completou ele.
Ayasaka sentiu um nó na garganta. Ela tentou formular as palavras, mas seu corpo simplesmente não obedecia. As palavras pareciam presas em sua garganta, e a ansiedade aumentava.
— “To be or not to be, that is the question,” — uma voz límpida soava diante do silêncio cortante da sala de aula. Ayasaka olhou imediatamente na direção da voz, fazendo uma expressão de surpresa ao descobrir que a voz pertencia à presidente de classe, Mitsui Ashimi. Mitsui era uma garota magra, um pouco mais alta que Ayasaka, de cabelos longos e pretos, com um olhar bondoso e singelo. Ela estava sentada atrás de Ayasaka, observando a situação com compaixão.
“Por pouco escapou. Estava planejando levantar e sair correndo chorando,” pensou Ayasaka de forma desolada. “Ela é maravilhosa, um verdadeiro exemplo de aluna, fofa e comunicativa, o oposto de mim,” concluiu sua linha de pensamento, olhando pela janela, sentindo—se indignada com a situação.
Ayasaka finalmente chegou ao portão de sua casa, no fim de seu primeiro dia letivo, exausta, triste e estressada, comportamento típico dela.
— Estou em casa — avisou Ayasaka na porta da frente de sua casa, tirando seus sapatos e colocando—os no canto da entrada.
Sem resposta, ela caminhou até a cozinha para verificar se tinha alguém em casa, ficando decepcionada, mas não surpresa, com a resposta que encontrou. Era mais um dia em que seus pais permaneceriam no trabalho até tarde.
Ayasaka subiu até o seu quarto e se jogou na cama, fazendo com que a cama quicasse e quase a fizesse cair no chão. Largada, com o rosto afundado em seu travesseiro, ela pensou:
“Já que ninguém está em casa, talvez eu possa explorar o nosso galpão. Deve ter algumas fotos antigas de nossa família. Vou lá checar”, disse ela, com determinação de uma adolescente que encontra um motivo aleatório para escapar do tédio.
Ayasaka olhou para a porta do galpão com um olhar duvidoso, pensando se pegou a chave certa ou teria que voltar dentro de casa e procurar outra chave.
Felizmente, a porta se abriu em sua tentativa de destrancar o fecho com a chave que ela pegou no quarto de sua mãe, não conseguindo conter um sorriso travesso. Ela empurrou a porta antiga de madeira tradicional japonesa, fazendo com que os últimos raios do sol do dia batessem nas caixas empoeiradas que estavam guardadas ali há anos.
Olhando para cima no interior do galpão, Ayasaka reparou em um objeto diferente que chamou sua atenção. Estava enrolado em um tecido azul escuro, semelhante à cor do mar, com detalhes amarelos que pareciam relâmpagos.
Obviamente, o curioso objeto atraiu a atenção de Ayasaka, que o pegou segundos depois, removendo a poeira com a ponta dos dedos e soltando uma expressão de surpresa ao descobrir a qualidade e complexidade do bordado do tecido que envolvia o objeto.
Ela removeu o pano que o envolvia e ficou surpresa com a descoberta que fez: era um violão vermelho cereja, consideravelmente grande para ela, mas isso não diminuiu sua empolgação com a descoberta.
Ela trancou rapidamente as portas do galpão e devolveu a chave ao quarto de sua mãe, levando o violão para seu território pessoal, também conhecido como seu quarto.
Ayasaka sentou—se em sua cama, com o violão no colo, quase desaparecendo atrás dele devido ao tamanho. Se ajeitou e tentou lembrar de suas aulas de violão na infância, apreciando as curvas do instrumento que tinha em mãos. Ela criou coragem e tocou seu primeiro acorde no instrumento, estranhando o fato de não ter emitido som.
— Ué? — surpresa, ela encarou o instrumento com curiosidade, tentando entender o motivo de não ter saído som algum. — Ok, vamos tentar novamente.
Mais uma vez, Ayasaka se concentrou, esvaziando a cabeça de preocupações e regulando sua respiração para ouvir o instrumento claramente. Ela desferiu novamente a nota musical, encaixando um acorde atrás do outro, dedilhando o instrumento com maestria, sem se importar com o som.
“… Consigo escutar… estranho, parece que estou tocando debaixo d’água”, pensou ela enquanto tocava sua melodia única no violão, que emitia uma doce melodia, criada por Ayasaka. Era estranho, pois o som parecia abafado, como se estivesse sendo reproduzido debaixo d’água. “Tenho uma ideia”, completou sua linha de pensamento, ajeitando—se em sua cama.
Ayasaka fechou os olhos e começou a cantar, uma melodia simples e sem letras, semelhante a cânticos élficos. Emitia sons arrastados que se sincronizavam com sua respiração, criando uma sincronia quase metronômica. A música se harmonizava perfeitamente com o som do violão.
Enquanto tocava, Ayasaka sentiu uma brisa suave em seus cabelos. A situação a surpreendeu, pois, a janela de seu quarto estava fechada. Ela abriu lentamente os olhos, sem parar de cantar e tocar, para verificar se a janela tinha se aberto devido a alguma rajada de vento. No entanto, o que viu a deixou perplexa.
O cenário ao seu redor havia mudado completamente. Ela não estava mais em seu quarto, mas em uma planície de pastos azul—escuro, com árvores de folhas brancas e troncos marrom—escuros. Ao fundo, uma cidade com edifícios pontiagudos e ângulos abstratos se erguia, assemelhando—se à arquitetura gótica antiga.
Assustada, Ayasaka parou de tocar imediatamente. Um arrepio percorreu todo o seu corpo, fazendo com que o cenário modificado ao seu redor se distorcesse, retornando ao seu quarto como se nada tivesse acontecido. Os objetos reapareceram, e ela encarou tudo com olhos arregalados.
Ela estava visivelmente perturbada e, num impulso, atirou o violão na almofada em frente à sua cama. O instrumento ricocheteou e caiu no chão com um som doloroso. Ayasaka gritou indignadamente:
— Estou enlouquecendo! Isso foi a prova. Eu preciso me internar. Vou procurar um número na internet para que venham me buscar agora mesmo.
Ela colocou as mãos na cabeça, tremendo, e encarou o violão como se fosse um objeto maligno. Depois, soltou uma risada seca e sarcástica, em um estado de choque momentâneo. Por fim, reuniu coragem e levantou—se da cama, pegando o violão e colocando—o ao lado de sua cama.
— O que foi isso? — indagou a si mesma, colocando o violão em pé ao lado de sua cama, enquanto a luz do fim da tarde adentrava o shoji de sua casa, uma típica casa de família tradicional japonesa. O violão, estranhamente, parecia convidá—la para “dançar” com ele novamente.
Ayasaka lembrou que tinha deveres de casa a fazer e esqueceu a presença do instrumento, focando seus esforços nas tarefas que havia deixado pendentes em seu quarto. Terminado os afazeres domésticos, resolveu se concentrar em seus estudos até a chegada de seus pais, ou até que ela mesma caísse no sono, o que aconteceu primeiro.
Ayasaka adormeceu, ao seu lado estava o caderno de anotações que usava na escola, ao lado de seu travesseiro em sua espaçosa cama de duas pessoas. Mesmo sendo filha única, a família Mio possuía uma cama grande, e seus lençóis vinho, aparentemente trabalhados à mão, pertenciam à família há muito tempo. A família Mio era respeitada e prestigiada em Tóquio.
E assim, o primeiro dia escolar de Ayasaka chegou ao fim.