Bevan - O Divino Império - Capítulo 19
Por uma fresta na janela, um homem balançando-se numa rede observava um pátio onde de pouco a pouco várias pessoas estavam se aglomerando. Estava fardado com o uniforme de serviço do exército de Sondom.
O uniforme era definido de acordo com a patente do soldado. O daquele homem era uma calça preta e uma camisa camuflada. Também tinha sua armadura, mas por estar dentro do quartel, não estava usando.
“Droga! Isso não vai ser resolvido com a simples abertura de uma brigada, imbecis”, pensou pressionando as têmporas com a mão.
Enquanto pensava sobre o quão pouco funcional seria a decisão tomada por seus superiores, o homem alisava a insígnia em seu ombro. Tinha muito orgulho dela, principalmente depois de tudo que tinha passado para consegui-la.
— Como conseguem ser tão burros? Ao invés de investir no treinamento e evolução dos milhares de soldados que já servem o exército, eles recrutam mais? Pelo amor d…
Foi interrompido ao ouvir alguém bater na porta de sua sala. Enquanto caminhava até a porta, usava uma de suas habilidades para abrir uma das janelas e organizar minimamente sua sala.
A luz que passava pela janela revelava um homem alto, com um corte de cabelo social e cor preta. Também tinha músculos avantajados.
Na sala inúmeros papéis estavam espalhados pelo chão, livros desorganizados e as cadeiras caídas. Contudo, com o uso de sua habilidade, essas coisas começaram a flutuar e se organizarem.
Após dar oito passos, a sala estava arrumada. Ao menos estava apresentável. Então o homem, enquanto forçava um sorriso, abria a porta lentamente.
— Os candidatos já estão no pátio esperando pelo senhor — falou imediatamente após a porta ser aberta, batendo continência.
— Claro, claro! Já estou indo.
Jogando fora o sorriso que tinha forçado anteriormente, o homem começava a caminhar, com o mais puro tédio estampado em seu rosto. Para ele, aquela situação era tediosa e nem um pouco empolgante.
Ser obrigado a cuidar do recrutamento dos novos soldados era um insuportável, ele odiava aquilo. Ainda mais agora que tinha plebeus no meio deles. Ele sentia um frio na espinha só de pensar em ter de se misturar com aquelas criaturas.
“Puta que pariu! Não vejo a hora de subir minha patente e me livrar desse encargo.”
— É… Sr. Sargento, o senhor não vai levar o material para aplicar os exames?
O homem não parava de andar, mesmo com aquele questionamento. Era desperdício de energia. Não queria fazer isso, achava chato ter que carregar aquelas coisas.
Pensava: “Puta que me pariu! Eu misturei todas aquelas folhas e vai demorar demais procurar elas agora…”
— Por que eu tenho que carregar elas se tem você aqui? Ou vai me dizer que não está com suas cópias?
Olhava por cima do ombro, intimidando-o com os olhos. Mesmo que estivesse errado, não podia admitir. Não se importava de mentir e aplicar punições injustas para não ter que admitir seus erros.
“Ah! Filho da put… Te odeio, desgraçado! Espero que morra! Morra!”
O sargento tinha observado seu subalterno por cima do ombro, mas não tinha parado de andar. Já estava quase chegando ao corredor que o levaria até o pátio, no entanto, devido a uma súbita hostilidade, parou antes de pôr o pé no batente da porta.
— Cabo Fernandes, posso sentir sua hostilidade daqui. É incômoda.
Retrocedeu alguns passos até chegar no garoto, não podia deixar aquilo acabar só com algumas palavras. A hostilidade tinha acabado, agora ele sentia medo de seu superior, ao invés de raiva. Tinha começado a suar e tremer, apavorado, enquanto ele se aproximava.
À medida que o sargento ia chegando mais perto, o garoto também retrocedia alguns passos. Era inevitável. Conhecia muito bem a fama daquele homem e de como ele chegou a seu cargo rapidamente.
— Se for amaldiçoar e xingar alguém em pensamentos, não deixe isso transparecer, Cabo Fernandes. Afinal, se fosse para o outro saber, era mais fácil dizer em voz alta.
Disse aquelas palavras após chegar, num piscar de olhos, ao lado de seu subalterno. Tinha usado uma habilidade de aumento instantâneo de velocidade para isso.
“Ah?! Como isso aconteceu? Ele estava a, no mínimo, um meio e meio de distância… como ele simplesmente apareceu do meu lado?”
O garoto estava muito assustado, e também, surpreso. Não tinha como fugir e, mesmo se tivesse, não conseguia.
— Não, não! Senhor, eu não estava fazendo isso, juro.
O homem estava se esforçando para não sorrir da expressão facial que aquele garoto estava fazendo. Sua afronta era uma transgressão das leis, mas aquilo foi o suficiente como punição.
Já tinha atrasado demais o início dos testes de alistamento, não podia mais postergar por besteiras. Apenas virou-se e voltou a caminhar, segurando-se para não gargalhar antes de chegar ao corredor.
Enquanto isso, Fernandes estava no chão. Tinha caído quando o Sargento disse aquelas palavras ao lado dele. Sua mente estava confusa com toda aquela situação, vários pensamentos fluíam por sua mente e depois desapareciam.
Contudo, um único pensamento perdurava: “Era verdade… Aqueles rumores realmente eram verdade”.
Αγγελος
O vento soprava, carregando folhas por aquele extenso corredor aberto. Continuava sendo um desperdício de energia para ele, mas o espetáculo de antes tinha-o deixado de bom humor.
Entre o barulho que o vento causava e o som de seus passos, ele conseguia ouvir várias vezes. Pareciam alegres, estavam gargalhando. Não podia deixar de animar-se mais ainda pensando em como seria divertido transformar aqueles risos em choro.
“A brincadeira lá parece está divertida… Suponho que alguém está brigando”.
Conforme ia se aproximando, conseguia entender mais claramente o que estava acontecendo. Os gritos e gargalhadas estavam mais claros, eram zombarias e desaforos. Tinha acertado ao supor que alguém estava brigando.
Quando enfim tinha chegado ao fim do corredor e, entrando no pátio, foi surpreendido pelas palavras de algum rapaz no meio daquela multidão.
— Não se preocupe. Você é fraco e prepotente, mas irei te treinar para que se torne um cachorro forte o suficiente para ser útil.
Ouvir aquelas palavras animava-o ainda mais. Ele pensava em quem seria tão cheio de si a ponto de proferir tais palavras e, principalmente, quem poderia ser aquele a quem as mesmas foram ditas.
“As crianças dessa vez parecem ser bem interessantes”.
Continuo caminho depois de ouvir aquilo. Assim, chegou até um palco posicionado à frente do pátio. Era dali onde ele iria passar as instruções dos testes e também anunciar algumas coisas após a finalização dos mesmos.
Antes de gritar, a fim de chamar a atenção dos demais, ele permaneceu alguns instantes em silêncio. Queria ver quem eram os causadores de todo aquele alvoroço. Contudo, arrependeu-se de ter ficado animado com aquilo ao invés de intervir antes.
— Silêncio! — gritou em fúria.
Todos tremeram com aquele grito. Parecia o rugido de uma besta, causava medo. Não foi preciso muito esforço para verem a insígnia em seu ombro e perceberem quem ele era.
— Alguém pode me explicar que merda tá acontecendo aqui?
Mesmo que o sargento tenha feito aquela pergunta, quem ousaria abrir a boca? Os plebeus nem sequer tinham o direito de olhar na direção dos nobres, quem dirá falar. A repressão que podiam sofrer seria inimaginável. Não iam tomar a dor de um desconhecido por nada.
— Você ai, desgraçado! Solte-o imediatamente.
Pietro olhava com desdém para todos. Mesmo quando aquele nobre o importunava, não mudava sua expressão — exceto quando falavam de sua família. Entretanto, aquilo se tornava cada vez mais irritante.
Todo seu plano de se mostrar apenas nos testes e conseguir um bom resultado foi por água abaixo. Desde o início a corporação já demonstrava não se importar muito com meritocracia, e agora Pietro tinha humilhado um nobre. Aquilo com certeza era uma transgressão severa e, com certeza, não sairia impune.
“Que merda! Tudo está dando errado… Que que eu vou fazer se for impedido de me alistar?”
Enquanto pensava em como se livrar daquela situação, recolhia a corda que tinha usado para amarrar seu pescoço. Era mais um dos presentes de Christina e, também, o último.
Era uma pequena corda, do tamanho de um palmo, usada para treinar a mana. Ela não sabia explicar como o objeto era criado, mas garantia sua utilidade. Segundo ela: quanto mais mana fosse injetada na corda, maior ela se tornaria; e puxar a mana injetada de volta para si iria melhorar seu controle.
Ainda segundo ela, a corda era muito resistente e poderia ser usada para outras coisas além do treinamento. Assim como Pietro fez hoje, usando-a para amarrar o oponente. Combinar esse objeto com a habilidade Mestre dos Selos, mostrava-se ser bem efetivo.
Ele estava se distanciando daquele que a pouco era seu oponente, não queria mais ver sua face. Dirigia-se às primeiras fileiras, queria ficar frente a frente com o instrutor e esclarecer a situação.
— Que bom que já entendeu sua situação e está seguindo seu rumo. Suma de uma vez! — ordenou o sargento.
“Como pensei, não vai ser fácil…”, refletiu Pietro.
O garoto dava passos simétricos. Três passos antes de chegar até o oficial, destacando-se do restante da multidão, eleva o braço direito até a cabeça. Estava prestando, de forma perfeita, uma continência.
— Diferente do que estava propondo, não irei me retirar, senhor. Quero me alistar, e tenho certeza que passarei.
O homem cerrou os olhos após ouvir aquilo. Pensava no quão descarado ele era para dizer algo assim, mas logo entendeu que era algo normal se tratando dele. Aquele garoto era quem, poucos minutos atrás, tinha chamado um nobre de cachorro.
— Você tem coragem, garoto.
O oficial apontou um dedo para o nobre, que ainda estava no chão. Não era preciso palavras para entender o que ele estava querendo. Fernandes largou os papéis que estava carregando e foi verificar a situação do homem caído.
— Ele está bem, senhor. Não parece ser nada sério.
O sargento respirou fundo, em alívio, ao ouvir aquilo. Estava preocupado com o que poderia lhe acontecer caso ele tivesse com machucados sérios.
“Isso tirou um enorme peso das minhas costas. Ele provavelmente vai se ferir ainda mais durante os testes, mas aí já não será mais responsabilidade minha”.
Em silêncio, descia do palco e caminhava até o rapaz. Queria mostrar serviço para ele, a fim de tentar fugir de uma punição quase inevitável.
— Você está bem, criança? — perguntou, forçando um sorriso gentil.
— Eu pareço bem, idiota?! — respondeu o nobre da família Samas, levantando-se com esforço.
Quando aquela criança olhou fixamente para o capitão, ele o reconheceu. Era o idiota do segundo filho da família Samas, alguém que não merecia o título e o respeito de um nobre. Mesmo se fosse tratado como um plebeu, ainda era muito para ele.
— Parece que sim — falou enquanto se levantava, trocando o sorriso gentil que tinha por um semblante severo.
“Vou fazer aquele desgraçado pagar por isso. Plebeu filho da puta!”
O sargento caminhava de volta ao palco enquanto pensava em como resolver aquela situação. Só expulsar os dois não resolvia o problema, muito pelo contrário, somente criava outros.
— Eu vou decidir a punição de vocês depois. Já estamos atrasados demais, vamos começar imediatamente os testes do alistamento — ordenou o sargento.