Caçador de Feitiços - CAPÍTULO 2 - SONHOS
Como foi que tudo isso aconteceu?
— Jack! Jack! Acorda! — a voz urgente de Erik rasgou a escuridão, tirando-o do pesadelo
ardente.
Com um sobressalto, Jack abriu os olhos, ofegante, o coração batendo como um tambor
dentro de seu peito. O suor escorria pelo seu rosto, deixando-o grudado aos lençóis da
pequena cama. Ele piscou, tentando afastar as imagens de fogo e destruição que ainda
dançavam em sua mente. Ao seu lado, seu irmão mais velho, Erik, estava ajoelhado, o
olhar de preocupação gravado em suas feições.
— Você teve aquele sonho de novo, não foi? — perguntou, sua voz suavizando com um
toque de compaixão.
Jack assentiu, ainda sentindo o calor das chamas, mesmo sabendo que tudo não passava
de um sonho. Ele sentou na beirada da cama e esfregou o rosto com as mãos, tentando se
livrar da sensação opressiva. O pesadelo era um visitante frequente em suas noites, e cada
vez parecia mais real, mais desesperador. Seu irmão sabia disso, e o olhar de tristeza em
seu rosto dizia que ele queria fazer algo, mas não sabia como ajudar.
— Era o vilarejo de novo? — Erik perguntou, sentando-se ao lado de Jack.
Jack assentiu mais uma vez, sem palavras. Ele podia ouvir os gritos, sentir o cheiro de
fumaça e ver o céu iluminado pelas chamas. Tudo parecia tão vívido.
— Só um pesadelo, Jack — disse suavemente. — Apenas um sonho ruim. Está tudo bem
agora.
Jack queria acreditar nisso, mas algo dentro dele dizia que aqueles sonhos eram mais do
que apenas fruto de sua imaginação. Havia algo sombrio e poderoso por trás deles, algo
que ele não conseguia entender.
Erik levantou-se e estendeu a mão para o garoto.
— Vamos lá, levante-se. Já está na hora do café, e você sabe como Sam fica quando
estamos atrasados.
Jack soltou um suspiro e aceitou a mão do irmão, deixando-se puxar para fora da cama. Ele
pegou suas roupas gastas e vestiu-se rapidamente. Erik saiu do quarto, e o garoto o seguiu
logo atrás, os dois descendo as escadas de madeira rangente que levavam ao andar de
baixo da taverna. O cheiro de pão fresco e carne assada enchia o ar, e o barulho de vozes
baixas e risadas vinha do salão principal.
O velho Sam estava atrás do balcão, suas sobrancelhas grossas franzidas em uma
expressão de desgosto. Quando viu Jack, seus olhos estreitaram-se ainda mais, como se
ele já soubesse que estava prestes a se irritar.
— Finalmente decidiu aparecer, moleque? — resmungou Sam, balançando a cabeça. — Se
dependesse de você, essa taverna ia à falência em um piscar de olhos.
Jack sorriu, um brilho travesso nos olhos.
— Relaxe, vovô. Você sabe que a gente sempre dá conta do recado. Além do mais, você
nem paga a gente mesmo. E seus poucos funcionários foram embora por causa do seu
temperamento, digamos que, complexo.
Sam bufou, cruzando os braços sobre o peito.
— E quem precisa de vocês, afinal? — Ele lançou um olhar fulminante para Jack, mas a
boca retorcida sugeria que ele sabia que o jovem tinha razão.
— Você precisa — respondeu Jack, piscando. — Afinal, se não fosse por nós, você teria de
atender os clientes sozinho, e todos sabemos que você é mais rabugento que um urso com
dor de dente. Não é mesmo, Erik?
Erik riu, balançando a cabeça.
— Vamos, irmão. Não provoque o Sam logo de manhã.
Jack riu, mas havia uma brincadeira subjacente. Ele sabia que Sam, por mais rude que
fosse, se importava com eles.
Erik e Jack começaram a manhã como de costume, preparando café para os primeiros
clientes da taverna. O aroma do café recém-passado preenchia o ar, misturando-se com o
cheiro de pão fresco e carne assada. Era um dia de folga, então eles só precisariam
trabalhar até o meio-dia. Depois disso, poderiam aproveitar o resto do dia para si mesmos,
longe das exigências do rabugento Sam, o dono da taverna.
Quando finalmente terminaram de atender os clientes, Erik se sentou à mesa com um
brilho evidente no olhar, enquanto Jack parecia apenas buscar um momento para
descansar.
— Você tá estranho hoje — comentou, observando a inquietação de Erik. — O que
aconteceu? Você nem consegue ficar sentado.
Erik riu, quase como se não pudesse conter a empolgação.
— Jack, em duas semanas eu finalmente vou realizar meu sonho! Vou me juntar aos
Paladinos! — ele exclamou com a voz cheia de entusiasmo.
Jack ergueu uma sobrancelha, claramente não entendendo a empolgação. Para ele,
aquilo tudo parecia uma grande perda de tempo. A simples ideia de se alistar em uma
ordem de guerreiros, soava mais um fardo do que uma oportunidade, viajar por aí e
enfrentar perigos, não fazia sentido algum.
— Paladinos? — Jack murmurou, tentando parecer interessado. — Eles pelo menos
pagam bem?
Erik riu, balançando a cabeça.
— Não é por dinheiro ou fama, Jack. É pelo que eles fazem. Eu quero proteger as
pessoas, ser um herói. Os Paladinos são mais do que soldados. É sobre fazer a
diferença, entende? Eles são a espinha dorsal da ordem e da paz do reino. Quero
fazer parte disso.
Jack não pôde evitar revirar os olhos, achando aquele discurso de nobreza uma
verdadeira bobagem. Para ele, heroísmo e sacrifício eram apenas palavras bonitas
que adultos usavam para justificar os riscos.
— Mas por que você tem falado tanto disso ultimamente? — perguntou, sua voz
carregada de tédio. — Achei que fosse algo que você já estava planejando há tempos.
Erik assentiu, mas dessa vez havia um tom mais sério em sua voz.
— Sim, mas… agora as coisas mudaram. Para me alistar, não basta só querer. O
alistamento não ocorre aqui em Vinterhavn. Nosso vilarejo é muito pequeno, não tem
centro de triagem para Paladinos — Erik explicou, inclinando-se um pouco mais para
frente, como se quisesse compartilhar um segredo. — Vou ter que ir direto à capital
real, para fazer a inscrição. Fica a dias de viagem daqui. Só lá eu poderei realizar a
triagem e, se passar, começar o treinamento.
O garoto franziu a testa. A capital ficava muito distante, e ele sabia que o transporte
até lá não seria nada fácil. Viagens longas de cavalo eram cansativas, e, em um
território onde as estradas eram controladas por bandos de criminosos, até
perigosas.
— E como você vai chegar até lá? — Jack perguntou, sem esconder a preocupação.
— É uma viagem longa, e você sabe o quão ruim são essas estradas.
— Eu já pensei nisso — Erik respondeu, empolgado. — A caravana de comerciantes
sai daqui em uma semana. Eles fazem essa rota direto para Nortil. Vai demorar quase
uma semana de viagem, mas eles conhecem todas as paradas seguras no caminho e
têm guardas. Eu posso ir com eles.
Jack não pôde evitar se sentir aliviado ao ouvir isso. Embora achasse a ideia de seu
irmão se tornar um Paladino uma bobagem, ele não gostava da ideia de ele estar
viajando sozinho por aquelas estradas perigosas.
— Certo, mas o que os Paladinos realmente fazem? — Jack perguntou, mais por
curiosidade agora, querendo entender de onde vinha todo o entusiasmo do irmão.
Os olhos de Erik se iluminaram, como se estivesse esperando essa pergunta há
muito tempo.
— Os Paladinos não são apenas guerreiros, Jack. Eles têm permissões especiais.
Eles podem entrar em áreas restritas, acessar informações que ninguém mais pode.
São como uma elite do reino. Se eu passar na triagem, sou aceito como novato no
mesmo dia e já começo o treinamento. A partir daí, posso ser enviado em missões
oficiais, proteger as fronteiras, e, quem sabe, um dia ser nomeado Paladino de alto
nível! — ele falou com tanta paixão que por um momento seu irmão quase se deixou
levar pelo entusiasmo.
Jack estava claramente perdendo o interesse na conversa. Ele bocejou e quase
cochilou enquanto ouvia Erik falar sobre triagem, alistamento e centros de
recrutamento. O jovem estava tão imerso em seu entusiasmo que nem sequer notou a
falta de atenção de seu próximo.
Mesmo entediado, sorriu de lado, ainda não completamente convencido, mas era
impossível não admirar o brilho nos olhos do irmão.
— Parece que você já decidiu que vai passar, então — Jack comentou, um toque de
sarcasmo em sua voz.
— Tenho certeza de que vou passar — respondeu com firmeza, quase como se a
possibilidade de falhar fosse inexistente. — Este é o meu sonho. Eu sei que sou
capaz.
Jack observou o irmão por um momento, percebendo o quanto aquilo realmente
significava para ele. Embora não compartilhasse da mesma paixão, Jack sabia que
Erik estava determinado a trilhar aquele caminho.
— E você, Jack? — Erik perguntou, mudando de assunto e encarando o irmão mais
novo com um olhar curioso. — O que você vai fazer? Já pensou no futuro?
Jack ficou em silêncio por um momento. Ele nunca tinha parado para pensar
seriamente em seus próprios sonhos. Erik sempre tinha uma visão clara do que
queria, mas Jack sempre foi mais… livre.
— Eu só quero uma vida tranquila, sem muita complicação — respondeu, dando de
ombros. — Se eu puder ficar rico sem esforço, melhor ainda. Mas não tenho esse
desejo de salvar o mundo.
Erik sorriu, entendendo a diferença entre eles.
— Você devia ir comigo para Nortil. A capital é enorme, cheia de oportunidades.
Aposto que você encontraria algo interessante lá. E, quando fizer 18 anos, quem
sabe? Você também poderia se alistar, e quem sabe nos tornamos companheiros.
O jovem apenas riu.
— Eu vou com você, mas a parte de ser Paladino é toda sua — ele respondeu. — Eu
tenho certeza de que encontrarei outra coisa que seja mais a minha cara.
Erik riu, satisfeito com a resposta. Saber que seu irmão iria com ele já era o bastante.
Eles sempre foram próximos, e a ideia de deixar seu irmão mais novo para trás o
incomodava.
— Isso é tudo que eu precisava ouvir, irmão — Erik disse, sua voz cheia de carinho.
O silêncio da taverna foi interrompido por batidas insistentes na porta, seguidas de
um murmúrio exasperado de Sam, o dono do local. Ele olhou para a placa na entrada,
onde claramente se lia “Fechado”.
— Será que esse cara não sabe ler? — Sam resmungou, enxugando um copo com o
pano surrado.
Mais batidas, dessa vez mais fortes.
— Olha só, se você não for um pedinte querendo comida ou um garçom querendo
emprego é bom cair fora. — Sam estava claramente irritado com a situação.
Nada adiantou.
— Tá bom, tá bom! Já vou abrir, droga! — Sam rosnou, movendo-se em direção à
porta com passos pesados.
Quando finalmente abriu a porta, a figura que se revelou era quase um espectro de
carne e osso. Um velho magro, de pele pálida, quase translúcida, e olhos afundados
em órbitas cansadas.
Seu rosto estava vincado por rugas profundas, e seus cabelos grisalhos se
estendiam em mechas desalinhadas que escapavam debaixo de um chapéu
encardido. A barba longa e desalinhada, amarelada em algumas partes, pendia em
nós.
O velho trajava um manto gasto, quase esfarrapado, com adereços de couro e
algumas contas coloridas, conferindo-lhe uma aparência que lembrava os ciganos
errantes das estradas. O cheiro que emanava dele era uma mistura de suor, álcool
velho e fumaça, que fez Erik torcer o nariz.
— O que você quer, velho? Estamos de folga, não tá vendo? — Sam falou com
impaciência.
— Eu… eu preciso de álcool. Agora! — o velho disse, sua voz rouca, quase
implorando, enquanto suas mãos magras tremiam levemente.
Sam suspirou, passando a mão na testa.
— Se tá atrás de bebida, vai ter que procurar em outro lugar, meu amigo. Hoje
estamos fechados.
— Vocês… já ouviram falar deles? — o velho perguntou de repente, ignorando a
negativa de Sam. Ele se inclinou para frente, seus olhos arregalados, refletindo uma
loucura incômoda. — Os demônios… estão por aí, nas sombras… esperando… — Sua
voz era um sussurro conspiratório.
— Ah, lá vamos nós de novo com essa baboseira… — Sam começou, mas foi
interrompido por Jack, que, curioso, havia se aproximado com um sorriso astuto.
— Demônios, é? — Jack disse, pegando um baralho de cartas do balcão. — Tá certo,
velho. Mas que tal fazermos uma aposta? — Jack falou casualmente, embaralhando
as cartas de forma quase preguiçosa.
— Que tipo de aposta? — o velho perguntou, desconfiado.
— Se eu adivinhar a carta que você escolher, você promete que vai procurar sua
bebida em outro lugar e nos deixar em paz. Que tal? — Jack propôs, um brilho
travesso nos olhos.
Sam olhou para Jack como se ele tivesse enlouquecido, mas Erik, conhecendo o
irmão, esboçou um leve sorriso de antecipação. O velho coçou a barba, desconfiado,
mas acabou cedendo.
— Tá bem, garoto… se você adivinhar, eu vou embora — o velho disse, pegando uma
carta do baralho que Jack estendia à sua frente.
O garoto observou o velho por alguns segundos, seus olhos afiados atentos a cada
mínimo movimento. Ele percebeu como as mãos do velho tremiam levemente e como
ele olhava fixamente para a carta escolhida, um dois de espadas. Com um sorriso
quase imperceptível, Jack começou o interrogatório.
— A carta que você escolheu tem um número? — Jack perguntou, cruzando os
braços.
— Tem… — o velho respondeu, seus dedos amarelados segurando a carta com
firmeza.
— Hmm… é uma carta preta? — perguntou, sem quebrar o contato visual.
— Sim… é preta — o velho murmurou, seu olhar nervoso, mas curioso.
— Certo, então não é de copas nem de ouros — falou para si mesmo, analisando as
opções restantes. — Ela tem um valor baixo? Tipo, menor que cinco?
O velho hesitou por um instante, antes de responder.
— Sim… menor que cinco.
Jack sorriu. Ele estava perto.
— Ok, vovô… última pergunta. Sua carta… é uma espada? — ele disse, com uma
confiança tranquila.
O velho ficou tenso por um momento, seus lábios tremendo. Ele olhou para a carta e,
em seguida, para Jack. O garoto tinha acertado.
— Como você…? — o velho começou, mas Jack o interrompeu com um sorriso
vitorioso.
— Dois de espadas, acertei? — ele disse, mais como uma afirmação do que uma
pergunta.
O velho não podia negar. Ele balançou a cabeça lentamente, surpreso e resignado.
Sam e Erik, que tinham observado a cena com atenção, trocaram olhares
impressionados, mas sabiam que era típico de Jack sair por cima nessas situações.
— Você… você tem um talento… garoto. — O velho disse com um sorriso amarelado e
sinistro. Ele se levantou com dificuldade, ajeitando as dobras de seu manto
esfarrapado. — Mas cuidado, o que está lá fora… é mais perigoso do que qualquer um
imagina. — Seus olhos brilhavam com um toque de insanidade enquanto ele
sussurrava essas palavras.
— Esse aí tem sérios problemas… — Sam sussurrou, sacudindo a cabeça.
Erik olhou para Jack, ainda sorrindo, mas havia uma sombra de preocupação em seu
rosto.
O velhos se virou para ir, porém antes resolveu exprimir algumas palavras em voz
alta:
— O caminho até seus sonhos pode ser perigoso, cuidado aonde estão indo garotos,
a estrada até a capital é bem perigosa.
Os irmãos se encararam por um instante
Sem esperar por resposta, o velho cigano deixou a taverna, as portas batendo
levemente atrás dele.
Como ele sabe?