Carnaval no Abismo - Capítulo 25
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- Capítulo 25 - A Complexidade de uma Amanda Hipnagógica (1)
— Olá, eu mesma. Fico feliz em saber que decidiu participar da minha aula. Está preparada para encher a sua cabeça com conhecimento?
Isso só pode ser brincadeira, né?
— Perdoe-me, mas não acho que alguém inútil feito você tem algo de útil para transmitir.
— Que grosseria! Bem, confesso que não será exatamente uma aula. Afinal de contas, o nosso ambiente atual não parece nada com uma escola. Está mais para um hospício. — Deu um sorriso travesso, cheio de intenções ocultas. — Lembra de quando se encontrou com o garoto anjo para ouvir o desabafo dele? Pois é exatamente isso que planejo fazer com você nesta linda manhã. Ouvi-la resmungar, falar mal de tudo e todos. Resumindo, seja apenas a mesma babaca de sempre, achando-se a última bolacha do pacote, abusando do seu ego e hipocrisia para atacar e se defender. Manipule-me e apunhale-me com as suas palavras cruéis!
— Ei, calma aí! Eu ajo mesmo desse jeito escroto?! Se sim, isso não me torna uma grande filha da puta?!
— Uou! Já pode descer os créditos, editor! Não tenho mais nada pra ensinar aqui! He, he… É tão conveniente conversar com alguém que saca as coisas rapidamente.
— Oh, céus! Literalmente, do nada, isso aqui virou um tiroteio de ironias! Mulher, sou obrigada a me ajoelhar perante a sua grandiosidade. Parece que você é tão filha da puta quanto eu, meus parabéns.
Recebi uma longa risada debochada em resposta. Estou realmente espantada com a quantidade de falsidade que ela consegue exprimir com uma ação tão simples.
— Okay, antes de mais nada, vamos estabelecer os termos do nosso encontro. Como você já deve ter notado, faremos uma sessão psiquiátrica. Eu serei a mulher gostosa com um gravador de voz retrô, e você, a pobre coitada chifruda com uma vida de merda.
— Certo, certo… Mas antes de começarmos, apenas me dê alguns segundos para poder colocar todos os pingos nos is porque não estou entendendo nada do que está acontecendo aqui.
— Fique à vontade.
Tá, respire fundo e pense.
Acho que estou alucinando.
Não, corrigindo, enlouqueci de vez.
Na minha frente, sentada numa poltrona com as pernas cruzadas, está uma adulta de cabelos castanhos curtos, feição arrogante e terninho. Um rosto bem difícil de esquecer, até porque nós duas somos completamente idênticas. Literalmente, a mesma pessoa.
Esta aberração é um fantasma que a minha imaginação perturbada criou: uma Amanda-reversa.
— Preparada? Começarei fazendo algumas perguntas aleatórias, tudo bem? Apreciaria muito se você as respondesse com sinceridade.
— E adiantaria alguma coisa ficar mentindo pra mim mesma? Só manda bala, pei, pei.
— Primeira pergunta: como chegou ao ponto de alucinar consigo mesma?
Sem conseguir me conter, comecei a bater palmas com fervor.
— Uou! É chegada a hora de desvendar este grande mistério?! Então, só bora, Scooby-doo! — Apoiei minha mão no queixo e franzi o cenho. — Deixa apenas eu colocar os meus três neurônios pra funcionar. O que criou você? Como diabos enfiei o pé na jaca?
Certo, teve aquele acidente de carro envolvendo as…
Hum? Qual era o nome delas mesmo? Ah, dane-se, sei lá. Se não lembro quem eram, não deve ter sido um evento importante.
— Até porque sou completamente imune a tragédias! A rainha sem coração que não se importa com nada nem ninguém! O diabo que consegue ter uma vida plena e feliz mesmo em um mundo onde nada mais existe! Há, há, há! Acha mesmo que algumas crianças machucadas são suficientes pra me fazer sofrer?! Claro que não! — Apoiei minhas mãos na cintura e fiz pose. — Puta merda, eu sou foda demais, não concorda?!
Já que não foi isso, talvez tenham sido os docinhos do frasco branco que encontrei no armário do banheiro…
Nah! Lembro que no passado eu era uma verdadeira gourmet de Ritalina e nunca tive grandes problemas.
— Ah, já sei! Obviamente, foi o fato de eu ter misturado lactobacilos vivos com Velho Barreiro! Você, mulher irritante e desagradável, deve ter nascido após um arroto que dei.
Minha alucinação também bateu palmas com vigor antes de prosseguir.
— Tem ideia de quantos dias já se passaram desde que se trancou nesta casa?
— Três? Quatro? Sei lá, e quem se importa? Estou em um excelente lugar com uma cama foda, papel higiênico de boa qualidade e grande quantidade de câncer industrializado no freezer. Por acaso, preciso de algo mais pra continuar vivendo?
Se bem que será necessário sair muito em breve para comprar mais água que passarinho não bebe.
— Se gosta tanto daqui, não acha que deveria ter um pouco mais de zelo?
Observando com cuidado os meus arredores, tudo o que vejo são garrafas vazias espalhadas pelo chão e bandejas de alimentos sobre os móveis. Um paraíso para todos os tipos de pestes que espalham doenças.
Hum… Realmente, eu deveria cuidar mais do cafofo que invadi sem permissão e tomei para mim. A não ser que pertença a algum político exonerado. Pois se for, farei questão de transformá-lo no próximo Lixão da Estrutural.
— É em momentos como este que eu agradeço ao misterioso criador do nosso mundo por ter dado um fim em todas as baratas.
Reparei também nas minhas vestimentas. Sinceramente, acho que ninguém teria coragem de casar comigo se me visse neste estado lamentável.
— Sua cara nojenta praticamente me obriga a fazer essa pergunta. Está se sentindo bem? Parece estar prestes a entrar em colapso. — Meu clone das sombras cuspiu o óbvio.
— Talvez, seja a falta de sono?
— Ou, quem sabe, a porcaria da cerveja de terceira que tem tomado ultimamente.
— Há! Se a minha cara te incomoda tanto, deveria distorcer a sua visão com uísque sem gelo, senhora. É um indutor de alucinação testado e aprovado por mim mesma. — Cambaleei até a adega e peguei duas taças. Depois, as enchi com o líquido vermelho da primeira garrafa que meus dedos trêmulos encontraram. — Ei, que tal deixarmos a nossa conversa ainda mais divertida com um entretenimento super educacional?
— Que seria?
— Simples. A partir de agora, toda vez que você falar alguma merda, tomarei um shot. Então, caso eu acabe tendo uma overdose, a culpada será você.
— Nossa, isso é genial! Significa que caso você acabe morrendo, não irá diretamente para o Inferno por ter cometido suicídio. Na verdade, eu que irei por ter assassinado você! — Fez o gesto do seu cérebro explodindo. — Isso que chamo de mind-blowing!
— Não é?! Por isso, tente não cuspir muita porcaria a partir de agora. — Entreguei uma das taças para a outra eu. — E não é que você consegue mesmo segurar as coisas?! Que medo! Espero que eu esteja sonhando, pois se não estiver, tem um fodendo objeto flutuando bem no meio do nada. — Puxei uma cadeira e sentei na frente dela. — Concluindo. Toda vez que um dos seus argumentos falhar em me convencer, você que tomará um shot.
— Saquei! O importante é nós duas terminarmos abraçadas de conchinha numa grande poça de vômito no final do dia. — Ela deu uma risada travessa e ergueu sua taça. — Vamos nessa! Não é como se um fantasma tivesse algo a perder.
— Ótima resposta. Talvez, você seja o meu diabinho, e não o anjinho, afinal de contas. — Também levantei a minha taça e brindamos. — Fique à vontade pra começar.
— Vamos ver… Primeiramente, por quanto tempo continuará fingindo que não se sente culpada? Lembra daquelas crianças que você abandonou sem dar explicações? Logo após um desastre que, com certeza, as abalou emocionalmente? Elas precisavam do seu apoio e, mesmo sabendo disso, você escolheu fugir e se esconder feito a mais nojenta das covardes. Pensa que os seus alunos são monstros que podem te devorar a qualquer momento? Se acha isso, preciso informá-la que o único monstro que existe por aqui é você mesma, alguém que foi incapaz de protegê-los dos perigos e do sofrimento.
— Nossa, nossa, nossa! Essa foi de foder! — Agi como se tivesse sido apunhalada bem no estômago. — Pensei que você guardaria a sua melhor arma para o final, mas toma ela aí! Pei, pei!
— Então? As minhas palavras conseguiram te abalar pelo menos um pouquinho? Pretende parar com toda essa palhaçada e retornar de vez para a realidade?
— Nah! Sinceramente, a sua jogada até que foi inteligente, entretanto, também foi patética e cringe. Tomarei essa em nome da vergonha alheia que foi vê-la atuando. Deveria virar streamer. — Virei o copo de uma só vez, atitude que resultou em uma bela careta. — Agora, como o seu argumento idiota não funcionou, chegou a sua vez de beber.
— Tintim.
Ela também tomou tudo de uma só vez. Fez uma careta igualzinha à minha.
— Ei, a maneira como você falou tudo aquilo fez parecer que estou me vitimizando. Entendi errado? Se não, gostaria que se explicasse.
— Qual é? Você está agindo feito aquelas adolescentes mimadas que não param de reclamar da vida na Internet, dizendo que são feias, que ninguém se importa com elas, que o papai não lhes deu o novo iPhone e, por isso, vão fugir de casa. Se fazendo de pobres coitadas com o objetivo de receberem apoio de outras garotas igualmente patéticas e dos moleques que só apoiam na esperança de conseguirem sexo em troca. — Fez cara feia e começou a falar igual uma velha fofoqueira imitando a voz de outra pessoa. — Uah, olhem pra mim! Venham, venham logo! Preciso que masturbem o meu ego nojento e fedido! Sei que estão sofrendo, mas saibam que estou sofrendo bem mais que vocês, tá?!
— Há, há! Pare de me elogiar, por favor! Está me deixando encabulada!
Rimos juntas, enchemos novamente as taças e viramos ao mesmo tempo.
— Ugh! Que gosto de merda! — Comentei. — Caramba, é sério que preciso de alguém pra me dar lição de moral? Sei muito bem onde estou errando. Por isso, acredito que ter alguém esfregando o óbvio na minha cara não passa de uma tremenda perda de tempo.
— Qual é? Pare de ser ridícula. Você não é o tipo de pessoa que faz as coisas por vontade própria. Por mais que seja a coisa mais óbvia do mundo, sem um bom esporro, continuará trancafiada aqui por muito tempo, sofrendo sozinha, acumulando arrependimentos até que, finalmente, esquecerá a felicidade que experimentou nos últimos dias. Se tornará uma mísera casca vazia como era na infância.
— Em vez de encarar os erros, não é bem mais simples fechar os olhos e ignorar todas essas coisas tediosas até o esquecimento? Você sabe o quanto odeio coisas tediosas.
— Quando cuidar daquelas crianças foi tedioso, sua idiota? Você poderia ter fugido dessa responsabilidade desde o início, mas por que não o fez? Por que aceitou tão facilmente a proposta da diretora?
— Fui forçada a aceitar…
— Não foi! Coloque esse fato dentro da sua cabeça de uma vez por todas! Quando entrou naquela sala de aula, aceitou de bom grado o dever de cuidar daquelas crianças até o mundo voltar aos eixos. Tornou-se sua responsabilidade ser o pilar de apoio delas.
— Que se fodam as crianças! Em nenhum momento pedi para conhecê-las! Melissa é a única culpada por empurrar tanta desgraça pela minha goela sem o meu consentimento! Se ela não tivesse ido atrás de mim, não estaríamos tendo essa conversa! — Ergui a minha taça bem alto. — Você, com certeza, vai me pagar por tudo isso, diretora! Estou brindando a minha futura vingança!
Após uma longa risada forçada da minha ilusão, fomos abruptamente transportadas para um novo ambiente. As paredes e o teto desapareceram, abrindo espaço para um vasto matagal e o céu escuro da madrugada. À minha esquerda, encontra-se o corpo retorcido, pulsante e desfigurado de Hillary, enquanto à minha direita Keyla está em pedaços no meio dos destroços de um carro em chamas.
Em ambos os lados, há mais sangue que o meu estômago consegue suportar, obrigando-me a tapar minha boca com ambas as mãos para conter o vômito.
— E-elas não estão mortas! Pare de distorcer a realidade, sua desgraçada!
— E como pode ter tanta certeza? Enquanto você fugia e se escondia, os corações delas podem ter parado de bater. Provavelmente, agora mesmo, estão jogando terra sobre os corpos das duas.
Ao desviar meus olhos dos cadáveres, deparo-me com uma Amanda completamente banhada pelo sangue das minhas alunas, ostentando um sorriso extasiado no rosto. Notando o meu olhar, ela fez questão de usar a língua para provar um pouco do líquido que escorre próximo à sua boca.
Essa cena foi mais que o suficiente para expulsar do meu estômago tudo o que eu venho ingerindo nessa tentativa desesperada de esquecer o passado.
— Já chega… — Sussurro sofridamente para a mulher diabólica e inabalável na poltrona. — Tire-me deste lugar…
— Ué? Qual é o significado dessa expressão toda franzida? É mesmo o rosto de alguém que não se importa?
— Desfaça isso! — Grito com toda a minha força.
— Tá bom, tá bom! Não fique brava!
Satisfeita por finalmente ter destruído o meu psicológico, minha outra metade também destruiu a ilusão, transportando-nos de volta para a grande sala bagunçada da qual, provavelmente, nunca saímos de verdade.
— Isso foi muito covarde até para os seus padrões. — Comentei enquanto me esforço para retomar o controle das minhas emoções.
— Um brinde aos covardes, então?
Ainda coberta pelo sangue das minhas duas alunas, a maldita ergueu sua taça bem alto, comemorando a sua primeira vitória.