Carnaval no Abismo - Capítulo 26
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- Capítulo 26 - A Complexidade de uma Amanda Hipnagógica (2)
Da mesma forma que existem pessoas que espancam as outras e aquelas que só apanham caladas, também existem as que ajudam e as que apenas ignoram tudo friamente.
No meu caso em particular, sempre busquei a vida mais neutra possível, fugindo de qualquer envolvimento pessoal e emocional que pudesse cortar as minhas asas e tornar o meu futuro imprevisível. Trancada na minha pequena casa, estava protegida de eventuais traições, despedidas dolorosas e cicatrizes que pudessem marcar, ainda mais, a minha história.
Na falta de um relacionamento tangível, mantinha a minha solidão sob controle utilizando amizades virtuais. Conversava, debatia, discutia e ria durante horas. E quando saciava essa sede de envolvimento, bastava me despedir e puxar a tomada.
Simples assim.
Já que todos os rostos pixelizados são abstratos, não existe a dependência viciante que apenas um toque físico pode provocar, e, tampouco, a troca de sentimentos que marca inconscientemente a nossa carne com um ferrete.
Podemos usar uma simples caminhada com o nosso amigo de infância como exemplo. Por mais simples que seja, as conversas, as brincadeiras, todas as risadas, transmitirão sensações e prazeres que ficarão gravadas na nossa memória por muito, muito tempo. A peculiaridade de viver que uma máquina ainda não consegue reproduzir.
Diferente de interações desse gênero, apagar memórias construídas com o auxílio de meios artificiais é tão simples quanto destruir um diário rabiscado em uma fogueira. Contanto que você tenha a capacidade de diferenciar o virtual da realidade, nada é cem por cento verdadeiro, tudo é mutável, nada é para sempre.
O mundo dentro da minha bolha era, basicamente, isso.
A solidão podia ser esquecida ao focar na trama de um bom filme. Toda a mágoa ou angustia precisava de apenas algumas horas de sono para ser esquecida. Ninguém no meu paraíso tinha a autoridade de me trair, pisar nos meus sentimentos ou me fazer derramar uma lágrima sequer.
Todo dia era uma página em branco, sem um passado para me derrubar ou um futuro para me deixar apreensiva. Só precisava me preocupar com o quanto eu conversaria, gritaria e sorriria até o momento de adormecer. Certamente, era uma felicidade curta, entretanto, garanto que era bem mais verdadeira que a de muitas pessoas por aí.
— Estou surpresa que consiga chamar algo superficial assim de vida. — Minha ilusão comentou. — As memórias são aquilo que nos definem como seres humanos, sabe muito bem disso. Quando chegar o momento de partir dessa vida, você sequer terá o direito de afirmar que a sua passagem pela Terra valeu a pena. Ninguém se orgulharia de ter gastado todos os seus dias apenas respirando.
— Mas também não estou correndo o risco de lamentar a vida que tive. Imagine alguém no leito de morte que experimentou apenas fome, miséria e desgraça durante todos os seus dias, deitado na cama fria de um hospital público. Por acaso, essa pessoa agradeceria a Deus por ter vivido? Óbvio que não. Seu único desejo seria morrer ainda mais depressa pra se livrar de tanta agonia. Não concorda que a minha escolha, por mais covarde que seja, também é a mais sensata?
Quase duas garrafas de uísque depois, nós duas já estamos esgotadas demais para fazer qualquer tipo de piada. Todo o nosso veneno e arrogância já acabaram faz tempo, restando apenas uma longa guerra de palavras vazias que, aparentemente, nunca terá um fim. Afinal, nós duas somos a mesma pessoa. As mais cabeças duras que poderiam existir, incapazes de admitir uma simples derrota.
— Está afirmando que durante esse tempo que passou experimentando relacionamentos de verdade, não ganhou nem uma única boa memória que te fará sorrir no futuro? Continuará insistindo que não sente nada pelos seus alunos mesmo depois de tudo que passaram juntos? Após você mesma admitir que a solidão já tinha começado a te incomodar?
— Por quanto tempo continuará repetindo exatamente a mesma coisa? Está parecendo aquelas pessoas que fazem spam de textos motivacionais, fingindo serem bons samaritanos. — Derramei um pouco do líquido da minha taça apenas para ouvir o barulho dele se chocando contra o piso. Depois, tomei o que restava. — Blá, blá, blá, você é uma pessoa importante. Blá, blá, você é tão maravilhosa. Méh, méh, momentos incríveis ainda aguardam por você, então, não desista!
— Como o esperado da grande Amanda Muniz, sempre menosprezando a generosidade dos outros.
— Generosidade?! Aonde?! — Gargalhei bem alto. — Qual é?! Ninguém fica feliz após ler mensagens robóticas de completos estranhos. Há, há, olhe pra mim! Não irei me matar agora porque alguém no outro lado do monitor me mandou um lindo texto cheio de glitter que, provavelmente, copiou de outro post. Calma aí, vou até compartilhar com mais um monte de pessoas aleatórias pra evitar que elas pulem na frente de um caminhão! Quem sabe, não consigo bater o meu recorde de cem curtidas no processo?!
Meu outro eu suspirou pesadamente.
— Sério que não resta nenhuma pureza no meio de toda essa sua podridão?
— Nem mesmo um fragmento. Estou corrompida até os ossos. Inteiramente podre.
Cristo, como eu a odeio.
Odeio a pessoa que me tornei.
Enchi o copo novamente, mas para a minha surpresa, o simples pensamento de ingerir mais uma gota sequer bagunçou novamente o meu estômago.
Ah, sim… Este gosto amargo preso na garganta resume bem quem sou. Nada mais que um grande saco de vômito.
— Conhecê-los não marcou a sua vida nem mesmo um pouco? — Pela primeira vez desde que tudo isso começou, minha ilusão se levantou da poltrona e veio até mim. — Você não se considera um pouco mais humana por estar sofrendo tanto por pessoas que nunca desejou conhecer?
— Claro que não! Continuo sendo uma monstruosidade! Uma pessoa que não hesita em machucar os outros quando precisa machucar! Alguém que trai toda vez que acha conveniente trair! Uma criatura nojenta que magoa sem se importar com aqueles que magoará!
— Então, por que continua fazendo essas coisas mesmo sabendo que sentirá dor depois?
— Porque me sinto ainda pior quando tem outros interferindo na minha vida, influenciando os passos que dou, dizendo-me o que devo fazer. Sinto-me corrompida, suja. — Dessa vez, derramei toda a bebida. — Após colocar a bondade e a maldade na balança, escolho ser aquela que usa os meios desprezíveis pra manipular as pessoas e situações que me cercam. E caso eu acabe falhando, como aconteceu dessa vez, tornarei a correr para que não notem o quão patética fico quando as coisas fogem do meu controle.
Me esconderei no escuro e sofrerei em silêncio. Mais ninguém no mundo, além de mim mesma, tem o direito de presenciar isso.
— Não acho patético dividir um pouco do seu sofrimento com os seus amigos.
— Pode até não ser, mas a ideia de mostrar quem sou por dentro nunca me agradou. Recuso-me a mendigar ajuda.
— Será tão prejudicial assim revelar um pouco dos seus verdadeiros sentimentos?
— Veja bem, ao escondê-los, estou privando os outros da obrigação de sentirem pena de mim. Diferente do que você afirmou, não acho que estou me vitimizando, implorando por atenção. Apenas não gosto de quando mentem para levantar a minha astral. Também não suporto a ideia de expor as minhas fraquezas para pessoas que podem muito bem utilizá-las como armas no futuro.
Meu outro eu acenou com a cabeça, satisfeita com a minha sinceridade.
— Acredito que agora você está pronta para responder a minha primeira pergunta, não? Como chegou ao ponto de alucinar consigo mesma?
— Provavelmente, a minha imaginação te criou para poder me levantar.
O que é uma grande piada de mau gosto. Pelo jeito, nem eu mesma respeito o meu momento de luto. Tenho que, literalmente, inventar um fantasma para me obrigar a escalar o poço até a superfície.
— Afinal de contas, é fato que você só aceitaria ajuda de si mesma.
— O que não faz sentido algum! Por que eu faria isso comigo mesma?! Por que desejaria retornar para um lugar que apenas me machucará novamente?!
— Porque você não quer morrer nas sombras, sozinha. Porque é uma pessoa que se recusa a admitir que perdeu uma luta. Porque não deseja ser uma fracassada que caiu perante a própria depressão.
Ela deu um sorriso satisfeito e me abraçou com força. Por um instante, pensei que os membros dela atravessariam a minha carne feito o toque de um fantasma. Entretanto, isso não aconteceu. Posso sentir o calor do corpo dela e o cheiro do seu perfume.
— O que pensa que está fazendo? Eu não sou esse tipo de personagem.
— Ainda não, mas algum dia, quem sabe? — A gentileza dela é reconfortante, porém, jamais admitirei isso em voz alta. — Está pronta para aceitar que precisa de companhia para continuar vivendo?
— Se possível, gostaria de continuar sozinha. Prefiro isso do que estar rodeada de pessoas falsas que derramarão lágrimas vazias e cuspirão um monte de inverdades durante o meu velório.
Ah, ela era uma boa pessoa.
Ah, ela vai fazer tanta falta.
Ah, o mundo será um lugar bem mais frio sem ela.
Sei que sou facilmente esquecível, descartável.
— Mas o seu coração pensa o contrário, certo? — Ela segurou o meu rosto e me encarou com seriedade. — Então, por que não tenta sair daqui e se esforçar um pouco pra se tornar alguém memorável? Faça com que as palavras ditas pelas pessoas à sua volta não sejam mentiras. Crie um mundo que realmente fique mais vazio com a sua ausência.
— Fala como se fosse algo fácil.
— Você nunca saberá se não tentar.
Ah! Já chega! Não suporto mais toda essa palhaçada. É melhor admitir logo a minha derrota para calar a boca dela de uma vez por todas.
— Em nenhum momento disse que ficaria trancafiada aqui para sempre, mulher irritante. Apenas precisava de um pouco de… tempo para respirar fundo e juntar alguma coragem. Amanhã, com toda certeza, voltarei a ser a professora inútil e brincalhona de sempre, carregando consigo aquele velho sorriso venenoso. Covardemente, observarei os ferimentos das minhas alunas com o canto de olho e os ignorarei, fingindo que nenhum desastre aconteceu. Jamais admitirei que foi minha culpa, e, também, não jogarei a culpa pra cima de nenhum deles.
— E nem precisa fazer isso. Seus alunos ainda são jovens, por isso, os ferimentos internos e externos deles se curam bem rápido. Acho que o primeiro passo pra você mudar, é parando de subestimar a força deles. — Alargou o seu sorriso, agindo como se tivesse falado a coisa mais incrível do mundo. — Não me decepcione, okay? Estou esperando muito de você.
— Tá, que seja. — A empurrei com as duas mãos, desgrudando-a de mim. — Agora, suma de uma vez por todas. Se possível, não quero vê-la nunca mais.
— Quanto a isso, não posso prometer nada. Você sabe muito bem o quão pé no saco eu sou. — Fechou um dos olhos e mostrou a ponta da língua. — Talvez, eu dê uma passadinha de vez em quando pra bebermos alguma coisa.
Após uma longa risada recheada de sarcasmo, minha ilusão finalmente desapareceu e o silêncio retornou com força total, trazendo consigo todas as sensações depressivas que eu tinha afastado com sucesso até agora.
Ugh…
Ansiedade.
Fadiga.
Apreensão.
Medo.
Derrota.
O sabor de tantos sentimentos ruins misturados com álcool é bastante repulsivo. E por falar em coisa repulsiva, cada uma das minhas mãos está segurando uma taça. Aparentemente, eu estava bebendo por duas desde o início. Não é surpresa a minha visão estar tão alterada.
— He, he. — Vagarosamente, levantei-me da cadeira apenas para cair de bruços no tapete da sala. — Fascinante…
Quase adormecendo, começo a pensar no meu futuro pela primeira vez em muito tempo. Inacreditavelmente, estou fazendo planos, escrevendo algumas linhas da página seguinte do meu diário.
Por mais que eu não tenha intenção de mudar da água para o vinho, amanhã tentarei ser ao menos um pouquinho melhor do que sou hoje. Menos medrosa, menos arrogante, mais amável. Claro que não abandonarei a minha ambição de continuar sendo o centro do meu próprio universo, movendo os outros como se fossem peças de xadrez. Mas talvez permita que alguns pequenos intrometidos cheguem mais perto do meu coração.
Tá, não tão perto assim… Apenas um passo ou dois, no máximo…
Três se forem bonzinhos comigo.