Carnaval no Abismo - Capítulo 5
Mesmo excluindo eu, a Dona Coxinha e noventa e nove por cento da população mundial, ainda restam suspeitos demais. Todos os alunos do terceiro ano “E”.
— Você já tem alguma ideia de quem nos fotografou? — Melissa, novamente na sua forma sensual, perguntou assim que entramos no prédio dos dormitórios.
— Faz poucos dias desde que comecei trabalhar aqui, lembra? Não conheço os alunos o suficiente para apontar o dedo. Tampouco, a motivação para o culpado ter avançado contra nós tão de repente.
Atravessamos o saguão de entrada e entramos no elevador. Apertei o botão do terceiro andar.
— Se você não tem um suspeito, para onde estamos indo?
— Atrás de reforços, claro. Já que não conheço os alunos, preciso recrutar alguém que saiba tudo sobre eles. Ou seja…
— Lorena?
— Exatamente. A representante de classe será a peça-chave para podermos solucionar este caso.
Saímos do elevador e caminhamos rumo ao último quarto do corredor. Como ainda é bem cedo, todos os alunos devem estar dormindo. Por isso, tomarei bastante cuidado na hora de chamá-la.
— Ei, representante! — Apertei a campainha dez vezes seguidas. — Acorda pra cuspir!
Imediatamente, um grito de susto veio de dentro do cômodo. Logo depois, barulho de passos apressados.
— Estou indo! Me dê apenas um segundo!
Porém, esse segundo se tornou dez, vinte, trinta…
Entendo que ninguém gosta de ostentar a sua bagunça para as visitas, mas também não precisa deixar tudo impecável, né?
— Desculpem a demora! — Ofegante, Lorena abriu a porta. — Algum problema?
Ela está vestindo um pijama bem infantil, cheio de frufrus e bichinhos fofinhos estampados no tecido. Sua expressão desconfiada é a mesma de uma criança que quebrou o vaso favorito da mãe e jogou os cacos no quintal para acusar o cachorro.
— Querida, desculpe incomodar tão cedo, mas podemos conversar? — Melissa falou.
— Claro. Podem entrar…
A diretora logo tratou de contar sobre as fotografias e o motivo para estarmos aqui, excluindo os detalhes mais salientes, obviamente. Enquanto isso, eu andei de um lado para o outro, admirando o mundinho impecável da representante.
Um típico santuário feminino, com móveis delicados, ursinhos de pelúcia e coletâneas de romances adolescentes nas prateleiras. Sobre a cama e em algumas paredes, há talentosos retratos e paisagens desenhados à mão.
É o lar de uma pura e imaculada artista que não consegue desgrudar os olhos de mim.
Talvez, ela esteja com medo de que eu quebre alguma coisa? Ou, quem sabe, tem algo a ver com esse barulhinho mecânico que estou ouvindo ao fundo?
— Um suspeito, eim? Apenas um nome me vem à cabeça. — Lorena comentou assim que Melissa terminou de falar. — Juliana Aguilar, a única membra restante da equipe do jornal da escola.
— Juliana? Não lembro de alguém com este nome na sala de aula. — Comentei.
— Logo após o evento de desaparecimentos, ela meio que se trancafiou na própria casa. Tem se negado a frequentar a escola e não teve ninguém que conseguisse convencê-la a viver aqui conosco, nos dormitórios.
Olha só, uma reclusa. Já simpatizei.
— Por que acha que Juliana é a responsável? — Melissa perguntou. — Tenho mantido contato por telefone e, nenhuma vez, ela pareceu demonstrar interesse em mim.
— Nunca soube? A sua verdadeira forma é meio que uma lenda urbana de terror que sussurram pelos corredores. “A Coxinha Demoníaca de Isana”. Uma espécie de Fofão com o corpo oval. Alguns dias antes de toda essa confusão começar, a equipe do jornal planejava publicar uma matéria falando sobre o assunto. E, até onde fiquei sabendo, Juliana estava encarregada de escrevê-la.
— Coxinha Demoníaca… Pfff!
Até ameacei começar a zoeira, mas tive que engolir as minhas gargalhadas assim que fui apunhalada pelo olhar mortal da diretora.
— Somando tudo isso ao fato dela ser uma garota excêntrica com a mão boa pra tecnologia, me faz pensar que seja a pessoa que estão procurando.
— Quão excêntrica? — Perguntei.
— Acho que terá que ver com os seus próprios olhos, senhora.
— Então, vamos atrás dela imediatamente! — Melissa anunciou, já avançando no rumo da saída. — Lorena, poderia vir com a gente? Acho que ter a presença de uma garota da idade dela pode nos ajudar na hora de convencê-la a apagar as fotos.
— Claro, só preciso trocar de roupas.
A diretora acenou com a cabeça e foi embora. Provavelmente, em busca da chave do carro.
— Só não demora muito, tá? — Anunciei enquanto também caminho até a porta. — Sei que deve estar ansiosa para terminar o que começou, mas faça rápido. Não nos deixe esperando.
A representante travou no mesmo instante, parecendo uma máquina defeituosa prestes a explodir.
— D-d-d-do qu-que v-v-você tá f-falando?! N-não en-en-entendi!
— Devo começar pela revista escondida atrás da coletânea de Crepúsculo? Gênero bem hardcore mesmo entre o público masculino, a propósito. Ou, quem sabe, esteja se referindo àquela coisinha rosa e meiga que está pulando atrás dos porta-retratos? Acho que devido a correria, você acabou esquecendo de desligar.
— N-na-na-não é n-na-na…
— Fico contente em saber que tenho uma aluna saudável. — Dei uma risadinha travessa. — Bom trabalho!
Assim que saí e fechei a porta, pude ouvir um grito estridente carregado de vergonha. Tenho a leve impressão que alguém no lado de dentro vai cavar um buraco para poder esconder a cabeça, há, há.
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Após dez minutos de carro, chegamos à casa de Juliana.
Sinceramente, eu esperava encontrar uma mansão ou algo ainda mais luxuoso, mas para a minha surpresa, trata-se de um barraco bem simples com pintura desbotada, cercado por grades enferrujadas. Suponho que ela seja uma bolsista ou algo do tipo.
— Será que Juliana não está? — Lorena perguntou depois de bater palmas por quase um minuto.
— Está sim, pode apostar. — Comentei. — Como uma ex-guardiã do lar, conheço muito bem a técnica de ignorar vendedores ambulantes, entregadores de santinhos, vizinhos incômodos e crentes.
Tomei a dianteira e puxei o portão que, curiosamente, está destrancado. O mesmo aconteceu com a porta da frente, algo realmente estranho. Uma reclusa, por mais inexperiente que seja, jamais cometeria o erro bobo e perigoso de deixar as entradas escancaradas.
— Olá? Tem alguém vivo aí? — Perguntei assim que adentrei a cozinha.
— Que escuridão. Ela realmente está aqui? — Melissa demonstra uma preocupação genuína.
Todas as cortinas estão fechadas, não permitindo que a luz solar entre. Por isso, gasto uns bons segundos apenas para conseguir encontrar o interruptor e ligar as lâmpadas.
— Minha nossa, mas que chiqueiro. — Falei. — Okay, usando o meu caso como comparativo, essa não é a casa de uma reclusa qualquer e sim daquelas bem extremas.
Por mais que eu tenha passado um ano inteiro trancafiada, ainda me esforçava para manter o meu apartamento arejado e os cômodos limpos. Porém, tudo aqui reflete a existência de alguém que simplesmente desistiu de tudo. Os pacotes de comidas industrializadas vazios, as louças sujas, a densa camada de poeira acumulada sobre os móveis. Um lugar que, de forma alguma, dá para chamar de “lar, doce lar”. Obviamente, o mal cheiro consequente de tanto descaso é nojento o suficiente para revirar o estômago de qualquer um. No entanto, por incrível que pareça, foi outra coisa que me deixou de queixo caído.
— Viu o que eu quis dizer com “excêntrica”? — Lorena questionou em meio a um assobio.
— Na verdade, está mais para “insana”, não? — Concluí.
Fotografias da Coxinha Demoníaca de Isana estão por todos os lados. Nas paredes, sobre a mesa de jantar, espalhadas pelo chão. Existem milhares, não, milhões delas!
Olha só! Ela até fez um mural parecido com aqueles das séries de investigação, interligando imagens e anotações com um barbante vermelho. Suponho que sejam materiais reunidos durante vários meses. Provavelmente, com o intuito inicial de ser usado no jornal da escola.
Não me espantei ao notar que a diretora está tremendo na entrada da cozinha, com os olhos esbugalhados. Se eu já achei essa cena bem impactante, imagina o alvo de tanta loucura?
— Pois é! Ela não está em casa, né?! Acho melhor voltarmos outra hora!
Imediatamente, corri até Melissa e segurei o pulso dela, impedindo-a de fugir com o rabo entre as pernas.
— Não, não. Nem pense nisso. Lembra que você me forçou a entrar nesta bagunça? Agora, terá que me acompanhar até o final. — Arrastando-a, comecei a abrir caminho por entre o mar de lixo. — Então, representante, existe mais alguma coisa que preciso saber sobre ela?
— Vejamos… Corria um boato na sala de aula que Juliana conseguia saber os sentimentos das pessoas olhando as “auras” delas.
— Ahn? Como assim?
— Também não sei o que significa. Vamos ter que perguntar diretamente pra ela.
Fui até o quarto que tem o nome da garota gravado em uma plaquinha artesanal e, sem sequer bater antes, invadi e liguei a luz.
— Está ainda mais bagunçado que o lado de fora. Será que o Saci passou por aqui? — Comentei.
— Talvez, tenha sido um furação. — Lorena assobiou novamente.
Livros espalhados, louças jogadas, panos de cama e mudas de roupas forrando o chão, o drone robusto que vi mais cedo. À primeira vista, realmente parece que não tem ninguém, mas o meu sentido-aranha não para de apitar.
Bem, vale ressaltar que não existem muitas opções de esconderijos em um quarto tão pequeno e estas roupas jogadas são uma tremenda pista.
— Como vai, guria?
Assim que abri as portas do guarda-roupas, encontrei uma menina de pele morena e longos cabelos pretos bagunçados embrulhada em um edredom. Ao lado dela, tem um notebook e sei lá quantas latas de energético.
— Até que vocês foram bem rápidas para me descobrirem, he, he. — Mostrou um grande sorriso. — Sejam bem-vindas.
A falta de surpresa no tom de voz dela é explicada pelo fato do computador estar conectado a todas as câmeras de vigilância do colégio.
Sem brincadeira, se alguém respirou pelo bumbum, Juliana soube na hora. Fato que eleva toda essa situação de estranha para loucura total. Agora, até eu estou me tremendo de medo dela.
— Não vai negar que você enviou aquele treco para nos espionar, certo? Poderia fazer o favor de deletar todas as fotos que tirou? — Melissa parece estar a ponto de ajoelhar e suplicar. — Também apreciaria muito se pudesse manter o que descobriu em segredo dos outros alunos.
— Hugh. Para alguém que anda pra cima e pra baixo com uma atitude super marrenta, esse modo de agir não é nada digno de respeito, Dona Coxinha. — Comentei.
— Calada.
Pela primeira vez, Juliana voltou sua atenção do computador para nós.
— Eu não teria chamado a atenção de vocês se não quisesse alguma coisa em troca do meu silêncio.
— Como assim?
Mais uma vez, a diretora não entendeu o óbvio.
— Apenas olhe em volta. Lembra de todas aquelas fotos na cozinha? Alguma vez, já tinha notado que alguém as estava tirando? Não, né? Mas hoje, foi diferente. Esta criaturazinha saiu das trevas e permitiu que a víssemos. Resumindo, ela planeja chantagear você.
Enquanto Melissa engole em seco, a pequena morena se arrasta para fora do guarda-roupas devagar feito uma lagarta. Usa uma blusa preta velha que mais parece um vestido em seu corpo esguio.
— Pode até não aparentar, mas você é uma pessoa bem esperta, né, senhora?
— Aa… Mais uma. — Cruzei os braços e mostrei uma expressão carrancuda. — Então, o que quer da diretora?
Juliana levantou seus grandes e brilhantes olhos castanhos na minha direção.
— Não apenas dela, mas de você e da representante também.
— Hum? Eu? — Lorena apontou para si mesma.
— Prometo que não será nada complicado. — Finalmente, a morena ficou de pé. — Quero apenas que vocês três se tornem a minha família até todos que desapareceram retornarem.
— Ahn? Como é? — Perguntei, extremamente confusa. — Família?
— Exato.
Dei uma risadinha, virei de costas e comecei a caminhar no rumo da saída.
— Nem ferrando que vou passar por isso. Se eu continuar deixando vocês me manipularem, vai chegar o momento em que vão querer controlar até a quantidade de vezes que faço cocô por dia. Faz o que quiser com as fotos. Tô nem aí.
Porém, mais uma vez, a mão firme e impiedosa de uma coxinha me impediu de escapar.
— Se não fizermos, quais serão as consequências? — Melissa perguntou.
— Obviamente, vou contar o seu segredo para todos os alunos, tornando a sua vida bem mais complicada.
No mesmo instante, fui puxada com violência e forçada a ficar de joelhos diante da pequena morena. Melissa segurou o meu pescoço e o empurrou até minha testa tocar a cerâmica fria.
Fala sério. Nós duas estamos venerando uma adolescente manipuladora como se fosse uma santa!
— Aceitamos a sua oferta. A partir de agora, vamos ser uma família feliz.
Ah, merda… Quando eu penso que o buraco já está fundo o suficiente, obrigam-me a cavar ainda mais…