Carnaval no Abismo - Capítulo 7
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- Capítulo 7 - A Complexidade do Gato Envenenado na Caixa (2)
Sabia que é possível adivinhar os seus sentimentos apenas pela sua maneira de se vestir?
Quando num dia qualquer você se esforça para manter uma boa aparência na frente de estranhos, está mostrando que se importa com o que eles pensam de você. Explicita que está satisfeito(a) com o seu corpo e em paz consigo mesmo(a). Deseja que vejam apenas o seu melhor, atraindo elogios e contagiando aqueles à sua volta com boas vibrações.
Porém, quando o oposto acontece e você expõe o seu lado podre para todos, correndo o grande risco de ser odiado(a) e rejeitado(a), revela que a escuridão já corrompeu o seu corpo feito uma bactéria maligna. Sua frustração estará vinte e quatro horas por dia estampada em seu rosto. Toda a tristeza, fadiga e agonia poderão ser sentidas no ar.
Agora, imagine a existência de uma pessoa com a habilidade de enganar os olhos dos observadores. Alguém que se veste bem e, ao mesmo tempo, esconde uma alma completamente doente sem um pingo sequer de beleza. Morto por dentro.
Para poder se tornar uma pessoa assim, basta ser engolido pelas suas próprias mentiras. Usar máscaras e palavras manipuladoras para tudo o que for fazer, sempre procurando atender as expectativas dos outros em prol de atingir os seus objetivos. Até porque é bem mais fácil ganhar ou conseguir alguma coisa de valor quando os seus principais obstáculos gostam de você.
Juliana é um bom exemplo desse tipo de pessoa. Por mais que ainda seja uma adolescente e suas facetas não estejam totalmente desenvolvidas, podemos notar um dom natural quando se trata de “enganar os outros”. O modo como ela esconde os seus verdadeiros sentimentos atrás de uma voz doce e atitudes infantis forçam-nos a aceitá-la com facilidade. É alguém que entende as vantagens e desvantagens de manipular e ser manipulada.
Prosseguindo com o nosso momento de reflexão, sabia que podemos contar toda a vida cotidiana de uma família ao observar atentamente o interior da sua casa?
Conseguimos afirmar se os membros possuem uma boa convivência apenas pelo fato de se cumprimentarem ou não durante a manhã. Podemos dizer se estão contentes, com raiva ou cansados analisando a maneira como conversam durante o jantar. Notamos que uma família está à beira da ruína quando sequer trocam olhares ao passarem uns pelos outros.
Após observar com cuidado a casa onde estou, posso imaginar com certa clareza o dia-a-dia da família Aguilar.
Consigo ver Juliana chegando da escola e encontrando o seu pai embriagado, pintado de vermelho, revirando tudo num frenesi de fúria.
A garota, abençoada por uma astúcia acima da média, recebeu desde pequena a árdua tarefa de manter o homem da casa sob controle. A primeira na linha de frente para ser ferida, xingada e trucidada enquanto procura uma oportunidade de tirar a garrafa da mão dele.
Também sou capaz de enxergar a mãe perfeitamente. Essa quantidade absurda de bitucas de cigarro espalhadas pelo chão explicitam uma pessoa turquesa, ansiosa e depressiva. Alguém que parece ter desistido de todos e também de si mesma, usando apenas roupas velhas e calçados gastos já que não sentia mais o direito ou necessidade de ficar bonita.
Uma mãe que, provavelmente, não precisava de grandes motivos para espancar sua filha. Queria apenas descontar a frustração de não ter alcançado a família perfeita que sonhava durante a adolescência. Alguém fria o suficiente para marcar Juliana feito gado com o único objetivo de ouvi-la gritar em agonia.
Por fim, falando sobre o irmão mais velho, imagino outro mentiroso nato, cinza. Entretanto, diferente de Juliana, assumiu uma personalidade agressiva com a intensão de fugir da responsabilidade de ser o pilar central da família na ausência do pai. Do tipo covarde que corre para o quarto quando os objetos começam a se chocar contra a parede. Alguém que tapa os ouvidos, fecha os olhos e se encolhe no canto da parede enquanto a sua irmã tenta desesperadamente recolher os cacos para que ninguém corte o pé.
Ah, você pode estar pensando que descobri tudo isso usando o que li naquele diário como base, mas não. Até porque não tinha nada além de contos de fadas escritos lá.
“Hoje minha mãe cantarolou enquanto fazia o café da manhã. Já fazia tanto tempo desde a última vez. Estava realmente delicioso.”
Mentira.
“Meu pai chegou cedo do trabalho. Que bom, pois hoje está muito frio para ficar no lado de fora. Não quero que ele pegue um resfriado.”
Mentira.
“Meu irmão desviou do caminho de casa apenas para me comprar um presente. Pediu desculpas por algum motivo. Fiquei tão feliz com o gesto dele.”
Mentira. Mentira. Mentira. Mentira. Mentira. Mentira. Muitas e muitas páginas de uma dolorosa mentira.
No entanto, todo esse conto de fadas que Juliana inventou durante a sua vida acabou se tornando inútil no instante em que os seus personagens desapareceram. No silêncio de um lar vazio, a realidade que ela ignorou por tantos anos encontrou uma brecha para sobrepor a fantasia.
Foi aí que ela destruiu ainda mais o seu castelo.
Quebrou os porta-retratos, jogou fora as garrafas de bebidas, queimou todas as carteiras de cigarro, fez em pedaços os presentes dados pelo seu irmão. Se livrou de tudo que trazia memórias daquelas pessoas que tanto a fizeram sofrer. Gritou com todas as forças até não restar mais ar em seus pulmões.
Só que igual a um corpo que se livrou de uma grande quantidade de gordura num curto espaço de tempo, Juliana se sentiu extremamente deformada após expulsar os sentimentos negativos que estavam acumulados em seu interior.
— Um vazio que anulou toda a sua vontade de viver. — Sussurrei. — Cansaço, exaustão, fadiga, esgotamento…
Após me livrar da máscara linda e encantadora dela, consigo enxergar a criança que olhou para as próprias mãos sujas de fuligem e se perguntou: o que farei agora que, finalmente, estou livre?
Juliana odiava a sua família com todas as suas forças, isso é fato. Entretanto, também dependia dela para continuar seguindo em frente. Como, provavelmente, nunca fez planos para o futuro, o desaparecimento repentino dos vilões do seu conto de fadas a deixou sem um final concreto para sua história.
Foi então que surgiu a ideia de buscar reservas para tapar o buraco em seu peito aberto pelos titulares. Uma droga para a sua mistura de Síndrome de Estocolmo e burnout.
Pois bem… O que exatamente posso fazer para ajudar uma pessoa tão quebrada assim? Não sou uma psicóloga, muito menos, alguém com a habilidade de escutar e apoiar.
Estou com a sensação de que se eu continuar me envolvendo na vida dela, acabarei a traumatizando ainda mais. Afinal de contas, sou como uma grande espiral que destrói tudo o que toca. Uma loucura infecciosa que se espalha com o mínimo de contato. Um rio fantasma que aparece do nada e afoga todos ao seu alcance em suas águas congelantes.
Ah, sim… Na conclusão de toda essa fantasia, nós duas, com certeza, cairemos do precipício juntas.
■■■
É exatamente 13h52min. Estamos todas em volta da mesa. O cheiro do almoço que emana dos pratos permeia o ar.
Nossas posições são exatamente as mesmas de mais cedo, com as exceções de que Melissa está sentada conosco e um silêncio pesado nos rodeia. Parece o prelúdio para a tempestade que está prestes a cair.
Com o canto de olho, observo Juliana. Faço isso com o único intuito de disseminar ainda mais a raiva que já queimava o meu interior até se tornar um incêndio incontrolável.
Alimentei este ódio até sentir um nó desatar dentro de mim, e, no segundo seguinte, o prato que ficava bem na minha frente foi parar no meio de uma parede, terminando em fragmentos.
Pude ouvir os gritos de Lorena e Melissa, mas absolutamente nada escapou dos lábios de Juliana.
— O que foi isso?! Enlouqueceu?! — A diretora gritou, perplexa e confusa.
— A comida estava uma porcaria! Então, a joguei no lugar onde deveria estar! Não… Talvez, devesse tê-la jogado no meio da sua cara!
Completamente fora de mim, esmaguei um copo sobre a mesa e, consequentemente, cortei-me com seus cacos. Pela quantidade de sangue que começou a escorrer por entre os meus dedos, o ferimento não deve ter sido nada superficial. Tudo perto de mim está sendo rapidamente pintado de vermelho.
— Já chega disso! Está assustando as garotas!
— Ei, o que aconteceu?! — Lorena perguntou.
— Pr-professora, precisa se acalmar. A diretora não fez por mal. Por favor, escute-me. — Com um tom completamente antinatural, Juliana foi a última a se manifestar.
— Hum? Então, é assim que você reage nestes momentos? Pensando que uma expressão apaziguadora e um sorriso torto serão suficientes para colocar tudo de volta nos trilhos? São atitudes bem porcas para uma garota da sua idade, não acha? Me faz desejar substituir tudo isso por dor e lágrimas.
Levantei da cadeira, avancei, agarrei o colarinho dela e a puxei para cima. Nos encaramos. Tentei transmitir pelo menos um pouco do desprezo que estou sentindo, mas, para a minha surpresa, tudo o que a minha atitude despertou no interior de Juliana foi leves tons de nostalgia. Nem mesmo o cheiro repugnante do meu sangue a fez tremer.
“Mais uma tarde como qualquer outra”, é o que está escrito em letras maiúsculas dentro dos olhos dela.
— Não consigo entender como pode continuar tão calma! Como é capaz de sobreviver coberta por tanto cinismo! — Forcei o aperto ainda mais, perigosamente próxima de estrangulá-la. — Você mal entrou na minha vida, mas já sinto que a destruiu completamente!
Soltei a morena apenas para poder arrastar o que estava sobre a mesa na direção do piso.
Destruição, baque, sujeira, fragmentos. Tudo, tudo, tudo. Deixei tudo em pedaços.
Foi então que Melissa, forçada a intervir para evitar uma tragédia, ameaçou correr na minha direção. Entretanto, para a minha surpresa, foi impedida por Lorena.
— Por que calou a maldita boca?! Não lembro de ter mandado ficar calada! — Voltei-me na direção de Juliana e a empurrei para trás. — Por que continua com essa expressão de quem não está sentindo nada?! Por que continua permitindo que uma completa estranha te humilhe desta forma?! Por que não consegue abandonar o papel miserável de pessoa fraca e tomar uma atitude?!
— De-desculpe-me, professora! Não estou fazendo isso porque quero!
— Não está?! — Comecei a rir. — Agora, consigo enxergar as razões para o seu pai estar sempre embriagado. Era para não ter que encarar com lucidez essa sua expressão porca!
Ainda não é o suficiente.
Preciso escavar mais…
— Entendo o motivo da sua mãe ficar sempre com raiva. Ela devia se arrepender constantemente de ter parido uma criança tão detestável!
Ainda não…
Mostre-me as suas feridas. Grite. Entre em desespero.
— Consigo apoiar a decisão do seu irmão de sempre te abandonar. Afinal, ninguém merece o incômodo de proteger alguém tão patética! Todos eles, assim como eu, deviam pensar que seria bem melhor se você nunca tivesse nascido!
Chore. Chore. Chore.
Derrame lágrimas!
— E-eu… Eu… E-eu…
— Eu?! Eu o quê?! Responda! Coloque para fora tudo o que está escondendo de mim! Como conseguirei entender se não disser em alto e bom som?!
Neste momento, também pude ouvir um nó desatando dentro de Juliana. Sua linda máscara florida rachou bem no meio e começou a cair em pedaços aos seus pés.
— Eu estou cansada! — Gritou com todas as suas forças. — Cansei de ver todas essas coisas sendo quebradas! Cansei de ouvir tantos gritos! Cansei de passar noites em claro por causa de brigas!
Finalmente, os olhos dela entregam tudo. Refletem o meu eu poluído por uma aura completamente preta. Algo horripilante, asqueroso, detestável. Um corpo podre e fedido que derrete enquanto é banhado por pinche fervente.
Estou sendo tratada feito um demônio? Bem, talvez, eu realmente seja isso.
— Estou farta de todos os ferimentos! De ter que chorar e sofrer sozinha para não incomodar ninguém! — A morena, em estado de choque, recuou até ser barrada por uma parede. Sentou-se e abraçou os próprios joelhos numa tentativa de esconder o seu rosto choroso. — Danem-se vocês! Eu não pedi pra nascer! Então, parem de jogar todos os seus problemas em cima de mim como se a culpa fosse apenas minha! Em nenhum momento, desejei fazer mal pra vocês! Nunca quis que sofressem por minha causa!
Após ouvir o desabafo dela, a calmaria do mar rapidamente abraçou o fogo no meu interior.
— Entretanto, você nunca fez nada pra mudar isso, fez? Achou mesmo que se continuasse jogando querosene nas chamas, um dia o incêndio apagaria? Pensou que se continuasse sorrindo, respirando fundo e ignorando todas as cicatrizes, o pesadelo se tornaria um lindo sonho? Que chegaria o dia milagroso em que você e o restante da sua família teriam um final feliz? Que algum cavaleiro montado num cavalo branco apareceria para te resgatar?
— Não fale merda! É claro que lutei! Esforcei-me tanto para que os meus pais e irmão não se odiassem! Fazia tudo o que me mandavam sem reclamar, sempre os tratando como gostaria que me tratassem! — Socou a parede atrás de si com força. Estremeceu ao sentir dor. — Tentei não gerar ainda mais sofrimento, mas nunca dava certo! Bastava eu deixar o arroz queimar um pouco ou ter uma gota de pinga a menos no copo daquele maldito para tudo ir ao chão novamente! — Encolheu-se ainda mais como se tentasse desaparecer. — Ainda assim, mesmo estando triste e desolada, eu levantava a cabeça e tentava de novo… De novo, e de novo, e de novo, e de novo… Lutava todo maldito dia da minha vida, suportando e sobrevivendo por algo que, bem no fundo, eu sabia que jamais mudaria. — Ergueu o rosto e me encarou. — Sinceramente, todo santo dia, eu pedia pra Deus prover um milagre e me dar uma família de verdade… Pessoas que gostassem de mim. Pessoas que me amassem…
Ah, sim. Gostei muito do seu desejo, garota…
— Então, basta que a partir de agora eu assuma essa vaga, certo?
Retirei a franja que grudava na pele dela por causa das lágrimas. Este rosto, finalmente livre daquilo que tanto me enojava, parece verdadeiramente belo. A face de uma guerreira de verdade. De alguém que merece todo o meu respeito.
Abracei-a com bastante força. Sim, um abraço. Algo que nunca recebi de ninguém. Algo que eu nunca tinha dado a ninguém.
Novamente, Juliana está perplexa, sem saber como reagir diante de tamanha demonstração de afeto.
— Vai ficar tudo bem. Estou com você, por isso não há mais nada a temer. — Sorri. — Apenas não finja mais pra mim, tudo bem? Não precisa contar mentiras para me agradar, pois não suporto falsidade. Então, mesmo que tenha começado a me odiar, aceitarei esse sentimento com todo o prazer. Em troca da minha ajuda, de agora em diante, quero que você seja verdadeira.
Juliana fungou e esfregou os olhos várias vezes, tentando enxugar as lágrimas. No entanto, elas não param de cair.
— Por que gritou comigo?! Eu fiquei com tanto medo de você!
— Desculpe-me, criança…
— Achei que seria machucada novamente! — Escondeu o rosto entre os meus seios. — Não suporto mais sentir dor!
— Eu nunca teria coragem de ferir uma garotinha tão fofa feito você…
— Ugh…
O silêncio que veio a seguir durou apenas alguns segundos.
— Ehe. — Só então, lembrei-me das nossas duas outras expectadoras. — Bom trabalho, senhora. Você foi ótima! — Lorena disse com um sorriso satisfeito no rosto.
— Ah, merda… Era só o que me faltava…
Rapidamente, libertei-me dos braços de Juliana e tentei disfarçar. Porém, já é tarde demais para poder me esquivar de certos olhares perfurantes.
Melissa ainda respira fundo, tentando retomar o seu autocontrole. Já eu, estou ainda mais exausta, seja por conta dos gritos ou da anemia.
Espero nunca mais ter que passar por algo assim novamente.