Chamas Carmesim - Capítulo 1
– Menina? Você está bem? – perguntava uma voz distante e distorcida.
Ainda com água nos pulmões e dificuldade para respirar, Feena não conseguiu responder. Sua garganta estava seca e ríspida como uma lixa, e seus cabelos e roupas encharcados pela água do mar; A suave brisa zunia em seus ouvidos. Seus dedos agarraram-se à areia, e em espasmos involuntários vomitou boa quantidade de água salgada. Tentou abrir os olhos, mas estes ardiam como fogo. Entre os borrões de luz a garota notou um vulto à sua frente. Esfregou seus olhos, e aos poucos sua visão normalizou.
Um homem idoso estava parado diante dela. Usava sandálias surradas, roupas velhas de linho, e uma longa barba branca enrolava-se abaixo de seu queixo. Suas mãos eram calejadas, fruto de longos anos de trabalho árduo, e areia precipitava-se debaixo de suas unhas. A jovem garota tentou se levantar, mas seus frágeis braços pareciam desistir, forçando-a a apoiar-se sobre os cotovelos. Ao seu lado uma velha rede de pesca e um arpão enferrujado jaziam na areia.
– Quem…? – Feena tentava perguntar.
– Apenas um velho pescador. – respondeu o homem. – Henry é meu nome. De onde você é, menina? Caiu de alguma embarcação? Ou bebestes demais até perder a consciência? Jovens hoje em dia… – suspirou coçando a cabeça parcialmente calva.
– Eu… – interrompeu sua fala por um momento. – …não sei. – disse com um olhar confuso e distante.
– Aqui, deixe-me ajudá-la. – disse com um olhar desconfiado e cauteloso.
Naquela região, a pesca era a única forma segura de sobrevivência, pois os agricultores eram vítimas de constantes assaltos e furtos noturnos. Havia também a colheita anual, onde o rei confiscava quase oitenta por cento da produção dos fazendeiros, fossem eles mais abastados ou não. Se tudo isso não bastasse, todo mês era cobrado um imposto de cinquenta moedas de prata, pelo uso das terras. Pescar em praias desertas, sem o olhar desconfiado de guardas ou nobres corruptos, era a melhor forma de adquirir alimento sem que os descobrissem, mas era também ilegal, e passível de punição.
A Praia de Cristais, nome que se deve a antigas cantigas a respeito de uma velha lenda, era proibida para a pesca. Tais canções nos contam sobre João Morino, um velho pescador que, atolado em dívidas, fugiu dos olhos de seus credores, e tomou refúgio naquele local. Pescava à noite, e escondia-se numa cabana improvisada durante o dia. Certa noite algo diferente prendeu-se ao anzol. João lutou com bravura, e após dias e noites de esforço, conseguiu puxar um pesado baú para fora d’água. Era simples, e bastante rústico. A madeira apodrecida era morada de fendas e cracas. Seus olhos brilharam como diamantes assim que abriu a velha fechadura, enferrujada pelo tempo. Dentro, dezenas de cristais preciosos de valores imensuráveis jaziam; intocados. João não apenas pagou suas dívidas, como comprou terras, e até mesmo um pequeno castelo ao norte de Veninah. Tornou-se o homem mais rico da região. A lenda nos conta também que João Morino, tomado pelo medo de ser roubado, enterrou-se vivo, e com ele seus preciosos cristais. Após sua morte, muitos foram às Praias de Cristais, decididos a encontrar sua tumba, ou até mesmo outro baú repleto de cristais valiosos, mas todos os esforços provaram-se inúteis. O rei, temendo a força de tais histórias, proibiu a pesca naquela praia, pois estas alimentavam a esperança de uma ascensão financeira. Peões são mais fáceis de controlar quando conformados com sua posição social.
Henry não estava ali para encontrar tumbas, cristais, ou outras lendas; as julgava tolas crendices infantis. Viúvo e pai de dois filhos, viu suas cabras serem tomadas pelo rei no último outono, e as plantações não iam nada bem desde as últimas chuvas. A pesca ilegal era a única forma viável de alimentar sua família, e a Praia de Cristais era deserta o bastante para evitar olhares desconfiados.
A menina tossiu mais um pouco de água e, com ajuda do velho pescador, sentou-se na areia. Estava assustada. Não conseguia lembrar-se dos acontecimentos passados. Com as mãos trêmulas e enrugadas agarrou a barra de seu vestido e olhou ao redor.
A praia ia de horizonte a horizonte. A fina areia era quase branca como neve, e a água do mar azul e cristalina. Uma deliciosa brisa balançava seus cabelos molhados. Na direção contrária ao mar, havia uma densa floresta. A garota olhou para o velho pescador.
– Senhor, onde estou?
– Na praia de Cristais, senhorita…
– Feena. Meu nome é Feena. – sua voz estava bastante rouca. – O senhor teria..
– Água? – interrompeu.
– Sim. Minha garganta dói…
O velho pescador tirou um cantil de sua cinta e o abriu. Com cuidado ergueu o rosto da garota e derramava aos poucos em sua boca. A água límpida escorria por sua garganta; causava dor e alívio. Em poucos segundos o cantil estava seco. Feena parecia melhor, mas tinha dificuldades para levantar-se.
– A senhorita não consegue lembrar-se de nada? – perguntou ajudando-a a levantar.
Antes que pudesse endireitar sua coluna, Feena sentiu uma forte dor de cabeça, como uma faca trespassando seu cérebro. Após um urro de dor, caiu de joelhos. Qualquer tentativa de lembrança terminava em insuportável dor. Entre gemidos e balbucios estendeu a mão ao pescador.
– Me ajude. – suplicou.
Henry pensou em estender a mão, mas algo o deteve. Seu semblante que outrora fora de compaixão e benevolência era agora estampado por terror e medo. Não ajudou; apanhou seu velho arpão e apontou para o peito da menina.
– Julgas-me bobo por minha humilde ocupação? – disse com a voz trêmula.
Fraca e confusa, a garota assustou-se com a inesperada hostilidade.
– Uma linda garota à beira da praia; sem memórias e pedindo ajuda? Fui inocente, mas não cairei em seus feitiços. Tenho dois filhos para criar. – Bradou o pescador.
Henry era pescador de longa data, mas nunca tinha visto uma garota tão bela tampouco cabelos vermelhos como aqueles. Diferente de ruivas usuais, a coloração era mais forte e viva como as chamas; hipnotizante como o mais belo pôr do sol. Em muitas ocasiões ouviu histórias a respeito de sereias, bruxas, e outras lendas de fêmeas vis que utilizavam de exótica beleza para atrair suas vítimas.
Com o corpo trêmulo e o arpão apontado contra seu peito, Feena não pode evitar lágrimas de pavor. Não tinha forças para correr, e faltavam palavras para argumentar.
– O que é você? – perguntou Henry.
Feena estava confusa. Por instantes desejou que tudo fosse um sonho. Talvez acordasse assim que o arpão trespassasse seu peito. Exausta, enviou um último olhar de fragilidade e fechou os olhos; ansiou pelo fim daquele pesadelo. Sua atitude trouxera confusão ao coração do velho pescador.
– É um truque. Só pode ser um truque. – Ajeitou seu arpão – Não pretendo virar comida de uma Anduh. Meus filhos aguardam pelo meu retorno.
A garota permaneceu imóvel, de olhos fechados, e até mesmo um breve semblante de paz pareceu formar-se no canto de seus lábios. A certeza e determinação de Henry logo sumiram por completo. O pescador lutava consigo mesmo. Se a menina era mesmo uma sereia, por que então desistira de lutar? Nunca ouvira falar de sereias suicidas, pelo contrário, eram conhecidas por sua força e habilidade em combate.
Sereias eram descendentes de Kahnatis, a Andonah das águas. Lendas sobre a Grande Guerra trazem detalhes sobre elas. Foram as mais valentes guerreiras em batalha. Tinham as águas como moradia, mas ao tornarem-se adultas adquiriam a habilidade de caminhar por entre os homens, despistando suspeitas, e infiltrando-se à procura de suas vítimas. Eram sempre dotadas de esplêndida beleza, e muito fortes. Seus finos braços eram capazes de brandir uma lança como um lanceiro de longa carreira, e suas pernas eram rápidas como um guepardo. No entanto, nem todas as histórias as exaltavam. Algumas nos contam sobre seus hábitos mais obscuros; alimentavam-se de homens solitários após seduzi-los e atraí-los às águas. Navegantes afirmam ter ouvido suas canções em noites de neblina, e logo após, sumiços eram relatados nas embarcações. Todo pescador temia encontrar-se com uma sereia. Henry não era diferente deles; apesar de um pouco cético desde a infância, esta era uma das poucas lendas nas quais acreditava.
Com o corpo trêmulo abaixou o velho arpão. Temia sangue inocente em suas mãos.
– Pois bem, darei uma única chance. Contarei até dez e você poderá voltar para seu local de origem. Seja o mar ou a terra. Passado o tempo, cravarei este arpão em seu peito sem fraquejar. – disse o homem recuando dois passos.
Feena abriu os olhos e, ainda cheia de dúvidas sobre a veracidade da situação, não arriscou. Antes que o homem chegasse ao número três, tentou levantar-se e correr, mas tombou na areia. Entre quedas e tropeços correu o máximo que podia, sem olhar para trás. Com o mar à sua esquerda, e árvores à direita, corria apavorada sem a menor noção da distância percorrida. Correr naquela fina areia da praia de Cristais não era uma tarefa fácil, ainda mais para uma garota de traços finos e delicados. Seus joelhos e palmas das mãos, ralados pelas quedas, ardiam como fogo, e um forte enjoo embrulhou seu estômago. Não demorou a desabar sobre a areia, e sua consciência esvaiu-se em seguida.
Já entardecia quando recobrou os sentidos. Confusa e exausta, não sabia julgar o mais assustador: Estar sozinha e machucada numa praia desconhecida, ser perseguida por um pescador enlouquecido, ou a dolorida amnésia. Deitada sobre a areia, virou de costas à areia e observou o céu. O sol escondia-se no horizonte, e o azul tornara-se alaranjado. Nuvens douradas flutuavam à deriva, e o vento balançava seus cabelos. Sentiu frio. Tentou organizar suas ideias, mas toda tentativa de lembranças era suprimida por fortes dores. Detinha certo conhecimento geral básico, mas tudo o que remetia à sua pessoa ou àquele lugar parecia selado.
A garota levantou devagar e se aproximou do silencioso oceano. Seus pés descalços descansavam sob a fria areia, massageados pelas suaves ondas. A fina espuma dissolvia-se aos poucos devolvendo o azul cristalino que refletia o entardecer. Nada se ouvia senão o imponente coral das ondas, e o canto da suave brisa. Em precisos rasantes, gaivotas buscavam seu alimento por entre as ondas. A perfeita sincronia natural era digna de lágrimas; não de tristeza, mas de emoção. Fechou os olhos por alguns minutos e sentiu fome. Desde que acordara não tivera a chance de pensar em suas necessidades mais básicas. Olhou na direção contrária e fitou a densa floresta. Adentrá-la era a única forma de encontrar água fresca e comida, mas estava escurecendo e o medo abraçava sua alma.
– Não seja boba. É melhor do que encontrar outro maluco. – disse a si mesma dando tapinhas em suas roupas para tirar o excesso de areia.
À medida que caminhava em direção à floresta, os sons do vento e do mar eram substituídos por grilos, cigarras, o farfalhar das árvores, e o canto dos pássaros que se aninhavam nas copas mais altas. Por alguns minutos permaneceu imóvel, e pensou até mesmo em desistir, mas com passos incertos caminhou devagar; precisava de água-fresca e comida. As grandes árvores pareciam muito antigas; altas o bastante para tampar todo o céu, tornavam a floresta mais escura e horripilante a cada passo que dava. O solo era úmido e bastante irregular devido à grande quantidade de raízes. Por diversas vezes Feena tropeçava, e às vezes enfiava o rosto em densas teias de aranha, causando arrepios e grande repulsa. Andar descalça por entre tantos galhos, raízes, e desviar de formigas e outros insetos era cansativo e dolorido.
A floresta de Thalnis era bastante temida pelos Kal-hasianos; estes evitavam aprofundar-se demais por entre suas árvores, pois terríveis histórias marcavam aquele lugar amaldiçoado. Relatos de viajantes continham visões das mais diversas abominações; desde fadas e insetos colossais, até poderosas criaturas do mundo antigo. Muitos foram aqueles que se aventuraram no coração da floresta em busca de riquezas e fama, mas nunca retornaram.
– Desisto. Vou morrer de sede e fome. – Suspirou Feena assentando-se sobre um monte de terra.
O vento frio, que costurava as árvores em busca de vítimas desagasalhadas, castigava a garota faminta que não dispunha de vestes quentes. Com os pés encolhidos, Feena esfregava seus braços e soprava suas mãos.
Enquanto descansava por alguns minutos sentiu forte dor em sua perna, como de uma ferroada. Deu um grito exagerado e olhou para seus pés. Não se sentara num monte de terra, mas sim no que parecia ser um grande formigueiro. As formigas eram vermelhas e maiores do que quaisquer que vira antes. Dezenas delas escalavam suas pernas, cravando suas presas sem piedade na delicada pele da garota que entrou em desespero. Entre gritos e tapas não reparou na grande raiz e tropeçou. Seu corpo projetou-se para frente, rolando barranco abaixo.
– Que nojo! que nojo! – gritava esbofeteando as pernas ao se levantar.
Com fome, sede, machucada, e agora também repleta de picadas, sentiu completo desânimo. O que mais poderia acontecer? Com os olhos fechados e apoiada sobre uma grande raiz, escutou um som peculiar e reconfortante; água corrente. Um riacho estava por perto. Caminhou animada em direção ao som e, para seu alívio, estava correta. A água cristalina e corrente era como uma miragem, boa demais para ser verdade. Enfiou a cabeça dentro da água e bebeu feito animal sedento. Com a barriga inchada, sentou-se à beira do riacho e suspirou aliviada.
Feena decidiu descansar um pouco à beira do riacho, pois ainda estava fraca, e podia sentir a água recém ingerida balançando em sua barriga. Não podia ver o céu através das arvores fechadas, mas a julgar pelo vento gelado já era noite. Encostada num tronco qualquer, ajeitou-se e abraçou os joelhos. Lágrimas tardias regavam a terra sob seus pés. De onde viera? Existia alguém a sua espera? Por que perdera as memórias em um momento tão difícil? Rodeada de dúvidas, evitou as dores que selavam suas lembranças, e decidiu esvaziar a mente por alguns segundos.
Tão logo pegou no sono, este fora quebrado por longos uivos ecoando por entre as árvores. Talvez lobos famintos bebessem a água daquele local. Se fosse verdade, seria perigoso permanecer. Não havia outra escolha; precisava continuar. Feena levantou-se, tomou mais um gole daquela água límpida, e tornou a caminhar, seguindo à beira do riacho em direção à nascente. À medida que avançava pela floresta, sentia-se observada pelas árvores; o vento era um misto de cochichos e distantes risadas. Às vezes podia jurar que algumas debochavam dela. As sombras formadas na penumbra, e uma leve neblina que começava a surgir do chão reforçavam aquele sentimento de estar sob os olhares de alguém ou alguma coisa. Surpreendeu-se, no entanto ao reparar no show de luzes produzido por vagalumes agrupados sobre algumas pedras.
Não eram vagalumes comuns; além de coloridas, suas luzes eram mais brilhantes e deixavam um leve rastro no ar quando se deslocavam. A garota parou para admirar a cena. Um tímido e singelo sorriso apareceu pela primeira vez em seu rosto desde que acordara naquela praia. As luzes brilhantes aproximavam-se dela e, voando em círculos, faziam rastros coloridos ao seu redor. Em meio a um verdadeiro arco-íris reluzente, Feena abriu seus braços e girou seu corpo soltando uma longa e gostosa gargalhada. Como uma criança, divertia-se na presença dos gentis bichinhos; sentiu-se confortada. Infelizmente ela sabia que não poderia ficar ali por muito tempo, afinal, precisava encontrar ajuda, e uivos famintos ainda ecoavam pela floresta.
– Obrigada. – disse Feena aos vagalumes, enxugando as lágrimas em seus olhos.
Deixando seus amigos brilhantes para trás, a garota voltou a seguir o riacho, que se alargava gradualmente. Não tinha ideia do quanto havia caminhado, mas já podia avistar parte do céu. A lua, grande e amarelada, mostrava-se brilhante e imponente. Caminhou admirando o céu, mas prendeu o pé numa raiz e tombou outra vez. Com o rosto rente ao chão, e irritada consigo mesma, reparou algo logo adiante; o rio bifurcava-se. Parecia ser o fim da floresta. Ofegante, Feena levantou e não perdeu tempo, correndo em direção às últimas árvores.
Não era o final da floresta, mas uma grande clareira. O rio bifurcava-se curvilineamente por alguns metros, formando uma pequena ilha, e no centro havia um velho casebre. As paredes eram feitas de cedro escuro, e o telhado parecia ser de uma madeira bem velha e mais clara. As janelas estavam quebradas e não podia avistar a entrada de onde estava. Um musgo de cor violeta crescia com vigor nas laterais daquela construção, e era possível ver colônias de pequenos cogumelos avermelhados em sua base. Feena caminhou ao longo da margem, pelo lado de fora do rio, circundando o casebre na esperança de ver alguém. Logo reparou dois indivíduos na frente da casa, e seu coração se encheu de alegria. Um deles parecia estar sentado enquanto o outro pulava contente.
– Moradores. Posso pedir ajuda e quem sabe consiga até mesmo uma refeição. – pensou Feena lambendo os lábios.
A garota manteve seus impulsos sob controle, e com cautela aproximou-se devagar. Após sua experiência com Henry, queria observá-los antes de tentar qualquer abordagem. A pequena ponte de madeira que ligava a ilhota ao outro lado do rio não era muito extensa, mas sua madeira estava bastante destruída. Feena caminhou despercebida, cuidando com o som de seus passos, e antes de terminar a travessia, algo chamou sua atenção. Não se tratava apenas de um homem sentado, mas sim um jovem louro ajoelhado e acorrentado feito animal. Ao redor dele uma garota de cabelos negros dançava alegre. Seu vestido esvoaçante de seda escura tinha grandes adornos na parte de trás, e seus sapatos eram estranhos e disformes. Seus passos e pulos eram leves como de uma nobre dançarina e por diversas vezes pareciam não tocar no chão.
Feena retomou a travessia da pequena ponte, mas se deteve; fora tomada por terror e espanto ao reparar melhor na garota de cabelos escuros. Os detalhes do vestido eram asas como de uma borboleta, e os sapatos estranhos eram pés como de um falcão. Tinha uma forte pintura negra ao redor dos olhos, e uma pequena corrente logo abaixo dos lábios. Sua risada era sádica e seu olhar maldoso e dissimulado. A situação tornava-se mais estranha a cada segundo. O jovem de cabelos louros não tinha um olhar triste ou irritado, mas sim concupiscente. Era um olhar pervertido; puro prazer em estar subjugado.
– Pelos deuses, o que é aquilo? – perguntou a si mesma.
Feena paralisou. Sentiu também certa indignação e repulsa. Um calafrio percorria-lhe a espinha à medida que observava tamanho sadismo. A criatura dançou e rodopiou ao redor do jovem louro por mais algum tempo, e após soltar uma longa gargalhada, cessou todo movimento e assim permaneceu; imóvel, como se estivesse em profundo sono. Com as pernas trêmulas, a garota tentou recuar despercebida, mas a traiçoeira ponte de madeira rangeu mais forte do que o esperado. Não pode evitar o grito de espanto quando a cabeça da criatura simplesmente torceu em sua direção. Com os olhos focados nos seus, a cabeça inclinada, e um sorriso sádico, a criatura passou a língua por suas, agora reveladas, presas; a pura maldade que exalava de seus olhos era como uma lança afiada apontada em direção à sua alma.
– Corra. Apenas corra! – disse uma voz misteriosa.
Quem havia dito aquilo? Não importava. Feena deu meia volta e disparou em direção à floresta de onde viera. Confrontar aquela criatura seria suicídio. Ela sabia disso em seu coração. Apavorada e sem olhar para trás, correu tentando despistá-la. Fazia zigue-zagues pelo caminho, e às vezes mudava subitamente de direção. Estava sendo perseguida? Não arriscaria descobrir. Correu por entre as árvores, cortando-se e tropeçando no caminho, até que parou; seu fôlego terminara, e suas pernas cederam ao cansaço.
Resfolegou por alguns segundos; estava em quase completa exaustão. Ao levantar a cabeça sentiu seu coração disparar. A criatura alada já estava à sua frente; parada; observando-a com minúcia. Tomada pelo terror, a garota procurava algo para se defender, mas nada encontrava. Apenas pequenos gravetos e folhas jaziam ao redor. A criatura tornou a dançar, mas desta vez ao redor de Feena. Entre gritos e gargalhadas, cantava:
Vamos, dance comigo,
A dança das fadas.
Dancemos até o amanhecer,
Dancemos até a presa se render.
Venha, dance comigo,
A dança das fadas.
Dancemos até meu fartar,
Dancemos até meu saciar.
Feena entendeu de imediato o significado daquelas palavras. Tornara-se a caça daquele monstro. Lembrou-se também do velho pescador, e partilhou dos mesmos sentimentos. Foi isto o que aquele velho homem sentiu ao confundi-la com alguma ameaça? A garota também não pretendia virar comida. Seguindo os passos de Henry, um resquício de coragem cresceu dentro de seu peito, e se levantando, fitou a criatura nos olhos.
– O que é você? – perguntou.
A criatura parou de dançar e sorrindo respondeu:
– Uma fada. O que mais eu seria? – riu novamente.
– Fadas deveriam ser bondosas. O que é você? – confrontou-a.
– Não sou bondosa? – perguntou a fada com um sorriso inocente. – Bondosas devem passar fome? – tornou a dançar e rodopiar.
Feena permanecia imóvel, observando aquela fada com cautela. À medida que a fada dançava, a adrenalina da garota assustada começava a percorrer seu corpo como uma enchente violenta, e logo sentiu suas forças retornarem às pernas.
– Agora! Corra! – disse outra vez aquela voz misteriosa.
Sem pensar duas vezes, Feena disparou por entre as árvores escutando um urro de raiva da fada. Não importava a direção; só queria fugir daquela criatura viciosa. A densa floresta causava cortes em sua pele e roupas. A adrenalina permitia-lhe correr além de seus limites; com a visão turva via as árvores passando como borrões. A garota ignorou seus machucados e percorreu tamanha distância que causaria inveja no melhor dos velocistas. Talvez a tivesse despistado com sucesso, mas sabia que não podia parar; entendia que seu corpo desabaria assim que parasse de correr.
– Por que não danças comigo? – perguntou a voz da fada vindo do alto.
Feena apavorou-se e sentiu o forte impacto contra seu peito que jogou seu corpo para trás. Tão logo levantou a cabeça, reparou na criatura sentada no galho de uma das grandes árvores, sorrindo em sua direção. Seria impossível escapar daquela situação? Não tinha forças para correr, muito menos reagir. Talvez distrair a criatura até recobrar um pouco do fôlego fosse a única solução.
– Por que me persegues? – levantou-se resfolegando.
– Ora, porque sou uma fada. – respondeu com seu típico sorriso.
– E o que pretendes fazer comigo?
– Dançar. Dançar, dançar, dançar e me alimentar. – respondeu lambendo suas presas.
– Por favor, deixe-me ir. Juro nunca mais invadir seu território. – Implorou Feena.
– Não. – A fada negou de imediato, como uma criança nega emprestar um de seus brinquedos favoritos.
– Fadas deveriam ser aliadas dos humanos. Isso não faz sentido. – Confrontou Feena.
– Cansamos. Sim, nós cansamos. E quanto a nós, fadas? O que ganhamos? Somos caçadas como animais. Animais para o entretenimento de humanos sujos. Nos fizeram escravas, alimento, e nos trancafiaram para seus mais pervertidos prazeres. Mas agora nós caçamos. Sim, nós caçamos humanos. – disse a fada mudando seu semblante.
Seu rosto, não mais um misto de inocência e sadismo, tornara-se maligno e repleto de ódio. Assim que desceu ao chão, cerrava os punhos e lambia suas presas.
– Humanos não merecem as fadas. Não, eles não merecem. – resmungava a criatura, cada vez mais irritada.
– Mas eu nunca cacei uma fada. Para falar a verdade, julgava-as apenas lendas infantis. – tentou argumentar.
– Descrença. Ainda pior do que a caça. Descrença nos fazem fracas. – disse a fada curvando para frente, em postura de ataque.
As fadas haviam sido criadas por Hitinas durante a grande guerra. A Andonah do gelo, tomada de remorso, desejou desculpar-se com Fergahia e Ostilionus, então criou um ser gracioso e bondoso a fim de dar suporte aos fracos humanos que sofriam nas mãos dos Anuihkas. As fadas detinham imenso poder de cura, e eram ágeis em batalha. Após a guerra, continuaram de mãos dadas com os homens, mas tal aliança logo encontrou seu fim. Vistas como ameaças a Kal-Har, foram perseguidas e mortas por homens de mente perversa. Muitas foram trancafiadas e usadas como meios de prazer, desde sexuais, até mesmo para atrações de circo. As poucas sobreviventes tornaram-se obscuras e viciosas; esconderam-se em densas florestas, caçando qualquer um que invadia seus territórios.
Feena, apesar de apavorada e exausta, não pretendia desistir. Esperava atenta por uma chance; resistiria até o último suspiro.
– Não corra. Confie em mim. – disse outra vez a voz misteriosa.
A criatura alada não parecia ouvir tal voz, e a garota sem muitas opções decidiu por confiar. Fitava sua algoz sem mover um músculo sequer.
Antes que a fada atacasse, os primeiros raios de sol invadiram as árvores, iluminando a ambas. A fada deu um urro de dor e pulou para o lado.
– O sol. Não gosto dele. Sua luz machuca. – disse a fada após recuar para a sombra. – Ainda é cedo! Por que tão cedo, Ostilionus?
O medo da criatura alada não passou despercebido. A garota caminhou com cautela para o ponto mais reluzente. Fartou-se de correr e chorar; decidiu confrontar a situação, afinal, tinha uma clara vantagem em mãos.
– Você me quer? Venha pegar. – blefou Feena; um sorriso trêmulo aparecia no canto de sua boca.
A criatura caminhou ao redor, evitando os locais onde o sol iluminava. Seus olhos continham ódio e frustração. Mordia os lábios com tamanha força que um sangue escuro escorria pelo queixo.
– Maldita seja. Humana maldita. Arrancarei cada pedaço de seu corpo. Banhar-me-ei em seu sangue. Sim, seu sangue. – Balbuciava com os punhos cerrados.
– O que aconteceu? Dance comigo. A dança das fadas – enfatizou a última palavra com desdém.
A criatura tentou uma frustrada investida, mas tinha pavor da luz do sol. Incapaz de alcançar sua presa, gritava e balançava a cabeça. Delongar a situação complicaria seu retorno.
– Humana imunda. Não acabou. Não. Fadas não desistem de uma presa. Ainda vou subjugá-la. – disse a criatura recuando e sumindo por entre as árvores.
Feena também estranhou aquele amanhecer precoce. Era como se o próprio sol tivesse acordado mais cedo para salvá-la. Talvez Ostilionus tivesse ouvido seus gritos? O importante era que estava segura por hora. Aliviada, sentou-se à luz do sol e suspirou.
– Obrigada. Seja lá quem você for, obrigada. – Agradeceu à misteriosa voz que a salvara três vezes.
A fada aparentava ser uma criatura noturna, o que lhe daria muitas horas de vantagem e segurança. Não queria delongar sua estadia naquela floresta, então descansou por alguns minutos e se levantou. Continuou a caminhar, procurando outra saída. Feena evitava os locais mais escuros, e seguia por caminhos onde os raios de sol perfuravam as árvores, pois a Fada poderia estar por perto, escondida; aguardando para dar o bote. Às vezes podia jurar sentir o olhar vil daquela criatura emanando por detrás de algumas folhagens.
Faminta, machucada, e exausta, vagou por horas pela densa floresta. Seus olhos pesavam pelo sono acumulado, mas o medo a mantinha acordada. Em meio a estranhos arbustos enxergou um pouco de luz. Não vinha do alto; a luz trespassava a vegetação horizontalmente.
– Por favor, seja uma saída. – Pensou alto correndo em direção à luz.
Ao cruzar a última arvore deparou-se com uma grande clareira. Não era uma saída. O sol iluminava forte, e uma grande árvore erguia-se ao centro. Tinha uns dez metros de altura. As folhas eram espessas e formavam um domo vegetal. Era o lugar perfeito para descansar. Examinou a terra com minúcia e ajeitou-se. Frustrava-se pela falta de memórias, mas agradeceu por aquele local. A luz solar esquentava seu corpo gelado. Massageou seus pés machucados, e fechou os olhos por alguns momentos. Sentiu sede e fome. Esquecera-se de dois dos seus maiores problemas. Não bebia água desde o riacho, e mal se lembrava do gosto da comida.
Feena olhou para cima, para o interior daquelas grandes folhagens. Reparou um fruto gordo e vistoso; era esférico e tinha uma coloração violeta. Parecia tão apetitoso que a deixou com água na boca. O tronco era ramificado e entrelaçado, e não parecia difícil de ser escalado.
Frutos de Jizha eram raros, mas bastante conhecidos em Kal-Har. Suas sementes eram quase sempre inférteis, impossibilitando a plantação de suas árvores para comercializar. O gosto da fruta gordurosa era diferente de outras comuns, pois dependia do estado emocional daquele que a ingerisse. Felicidade, tristeza, raiva, ansiedade, e outros sentimentos ligavam-se diretamente ao gosto do fruto, o que trazia um certo misticismo ao alimento. Crenças populares diziam que os próprios Andonah alimentavam-se de Jizha, e que ingerir seus frutos poderia trazer bençãos ou maldições.
Seria fácil escalar aquela árvore sob condições normais, mas seu corpo estava bastante debilitado. Os inúmeros cortes e esfoliações ardiam como fogo, e seus pés tinham tantos calos e bolhas, que mal podia manter-se em pé.
A garota ignorou seu estado físico e iniciou uma difícil escalada, em direção ao topo. Por inúmeras vezes sentiu a força esvair-se, mas a fome era ainda mais forte. Os galhos eram um pouco grudentos, como se cobertos por uma seiva fétida ressecada, mas isso facilitava seu objetivo. À medida que subia, percebia o quão fechado e tenebroso era aquele domo de folhas. Só de imaginar que tipos de insetos habitavam aquele recinto causava um arrepio em sua espinha. Movida pela fome, continuou a escalar. As frutas iam tornando-se maiores e ainda mais apetitosas. Tão cedo alcançou o interior das folhas, sentiu certo receio, mas introduziu seu braço tentando alcançar o fruto. Assim que o puxou para fora, algo definitivamente moveu-se no interior do domo. Feena culpou sua imaginação e exaustão, e ignorou o ocorrido.
Apoiada sobre um galho ramificado ajeitou o corpo e mordeu o fruto com vontade. Era delicioso. O sabor adocicado desceu por sua garganta como um verdadeiro manjar. A casca não era muito dura, e o interior tinha uma consistência mole, gordurosa e suculenta. Talvez fosse por causa da fome, mas era tão apetitoso que sentiu a vida voltar ao seu corpo. Apenas um não era o suficiente; desejou mais. Assim que direcionou os olhos ao interior das folhas, assustou-se. Dois pequenos olhos vermelhos e brilhantes a observavam de dentro do domo. Talvez fosse um morcego, afinal, o sol estava forte, e aquele era o esconderijo perfeito. Pensou em espantar o bicho e continuar sua escalada, mas ao menor sinal de movimento aqueles dois olhos tornaram-se quatro, e em seguida oito. Não sabia o que eram, mas moviam-se em sua direção. A garota queria recuar, mas aquele galho era seu único apoio. Apavorou-se quando duas patas peludas e grandes deixaram a proteção das folhas. Não eram morcegos, mas sim um enorme aracnídeo. Tinha visto coisas bem estranhas desde que acordara na praia, mas era difícil acreditar no tamanho daquilo.
Aracnes, as aranhas daquela floresta, eram muito temidas pelos Kal-hasianos. Criadas pela própria Thalnis, uma dos Anuihkas originais, eram muito espertas e organizadas; bastante sorrateiras, utilizavam-se de muitos truques sujos para enganar até mesmo experientes caçadores. Não devoravam suas vítimas no local do ataque, mas as levavam para profundas cavernas subterrâneas. Homem algum jamais atreveu-se a aventurar-se em tais lugares.
Aos poucos a criatura deixava o recinto e aproximava-se da garota indefesa. Os pedipalpos tocavam o galho próximo ao seu corpo, e as grandes quelíceras deixavam escorrer um líquido esverdeado. Após sobreviver a tantos perigos, virar comida de inseto não estava em seus planos. Queria resistir, mas seu corpo estava dormente. Seria culpa do fruto? Comera algo envenenado? Sentiu seus braços e pernas formigarem. A aranha assumia uma postura hostil, mas o corpo de Feena soltou-se do galho. A dormência fê-la despencar da enorme árvore. Sentiu suas costas batendo contra a grama. Sua visão tornou-se turva; perdera a consciência.