Como Sobreviver no Apocalipse Coronado - Capítulo 5
28 de Agosto de 2023 – 14:50 PM
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O som de água descendo pelo chuveiro, alcançando o chão e escorrendo lentamente para o ralo fez Ayslan intoxicado por um momento, seus olhos se avermelharam.
“Tão difícil, foi tão… difícil.”
Esse único pensamento repetia em sua mente como se não houvessem outros adjetivos para descrever seus sentimentos, aliviado sua mente relaxava e ele saboreava uma mordida de cada vez, o pequeno pedaço de bolacha que ele comia seguido pelo gole de água ocasional. Só quem passou fome e sentiu o desespero da morte podia verdadeiramente apreciar a vida.
Seus olhos fitavam a porta do banheiro fechada, e ele pensava que não importa o que aconteça, ele vai pagar o preço nesta vida pela graça salvadora que lhe fora dada.
Enquanto tomava banho, Kay sentia arrepios, a febre ainda estava presente, igual a sua primeira noite no apocalipse, porém, desta vez ele ainda conseguia guiar todas as suas ações, coordenar sua mente para a complicada tarefa de tomar banho, e mesmo há alguns minutos, quando saiu de sua tontura por conta própria e continuou lutando uma luta perdida.
Ele sentia que se tornou endurecido por todas as situações que passou, como um ferro sendo purificado no processo de forja, para lutar destemido mesmo diante da morte, matar sem hesitar e eficientemente, ele nunca imaginou em hipótese alguma que fosse ser capaz de fazer algo do tipo.
— Eu estou sobrevivendo, não é mesmo? — falou baixinho, quase como se fosse apenas um pensamento que escapou de sua mente.
Desligando o registro, ele saiu do box, alcançando a toalha e secando seu corpo de frente ao espelho que refletia sua figura bem construída, ele não parecia como alguém que vive em um país tropical, sua pele branca era algo saído diretamente do norte, ou qualquer lugar com um longo inverno.
Suspirando ele vestiu sua cueca e saiu com a toalha na cabeça, Ayslan já havia parado de comer, tendo escutado seu conselho de ingerir pouco alimento, ele estava sentado encarando meio atordoado, — Me diga o que você sente? — perguntou à Kay.
— Dor de cabeça, febre moderada, tontura e meu estômago dói.
— Humm, venha, eu ainda tenho remédio para dor e febre. O que você mais precisa é descansar, pegue primeiro. — Ayslan se levantou e pegou uma sacola velha e retirou os comprimidos ordenadamente, ele se virou para pegar um copo, porém foi parado por Kay, que estendeu a mão e pegou os comprimidos.
Ele virou a cabeça para cima e engoliu um de cada vez, só com saliva. — Não podemos gastar muita água, eu acabei de beber meio litro quando entrei…
Graças à insistência de Ayslan que ele fosse deitar e descansar, ele deitou na cama e posicionou seu corpo de lado. — Vamos, conte por que está por aqui, arrumou emprego?
Ayslan, impotente, conversou com o paciente de sua cadeira rente a cama. — Na verdade consegui uma vaga como professor no IFPB, não lhe contei antes porque queria fazer uma surpresa para você, Letícia e o Douglas, pagar uma rodada de bebidas naquele bar perto da igreja da estação.
— Eu não tinha muitas esperanças, mas venci meu concorrente com a prova de título, mestrado e doutorado serviram para alguma coisa, haha.
Ayslan é um Doutor em biologia celular, tendo conhecido Kay há 4 anos, quando ainda fazia o doutorado e trabalhava numa escola pública, na verdade eles haviam ficado uma vez, porém Kay gostava de outra pessoa na época, e tudo não passou de beijos.
Ele continuou o monólogo — Eu vim à cidade antecipadamente para alugar um apartamento e resolver outras coisas. E um rolo antigo finalmente saiu do museu, essa é a casa dele, porém acredito que o rolo foi de um museu ao necrotério.— Sua voz soava opaca, e entristecida quando falava essa parte.
Kay tentou mudar de assunto: — Quando eu descansar precisamos aproveitar a chance e revistar os apartamentos desse andar enquanto não há zumbis.
Confuso, Ayslan indagou: — Como assim, não há zumbis?
— Eu os matei. — Kay tentou soar indiferente, mas havia um sorriso leve nos lábios.
— Você e que exército?— Ayslan zombou dele, mas ainda estava impressionado. —Quantos haviam?
— Sete… oito se você contar o rato gigante como um, ele é o único que resta, ao menos no quinto e sexto andares… — Ele deu de ombros e suspirou, — Aquele filho da puta que me fodeu, quase fui morto depois de cercado.
— Na verdade eu tive sorte, havia um zumbi canibal, e com canibal não falo que ele come humanos, e sim outros zumbis.
Ayslan interrompeu o relato oportunamente: — Canibal? Que estranho.
— Não é? — Kay concordou com o colega.
Kay então recontou vagarosamente as situações pelas quais passou, Ayslan exclamava e se preocupava na recontagem detalhada, mas ele interrompeu na parte da culinária e olhou espantado para Kay — Sem intoxicação alimentar? — Essa era uma piada interna, pois quando se conheceram Kay não podia preparar nem um miojo.
Ele riu e falou que a intoxicação não conseguiu derrubá-lo, mas que se quisesse viver, era melhor Ayslan preparar todas as refeições daqui em diante.
O tempo passou e a noite já havia caído, entre as conversas e risos, Kay cochilou por meia hora, a febre já havia cessado, e ele já estava bem desperto.
Lavando o rosto, ele trocou para o moletom cinza, o par de calça jogger preta, e o tênis da Nike de corrida — que foi limpo por Ayslan, enquanto ele dormia — em comparação com seu visual anterior, ele estava com um ar ágil e sentia que seu corpo conseguiria realizar qualquer movimento rapidamente e com precisão, se admirando no espelho ele se virou e falou: — Vamos juntos, vasculhar sozinho vai levar muito tempo, siga atrás.
Ele encontrou o olhar encorajado de Ayslan, que seguiu atrás de si, e saiu do quarto, abrindo a porta ele checou com os olhos pelas brechas e saiu depois de confirmar não haver infectados, toda a comunicação era feita de forma tácita e nenhum dos dois falava, porém Kay estreitou os olhos ao entrar no corredor.
— Isso… Não estava tudo fechado quando eu cheguei aqui? —Em sua frente havia uma porta escancarada, do lado esquerdo era a mesma coisa, das quatro só uma porta estava fechada, achando a situação muito estranha, ele fez um sinal com a mão aberta por trás de si, para alertar Ayslan de que algo estava errado. Ele andou até a porta da frente, temendo o pior ele posicionou seu facão e espeto de churrasco, Aylan carregava sua mochila e a outra faca amolada por Kay.
Engolindo em seco os dois deram passos silenciosos, e de repente a única porta fechada abriu de uma vez, rompendo o silêncio que se alastrava no corredor. Virando suas cabeças quase ao mesmo tempo eles encararam dentro do AP que estava escuro como um breu, as luzes do corredor piscavam, dando uma atmosfera assustadora.
Kay viu dentro do escuro um garoto, seu primeiro pensamento foi que essa era a primeira vez que viu uma criança zumbi.
Entretanto, como se zombasse dos dois com os olhos arregalados, o garoto abriu a boca, proferindo duas palavras: —MUITO FODA! — Kay e Ayslan se entreolharam, e um grande — hã? — soou em coral.
Recuperando a calma, a atmosfera assustadora agora havia se dissipado, o garoto fez uma pose de dar a língua, como se tivesse se divertido pregando uma peça com maestria
—Como você fez aquilo, tio?
— Do que você está falando? — Kay olhou para o menino, que só parecia ter 11 anos, ainda mais baixo do que ele mesmo naquela idade.
— Estou falando de você matando todos eles de uma vez, foi incrível! Eu já joguei Resident Evil, e se juntasse uns 3 em mim eu morria, porém SEIS? Caralho, eu te venero.
— O que é isso garotinho, você escutou nossa conversa mais cedo? — Kay estava visivelmente confuso, não houve testemunhas de sua batalha “épica”. Quando subiu as escadas e esbarrou em Ayslan, ele acreditava que só restava os dois no prédio, e talvez nem houvessem outros zumbis, pois não reagiram ao som.
— Eu assisti lá do meu quarto, quando escutei os barulhos eu pensei que talvez se os zumbis se distraírem eu poderia trocar de AP, e pegar comida nos outros 2 APs vazios do andar, porém enquanto eu assistia, você foi matando um por um, e eu perdi minha chance porque aconteceu muito rápido.
— Como não sabia se você tinha boas intenções eu fiquei escondido, aí vi você indo pro meu vizinho e nada aconteceu, pensei: ele deve ser um cara bom, aproveitei enquanto vocês ficaram parados, e pilhei os APs desse andar. — O garotinho fez um “V” com os dedos e sorriu presunçosamente.
Kay mostrou uma face confusa, Ayslan era o mesmo, ele falou claramente que viu, viu a luta, viu o encontro deles, viu até quando foram descansar, mas a pergunta saiu involuntariamente: — Como?
“Ele tem alguma câmera escondida no prédio?” Kay olhou ao redor, mas não tinha nada do tipo. Não, mesmo que houvesse, como ele teria colocado uma câmera em outro AP que não fosse dele?” Descartando sua própria hipótese ele olhou impotente, enquanto aguardava a resposta.
O garoto se aproximou e falou: — Para ser honesto eu também não entendo, porém eu consigo “ver” as pessoas quando eu fecho os olhos e me concentro.
— Não sei exatamente qual é a distância do efeito, mas eu fico cansado se olhar por muito tempo. E também não consigo dizer se o alvo é um zumbi ou uma pessoa normal, a não ser que eu o observe por um período prolongado e distinga entre seus comportamentos.
— Os zumbis geralmente ficam parados muito tempo em pé se não forem estimulados por algum som, se um dos alvos se portar de forma diferente disso, já posso suspeitar que é uma pessoa— explicou o garoto de forma concisa e muito precisa, fluentemente.
— Isso… Super poder?— Kay completou, meio em dúvida, meio acreditando, tem zumbis por aí, por que um super poder não pode existir?
— Eu apelidei de Radar, mas ainda não escolhi um nome de super herói, alguma sugestão?
— Sai dessa, guri. Você está sozinho?
Pela primeira vez, o menino caiu em silêncio, ele mordeu os lábios e acenou que sim.
Kay percebeu o que pode ter acontecido. Suspirando ele falou — Sinto muito, qual o seu nome? Eu sou o Kay e esse daqui é o Ayslan — disse ele apontando para Ayslan e olhando de volta para o garoto, que já havia se recomposto.
— Michael — respondeu ele se apresentando. — Eu devo agradecer a vocês, na verdade não tinha mais alimentos comigo, comi o último hoje, mesmo que o que você fez não tenha sido para me salvar, muito obrigado.
Diferente da maioria das crianças, Michael se portava como um jovem adulto, extremamente educado.
— Não foi nada. — Olhando para Michael agindo assim, Kay ficou triste com o amadurecimento precoce dele.
— Hum, tio Kay, por que não entramos, ficar aqui fora é má ideia.
— Me chame só de Kay, ok? Por que você diz isso?
— Tenho um pressentimento, não sei explicar.
— Ok, vamos para sua casa, e pegamos as coisas para ficarmos no AP do Ayslan.
Sentindo que a coisa mais valiosa de hoje foi ter encontrado Michael, que é praticamente uma torre de vigilância e um escoteiro fundidos, ele estava muito satisfeito. Depois de organizar os espólios, eles podem até conseguir sair dessa área muito habitada, vagando por onde houver menos infectados, com a habilidade de Radar, evitar lutas e se preparar para alguma inevitável também é possível.
Relaxado, Ayslan olhou para o obediente Michael e comentou: — Nesse caso, você não seria um Esper? Logo sua habilidade que é extra sensorial é um ESP, sim, é assim que eles classificam esse tipo de habilidade. Quando eu estava na faculdade havia um professor especialista em estudos paranormais do tecido cerebral. Nunca vi pessoalmente, mas escutei que existem pessoas com habilidades esquisitas.
— Não soa nada legal, mas como odeio posers que falam sem propriedade, já que você disse que não é exatamente um super poder, então vamos com a nomenclatura certa.
Kay e Ayslan sentiam que o garoto era incrivelmente sensato, além disso ele tinha uma maturidade que você podia nem ver num adulto.
— Boa você é sensato, bem melhor que meus colegas da Facul — elogiou Kay sem hesitação.
Terminando de mover os suprimentos, os 3 entraram no AP fechando a porta por trás de si. Naquela noite, todos tinham esperanças de sobreviver, e a solidão e o desespero que durou uma semana se dissipou como nada.