Conflagratus: Dever e Direito - 4
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- Conflagratus: Dever e Direito
- 4 - Há vezes em que algo acontece por pura coincidência, há vezes em que há motivos
Para a minha surpresa enquanto eu me preparo para bater à porta algo sem minha ação acontece. Magicamente a porta se abre e tenho como horizonte o meu pai alocado em seu bureau.
Devo ressaltar que a sua mesa de madeira nobre é bem organizada, com apenas alguns papeis e livros sobre. Afora duma taça e duma garrafa… de vinho? Bem, eu queria julgá-lo por isso, mas não posso dizer que eu não faria o mesmo. Vinho é tão bom!
Além disso. É-me engraçado. É engraçado, não é? Usar æther para realizar ações banais como a de abrir uma porta, não era mais fácil simplesmente levantar-se, ir à maçaneta e abri-la? Pai, sei que tu és velho, mas também não és tão velho assim…
Ademais, se eu não estiver enganado o Collegium Religiosi até mesmo condena o uso do æther, a quintessência deste mundo, de maneira descabida e desonrosa…
Espero que os deuses relevem essa heresia do meu pai.
— Rito e noivado — dotado duma cara de poucos amigos o meu pai me aborda de maneira sucinta.
É, ele realmente está bravo. Geralmente o meu pai é alguém extremamente falante, com alguns vícios de linguagem claros, mas que facilmente perde o controle das suas emoções.
Contudo, quando ele está no estágio de nem sequer aparentar estar bravo… é porque ele está demasiadamente bravo.
Como eu sei disso? Bom, além de ele ser meu pai, certa vez há muito tempo eu usei uma armadura reluzente dele de boneco de testes para as minhas magias e ele quase acabou com a minha raça… Só que isso é história para outra hora.
Bem, eu esperava falar sobre um dos dois assuntos, mas não sobre ambos. Isso me surpreendeu. Ao acenar positivamente com a cabeça para ele, ele então continua:
— Aurelius, meu filho… O rito de patriarca está marcado para a próxima semana, mas não posso deixar de sentir certo receio com toda essa situação — com um suspiro seguido dum semblante sério ele inicia a conversa.
— O teu irmão Lucius, apesar das suas falhas, não é uma pessoa ruim, realmente não é, e é isso que me causa dor de cabeça.
— Somos a maior Domus na área militar do império, pilar extrafundamental para a manutenção da ordem e prosperidade em todas as províncias do império.
— Tê-lo no comando pode ocasionar em investidas de outras Domus que buscam maior poder e influência… — meio desanimado meu pai me introduz na situação problema.
De antemão eu pensava que o tom dele estaria bem mais raivoso, que ele me falaria mal e me repreenderia por estar atrasado. Mas, não, sabes por quê? Eu sei o porquê.
— Aurelius… Guerras, meu filho, eu falo de guerras — o foco dele é claro.
Essa conversa, tudo o que foi dito até agora, eu já ouvi milhares de vezes em formas diferentes desde que foi decidida a realização do rito. E, mesmo assim, eu realmente espero que ele não vá pedir-me o que eu acho que ele irá, o que eu sei que ele irá.
Ele quer pedir-me um favor, é claro que não seria grosseiro ou bravo comigo.
Aja antes para que não ajam contra ti. Principalmente se quando ao não agir tu terás que assumir uma responsabilidade que não é tua originalmente…
— Senhor Lucius Conflagratus Avitus, pare antes que exprima cousas desnecessárias — interrompo o longo solilóquio dele.
— Tu ainda és um Conflagratus, Aurelius Conflagratus Avitus — a mostrar-me dentes brancos, tal como neve, adjuntos a uma cara trocista Lucius me retruca irritantemente.
— Ainda — remarco.
Para um homem nobre não há nada mais gratificante do que ter em sua posse o Patria potestas. E não há nada mais humilhante do que estar sob o Patria potestas de alguém que não seja o seu progenitor.
Pode-se dizer que até mesmo estar subordinado ao Patria potestas de seu progenitor é algo vergonhoso em certas situações. Sem poder, sem direito jurídico, sem privilégios, sem respeito, sem prestígio social. E o principal: sem sua hombridade.
Pequenos pássaros uma hora precisam erguer suas asas e abandonar o conforto do ninho, não precisam?
É por isso que não é raro ver homens nobres não primogênitos escolherem voluntariamente deserdar-se das suas Domus para criar a sua própria, mesmo em casos onde a sua nobiliarquia é de elevado grau.
E eu não penso de forma diferente, não quero viver em ostracismo a minha vida inteira, não quero ser subordinado ao meu irmão. Aja antes para poder agir antes deles. Sempre!
— Certo, certo… Estou a ver que novamente essa discussão não irá a lugar algum — Lucius desabafa com nosso pequeno embate.
— Com a tua licença, irei retir- — Espere — meu pai ordena em reação ao meu agir.
— Ainda há outro assunto a ser discutido. Como está a tua relação… As cousas para ti em geral com a tua noiva Valeria? Eu espero realizar o teu casamento em breve.
Ah, que pena! Pensei que poderia fugir de mais uma indagação igual eu fiz novamente ao assunto do rito. Estava um clima favorável para isso.
Fingir que no começo ele nunca se propôs a dizer sobre algo que não seja o rito de patriarca, era uma boa estratégia… Deuses, quase consegui!
— Estão-mas de maneira confortável — respondo com poucas palavras na tentativa de não estender a conversa.
— Confortável? — sem compreender muito ele me questiona.
— Bom… tu sabes como ela é. Não há muito que eu possa fazer para mudar a essência dum indivíduo, ainda mais da minha futura mulher. Nem sequer creio que isso seja o correto.
Por meu capricho mudar a essência dalguém sem que essa pessoa nunca desejasse mudança tem um nome: egoísmo.
Valeria Deciduus Ferrarius, condessa da Domus Deciduus e também a minha noiva desde os meus 10 anos de idade.
É irônico: um nome com significado de «Forte, corajosa» nomear uma pessoa que demonstra fraqueza e medo em todos os seus movimentos.
Eu não fico feliz em dizer isso, mas a Valeria não é uma mulher capaz de demonstrar coragem ou força em situação alguma. Talvez por conveniência ou talvez por receio.
Devo dizer que era de se esperar, afinal, no estado atual das cousas o seu noivado comigo é a possível salvação da Domus Deciduus. Haver a nascença duma mulher de espírito forte em tal situação é quase como uma utopia, a fragilidade existente é muito antes dela. Ela não tem culpa.
Apesar disso, são 8 anos de noivado, não são? 8 anos a viver no palácio em meio de todos os membros da minha família. É lógico pensar que nos conhecemos muito bem, certo? Bem…
Eu e a Valeria somos quase como dois estranhos, água e óleo, ela não sabe nada sobre mim e eu tento ao máximo saber algo sobre ela. O que ela pensa, o que ela gosta, o que ela faz.
Só que mesmo assim é difícil, ela não é uma garota muita expressiva ou comunicativa. E pensar que no começo ela era muito mais tímida e medrosa do que atualmente…
Impressiono-me comigo mesmo como eu consegui fazê-la «abrir-se» para mim na medida do possível.
— Tu realmente não queres falar sobre esses assuntos, não é? Aurelius.
— Não é que eu não queira, apenas não quero falar agora. Deixe o tempo passar, não é melhor?
— Aurelius… O problema é o tempo passar e tu não teres opção de volta… — Lucius pega a taça de vinho que estava ao seu lado e dá um gole — O tempo é cruel, lembra-te disso.
Após meu pai ouvir minha resposta ele se dá por satisfeito, ou talvez apenas desiste de tentar extorquir falas de mim, e permite minha saída. Não é como se eu tivesse algo a mais para comentar sobre a situação.
E a cansativa discussão sobre o futuro finalmente se encerra sem nenhum vencedor aparente, eu faço as minhas despedidas e enfim saio de seu escritório com mais uma preocupação plantada em mente…