Conflagratus: Dever e Direito - Capítulo 13
No dia 30, no mês de Julho, do ano de 626 a sétima criança da Domus Conflagratus nasceu. Apesar de ser a sétima, essa criança era apenas o segundo homem que recebeu o milagre da vida nessa casa.
Seu signo, por obviamente ter nascido em Julho, é o de Leão. Um zodíaco que demanda atenção e que demonstra orgulho em sua aparência e atos.
O significado do nome dessa criança é «O dourado, o garoto de ouro». É claramente um nome dotado de importante significado.
Seu nome é Aurelius Conflagratus Avitus, essa criança é o meu irmão caçula.
Ao apresentá-lo a mim e às minhas irmãs, minha mãe comentava sobre o quão bonito esse bebê era e como deveríamos cuidar dele para todo o sempre.
«Isso é o que significa ser família», dizia ela.
Seus olhos brilhavam como se estivessem a refletir a luz da pedra mais preciosa já manuseada por um humano. Será que é isso que significa amor? Será que é isso que é ser uma mãe? Será que realmente é isso o que significa «família»?
— Será que ela também me segurou desse jeito? Ah… — sozinho em meu quarto eu penso.
Contrário ao o que ela dizia, acredito que, das minhas irmãs que já possuíam capacidade cognitiva de entender a existência de um bebê, apenas Cecilia adotou um afeto imediato nessa relação.
Se naquela época eu não entendia muito bem o que se passava na cabeça dessa garota, nesta época atual eu afirmo que eu realmente não faço ideia.
E mesmo se todas as outras irmãs compreendessem o momento, elas provavelmente teriam uma reação parecida com a minha. A reação dum nobre havia de ser indiferente.
Mesmo que fôssemos irmãos, mesmo que fôssemos jovens seres. Ainda assim, todos ali sabíamos que éramos nobres. A existência de mais uma criança afeta diretamente e indiretamente todas as faculdades desta vida, principalmente se essa criança for um homem. Distribuição de pecúlios, terras, títulos, bens…
Contudo, eu ainda me sentia extremamente tranquilo com a existência desse pequeno garoto. «Patria potestas», não importa o que aconteça esse direito é algo exclusivo meu.
O direito do primogênito, ou do primeiro filho homem em casas que não concebem primeiramente um homem, já havia sido destinado para mim, essa proeza divina é inegável. Isso me fazia de certa forma desprezar o possível perigo que Aurelius poderia representar.
Em um cenário hipotético no qual eu poderia imaginar, e que também é comum em diversas famílias, é o acontecimento de brigas e lutas internas por esse direito.
«Brigas e lutas» é um eufemismo de minha parte, guerras e assassinatos seriam as palavras corretas. Mas tenho medo de tais palavras, não quero usá-las…
O caso mais famoso sobre isso é a lenda de Cain e Abel: dois irmãos, a ser Abel o mais velho e Cain o mais novo. Gêmeos não idênticos, nascidos com apenas 1 segundo de diferença.
Essa diferença foi ocasionada por responsabilidade da parteira que precisamente puxou a perna de Abel antes da perna de Cain, a destiná-los assim para o resto de suas vidas. Um puro acaso definiu seus futuros.
Cain nunca aceitou a perda de seu direito, ele argumentava que 1 segundo de diferença não poderia definir o futuro de ambos, não poderia privá-lo de disputar o patriarcado em sua família.
Entretanto, a lei divina é clara: apenas o primogênito possui tal direito magistral. Seus pais nunca consideraram suas reinvindicações e lamentos, sempre a preterir seu irmão mais velho, Abel, em tudo.
Pobrezinho do Cain? Não. Pobrezinho de seu irmão, Abel, que houve de aturar um pirralho malmandado por toda a sua vida. Só que um futuro predeterminado ainda esperava Cain…
Tudo isso fez com que Cain caísse em profunda cólera, a jurar por acabar com a vida de seu irmão no momento mais importante possível: o rito de passagem do patriarcalismo. E posteriormente a abandonar a sua própria casa.
No dia do rito, Cain cumpriu sua palavra em comparecer ao local do evento, preparou um exército pessoal e foi ao ataque contra o seu próprio irmão.
Abel, não menos, também estava preparado para essa batalha, ele preparou um exército para aquela ocasião. Depois de 7 dias e 7 noites de intensa batalha o inevitável aconteceu: Abel matou Cain, pondo assim um ponto final nessa rixa histórica ao negá-lo completamente do direito em questão.
Esse era o destino que esperava por Cain, era a justiça máxima. Não havia como ele fugir disso.
«Não tentar usurpar o direito que não é seu.», «Não lutar contra o destino proclamado pelos deuses.» são as nítidas, tais como cristais, lições retiradas dessa lenda. A tentar, ao menos, ensinar e acabar com as brigas internas que acontecem pelo direito de patriarca.
Dito isso, mesmo que acontecesse uma briga, ainda assim eu me tranquilizava. Esse tipo de enfrento acontece quando os irmãos nascem em datas próximas, a ter assim um desenvolvimento mágico, intelectual, monetário propínquos.
Uma diferença de 1 a 5 anos em geral. Não é este o meu caso, nossa diferença sempre será 7 anos.
Quando eu realizar o meu décimo sétimo aniversário ele realizar-se-á seu décimo, quando eu realizar o meu vigésimo quinto aniversário ele realizar-se-á seu décimo oitavo. E assim continuar-se-á.
Nossa distância sempre deixará claro o superior e o inferior. E assim continuar-se-ia… até o meu aniversário de 11 anos.
Era o meu aniversário e também o dia que seria arranjado a minha noiva, minha futura esposa. Pouco importava o meu aniversário, mas muito importava quem seria minha noiva. Uma grande festa estava a ser preparada para a ocasião.
Essa cerimônia contaria com a presença de diversos nobres da alta aristocracia, Constantinus, o primeiro príncipe, seria o representante dos Primus nesse momento tão memorável.
A relação Conflagratus-Primus é primordial para a ordem no Império há muito atrás.
Por eu ser um nobre, o meu casamento não seria algo normal. A nobreza possui um direito especial chamado de «Conubium».
O Conubium é referido como o verdadeiro casamento entre um homem e uma mulher, porém só realizado quando ambos são nobres.
Os benefícios dessa união formal são incontáveis. Por exemplo: ao homem é recebido um título especial oriundo da capital real que o permite criar sua própria Domus caso desejado.
Às mulheres são direcionados incontáveis dotes por parte da família do noivo, um dote é em suma um pagamento por retirar uma mulher de sua casa.
Entristece-me dizer que por conta disso o aspecto sacro do casamento é quase anulado em totalidade, a ser mais uma ferramenta política do que uma união entre amantes.
O fato de que minha família, como marqueses, se casar apenas com condes, viscondes ou em última instância barões, apenas pessoas da baixa nobreza, demonstra bem isso.
Um casamento entre marqueses ou entre marqueses e duques poderia ocasionar em uma grande tensão entre duas casas importantes, o que não é desejado.
Tudo neste país é pensado na prosperidade e ordem da nação como um todo, a ser assim o sentimento romântico entre os indivíduos é ignorado a maioria das vezes. É suprimido.
E eu também era vítima desse sistema.
Minha futura noiva seria por convenção uma viscondessa: Oliva Mollicellus Viscosus, a segunda filha dos Mollicellus.
Os Mollicellus, como são comuns de viscondes, trabalham muito em investimentos do Império, em particular minérios.
Uma dessas empresas que eles estão a investir nos minérios se concatenava com os objetivos dos Conflagratus, e ultimamente, portanto, houve um abeiramento entre nossas famílias.
Meu pai achou sensato então casar seu filho com a filha deles a fim de que eles ratifiquem cada vez mais capitais na exploração desses minérios.
Ter em nossa mão uma jazida tão fértil de minérios era uma mercê. Ainda mais quando há a especulação de haver minérios mágicos nessas jazidas.
E para tal casamento ser possível, Oliva precisava duma idade mínima, a qual ela tinha, Oliva tinha 7 anos, a exata idade mínima permissível ao noivado.
— Uma garotinha de 7 anos que tinha medo de olhar-me nos olhos… — paro a minha recordação do passado por um instante.
— Como será que ela está hoje? Espero que bem… — suspiro enquanto observo o belo jardim de flores pela janela.
Ao nos sentarmos a mesa para iniciar a cerimônia nossos pais nos colocaram sentados ombro a ombro, o objetivo era fazer-nos envolver-se um com o outro, conversar mais e conhecer por inteiro a essência do outro.
Não existia amor previamente entre nós, mas se ao menos uma fagulha de amor nascesse de nossos encontros forçados seria algo conveniente para ambos.
Só que isso era difícil, não importa o que eu falasse ou sobre o que eu a falasse, ela não me dirigia uma palavra. Nem sequer me olhava nos olhos.
Eu comecei a desesperar-me, sentia-me culpado pela situação e pelo desconforto que ela sofria, bem como o desconforto que eu causava no momento.
Detesto admitir, mas não tenho muita facilidade com as mulheres. Seja hoje ou no passado, deixam-me nervoso.
Um longo período de silêncio então reinou entre nós, a minha solução foi covarde: fugir do local. Isso é um defeito meu que tenho desde criança, quando as cousas ficam ruins eu me desespero e fujo…
Mas talvez não tenha sido tão covarde assim, pois no meio do caminho eu me arrependi e comecei a pensar em alguma maneira de fazê-la conversar comigo.
Minha solução foi baseada no pensamento sobre o que uma criança da idade dela mais gostaria: brinquedos.
Apressei-me ao quarto da Cecilia, que era a minha irmã com a idade mais semelhante à idade dela. Ainda mais ao considerar o quão alegre e brincante ela era, eu sabia que encontraria brinquedos úteis para melhorar o clima daquela situação.
Lá dentro comecei a pegar as mais diversas bonecas, cordas, cadernos, tintas e tudo que poderia dalguma forma deixá-la mais propensa à conversa.
Era meu dever como seu futuro noivo ajudá-la a abrir-se e conhecê-la, mesmo a ser apenas mais um casamento entre nobres eu gostaria de ao menos ter tentado amar.
Após enfiar os mais diversos objetos dentro dum saco eu me pus em velocidade para chegar até ela. A pensar se não estava a exagerar, se ela não iria ficar mais acuada com essa situação ou se ela se sentiu só enquanto eu estava fora.
Quando voltei à mesa destinada a nós na qual pela última vez a vi havia uma surpresa: ela não estava lá.
Imediatamente me desesperei mais ainda e corri para encontrá-la. Perguntei sobre ela para todos os vernae da casa que eu encontrava pelo caminho, até que finalmente um deles me disse que a viu no balanço aos fundos da casa.
Direcionei-me ao balanço e lá vi algo que mudaria a minha vida para sempre…
— E às vezes eu ainda sonho com essa situação, até hoje…
Eu me lembro de tudo como se fosse ontem. Com ódio profundo eu apertei os brinquedos que estavam em minha mão. O vento soprou pela minha cara no momento a jogar meus cabelos para o ar.
Oliva estava sentada com Aurelius em um dos balanços de madeira preso à árvore. O mesmo vento soprava fortemente os seus assentos que transladavam de cima para baixo.
Ela estava feliz, enquanto conversava com Aurelius no balanço. Em poucos, e breves, momentos de interação ambos brincavam como amigos de longa data. Essa era a impressão que eu tinha a ver de fora.
Talvez porque Aurelius seja bem mais novo que eu, seja mais novo que ela, ela se sentiu em maior segurança para interagir com ele?
Ou talvez Aurelius tenha alguma magia que faça seu carisma aumentar e contagiar as pessoas em sua volta? É bobo, mas é um jeito que eu tento negar o que aconteceu…
Não sei, eu realmente não sei nada. Mas eu sabia que por mais chulo seja, Aurelius naquele momento havia conseguido algo que eu, o primogênito, não conseguira.
Eu senti uma profunda tristeza e uma ansiedade profunda de maneira igual. Não pelo fato de Aurelius ter «roubado minha noiva» ou algo do tipo. Nós havíamos nos visto pela primeira vez. Eu e Oliva não sentíamos nada um pelo outro.
Mas sim porque naquele exato momento eu reconheci Aurelius como uma ameaça, reconheci-o como alguém que poderia desafiar-me um dia e privar-me de meu destino. Aurelius demonstrava potencial para conseguir cousas que eu não conseguia.
Eu não conseguia mais vê-lo como o «caçula fofo da família» assim como a minha mãe ou a Cecilia o via. Naquele exato momento Aurelius se tornou Cain.
A relação entre nós dois se tornou conturbada a partir dali, mas por total culpa minha. Eu buscava fugir dele, não a importar onde eu esteja eu não queria estar na presença dele e gerar mais medo, mais ódio em meu coração.
E isso resultou em meu foco em exclusão. Covardemente eu me excluía das relações familiares, dos eventos onde todos nós estaríamos juntos.
— Eu não quero ser comparado com ele. Eu não quero que as pessoas questionem a minha legitimidade, o meu direito, o meu destino — porque se em algum momento isso acontecesse… Eu sei que serei o elo fraco.
— Eu simplesmente não quero competir contra ele… — sento-me na cama e ponho as mãos em minha cara.
Depois de tanto refletir eu me sinto cansado, olho para o clepsidra no canto do quarto e vejo que já são 11h da noite, é tarde.
— Melhor eu ir dormir e deixar de pensar em besteiras. O meu rito de patriarca está por vir. Eu não posso demonstrar ser fraco nisso.
De tudo nesta vida, o único assunto que eu não posso ser fraco é isso. Eu não serei fraco nisso. Nunca.