Crônicas dos Caídos - Capítulo 1
O sinal tocou, encerrando a aula de geografia. O professor já havia saído da sala há alguns minutos, dando liberdade para os alunos conversarem à vontade. Júlia tentava anotar o que o professor havia escrito na lousa, antes que o de matemática chegasse. Ele tinha o hábito de apagar o que for que estivesse escrito assim que entrava na sala. Ela poderia ter copiado durante a aula, porém, havia passado a maior parte dela trocando bilhetes com Carmen. A garota sentada a sua frente, que a importunara a respeito dos detalhes sobre o dia anterior, e agora, estava tampando a visão de metade da lousa.
— Carmen, vira a cabeça para o lado, não dá para ver — falou, abanando as mãos, como se quisesse espantar uma mosca.
— Foi mal — respondeu a garota, se contorcendo para o lado.
Embora copiasse o mais rápido que pudesse, isso de nada adiantou. Pois seu professor de matemática apagou todo o conteúdo na lousa, e logo depois saiu da sala, falando qualquer coisa. Seus ombros caíram, e um suspiro desanimado escapou, enquanto olhava para o quadro em branco a sua frente.
— Droga — disse, baixando cabeça e braços sobre a mesa.
— Júlia — chamou alguém atrás dela —, você pode copiar do meu depois.
Era Ítalo, que passara aula anterior inteira enchendo o professor de perguntas. Era ótimo que ele, e seu caderno, estivessem por perto nesses momentos. Isso é, se ela entendesse o que estava escrito.
— Obrigada — respondeu aliviada.
— Cara, que letra horrível. Fico surpresa que consiga entender algo disso — disse uma garota em pé, ao lado deles.
— Lá vem a insuportável — resmungou Ítalo — você não cansa de atravessar a sala só pra me encher o saco?
— Fico onde quiser — retrucou ela —, e nem morta eu daria um passo pra falar contigo, vim dizer “oi” para a Jú.
Ela se sentou no colo de Júlia enquanto falava.
Ítalo fechou sua cara e afundou sua cabeça no caderno extremamente rabiscado a sua frente.
— Leticia, o professor vai chegar logo, sai de cima — pediu Júlia, enquanto era usada como almofada pela amiga.
— Só quando eu souber o que rolou ontem — Ela passou seus braços pela cabeça de Júlia.
— Ah, depois eu falo, agora sai — Tentou tirá-la de cima, porém Leticia era mais forte.
A garota já estava começando a ficar pesada. Talvez estivesse comendo muitos salgados após a escola.
— Depois nada. Eu vi vocês trocando bilhetinhos a aula toda, viu gata — ela olhou para Carmen —, e eu aqui fiquei de fora.
— Ela não me deixava em paz, juro — Júlia tentava se desvencilhar, sem sucesso.
— Ei, eu estou ouvindo viu — Carmen protestou.
— E nem eu vou deixar também até saber de tudo — Leticia continuou, ignorando-a — Me conta, vai, desembucha de uma vez. Quero saber o que aconteceu, como foi, esse tipo de coisa, amiga.
— Não foi, é… nada de mais. Eu e ele… — Júlia parou de falar quando percebeu o professor entrando na sala.
— Muito bem, vocês já tiveram tempo o bastante para conversar e ir ao banheiro. Agora, sentem-se — Ele olhou para elas — Andem meninas, parem com isso, é inadequado.
Reclamando, Letícia se levantou e voltou a sua cadeira no fundo da sala. O resto dos alunos também já havia voltado aos seus lugares. Exceto por um. Júlia olhou para a mesa ao seu lado, que ainda estava vazia.
— Como todos sabem, as provas bimestrais serão em duas semanas, então… — O professor foi interrompido por um garoto alto e magro, entrando na sala.
Seus cabelos estavam, como sempre, bagunçados. Ele nunca os penteava antes de ir à escola. Julia reclamara várias vezes sobre isso.
— Jonas, acho que esqueceu que estamos no terceiro período e não no intervalo — advertiu o professor, com um olhar de reprovação no rosto.
— Foi mal, a porta do banheiro emperrou — respondeu Jonas, com seu habitual sorriso de deboche no canto dos labios.
— De novo? É a terceira vez que acontece, e só com você.
— Acho que sou especial, então — gracejou dando de ombros.
— Sente-se — ordenou o professor.
Ele obedeceu, se acomodando no assento vazio ao lado de Júlia. Ela se inclinou para conversar.
— Algum dia você ainda vai se dar mal por isso — sussurrou, com uma voz zombeteira.
Ele não respondeu.
— Eu achei aquele livro que você me falou outro dia. Vi naquela livraria do… — Ela parou de falar ao perceber que ele não prestava atenção — Jonny — chamou.
Sem mexer a cabeça, ele virou os olhos em sua direção, e depois voltou a olhar para o professor. Sem entender, Júlia apenas o encarou aborrecida.
— Ei, Jonny, ficou surdo? — falou mais alto.
— Sem conversas durante a aula, vocês dois — avisou o professor.
Júlia voltou a sua postura habitual, e afundou em sua cadeira.
O professor deu alguns avisos sobre as aulas posteriores e as provas. Após isso, ele fez a chamada.
Havia sido assim a manhã inteira. Ele não falara nada e mal olhara para ela. Mostrando uma cara aborrecida sempre que ela tentava lhe falar algo, ou apenas a ignorando. Poderia ter sido algum problema em sua casa, ou outra coisa? Ele não gostava de falar sobre esses assuntos, e guardava tudo dentro de si, permanecendo quieto. Mas ela o vira brincando e rindo com seus amigos, na hora em que chegara. E falando com o professor de português, sobre alguns jogos que ambos gostavam. Ele só agira dessa forma com ela. Talvez ainda fosse aquilo. Não, ele não guardaria rancor por causa disso, não tinha por quê. Ela não tinha feito nada errado. Talvez Jonas só estivesse tentando se concentrar. Sua sala jogaria a final do campeonato de futsal da escola após aquela aula. E jogariam contra time do terceiro ano B. A sala em que o namorado dela estava.
— Jú, é o seu — avisou-lhe Carmen.
— Ah, presente — Ela respondeu, se levantando da cadeira com a mão estendida para o alto.
— Júlia — o professor disse, revirando os olhos — o seu número é o vinte e dois, agora que eu estou no doze.
Ela se encolheu, envergonhada, enquanto os outros riam ao seu redor. Podia ouvir a risadinha de Carmen a frente. O professor continuou a chamada.
— Quinze — disse, olhando para a turma.
— Faltou — responderam todos, em uníssono.
— Fernando, já é a terceira falta seguida dele — Anotou a falta em sua prancheta. — Alguém tem alguma notícia?
Os alunos se entreolharam confusos, enquanto alguns tentavam dar motivos ao professor. Júlia viu um grupo, que se sentava ao fundo da sala, rindo enquanto conversavam, mas afastou o seu olhar.
Após a chamada, o professor deu início a aula, e antes que percebesse, ela já tinha acabado, sem que Júlia tivesse copiado qualquer coisa do conteúdo. Ela também teria que copiá-lo do caderno de Ítalo pelo visto.
Os meninos do time se apressaram para o banheiro, Jonas estava entre eles. Eles teriam de se trocar para o jogo. Ela se juntou ao grupo de garotas que organizavam a torcida, distribuindo faixas, camisas e cartazes.
— Essas blusas ficaram perfeitas — comentou uma delas que pintava um cartaz.
— Sim, valeu por elas Jú — falou outra.
— Não foi nada, minha mãe que fez tudo — Ela respondeu, timidamente. Elogios a deixavam desconfortável.
Sua mãe possuía uma gráfica em casa. Eles haviam feito tanto os uniformes dos meninos, como os da torcida pela metade do preço, desde que pusessem seu logo neles.
— Vou pedir para todos os garotos assinarem a minha — disse Letícia, cantarolando.
— Acho que seria estranho sair por aí com uma roupa toda rabiscada — apontou Júlia.
— Não é para usar, é para guardar como recordação. Você deveria fazer também, Jú — Leticia começou a encher um balão com confete.
— Não sei, eu não acho que esse tipo de coisa combina comigo — Júlia resmungou, pouco à vontade.
— Besteira, vai ser algo legal pra se lembrar. E ainda podemos pedir para escrevermos nossos nomes nos uniformes deles — Ela começara a inflar o balão com uma bomba de ar, que algum dos garotos havia trazido.
— Para com isso, ela tem namorado — disse Carmen, cutucando Leticia.
— Ah, verdade, seu cara não ia gostar se a namorada dele aparecesse de repente com a camisa lotada de nomes de meninos, né? — Ela amarrou o balão e passou para o próximo.
Júlia revirou os olhos.
— Não tem nada a ver com isso — protestou.
— Vamos logo, senão perderemos os lugares — disse um garoto da turma, as interrompendo.
— Tá, tá, já estamos indo — Leticia bufou, o espantando com a mão.
A escola inteira se movera para a quadra. Todas as salas se reuniram nas arquibancadas, gritando, vaiando e brincando. A energia de tantas vozes juntas fazia o coração de Júlia pular. Eles se sentaram em seu lugar habitual. De frente para o acesso ao pátio. Onde se era possível ver o lugar inteiro, e as pessoas que ainda chegavam. Ela se sentou no primeiro degrau da arquibancada. Carmen e Letícia estavam ao seu lado. Se pegou olhando para os Juízes, que checavam as traves e redes.
— Por que eles fazem isso? — perguntou, para ninguém em particular.
— Não sei, talvez alguma mania estranha — Carmen gritava por conta do barulho da multidão.
— É por causa do protocolo, para checar se está tudo em ordem para o jogo — Ítalo respondeu. Ele estava sentado no degrau acima delas.
— Protocolo? Mas isso é um jogo de escola — Carmen disse brincando com suas tranças.
— Não é só um jogo de escola, é a final, e estamos nela — Ítalo falou com um sorriso na cara.
— Continua sendo só um jogo escola — pontuou Carmen.
Letícia puxou Júlia para o seu lado.
— E aí, Jú, vamos voltar pra aquele assunto — Ela sussurrou, alto o bastante para toda a classe ouvir.
— Que assunto? — Júlia perguntou, fingindo não saber.
— Não se faz de sonsa, estou falando de você e do Eduardo lá do terceiro B — Leticia deu-lhe leves tapinhas em seus braços.
O estomago de Júlia se remexeu.
— Não foi nada demais, nós só saímos ontem após os jogos — ela sentia como se estivesse sendo interrogada.
— E? — persistiu a garota.
— Fomos a uma pizzaria. Comemos, conversamos. Ele… disse que gostava de mim, e eu, disse que também gostava dele — Júlia sentiu seu rosto queimar.
— E aí? — Letícia persistiu.
— E aí, o quê? — Júlia perguntou perturbada.
Letícia revirou os olhos e suspirou.
— Você o beijou ou não? — gritou ela.
Antes que pudesse responder, Júlia viu um garoto alto, magro, com o cabelo desarrumado, vestindo um uniforme de time, olhando para elas. Assim que o viu, ela abriu a boca, querendo cumprimenta-lo, mas algo em seus olhos a fez engolir as palavras.
— Olha aí os caras, vai ser de quanto hoje? Três a zero, quatro? — Leticia saudou, tanto a ele, quanto o resto do time que chegara.
Jonas passou por elas sem dizer nada. Júlia sentiu-se incomodada.
— Qual é o problema dele? — perguntou transtornada.
— Ele tá se concentrando — respondeu, Leandro, outro garoto do time.
Enquanto falavam, notaram um retumbar de tambores se aproximando, sobrepujando os demais sons. Acompanhado de gritos que ecoavam pela quadra.
— Terceiro B, terceiro B — gritavam.
— Tá de brincadeira? Eles estão nos deixando para trás — Letícia se levantou e virou, olhando para o resto da turma. — Ei, gente, vamos nos animar.
— Segunda A, segundo A — bradaram em resposta.
Outras turmas do segundo ano também lhe ajudaram. Todos queriam derrotar o terceiro.
— Tá muito alto — disse Carmen, enquanto tampava os ouvidos.
A turma do terceiro B passou por eles, cantando e dançando, em um sinal de provocação. Júlia observou a cena das duas salas “brigando”, sem se importar muito, até vê-lo. Ele se aproximou dela, com um sorriso que a deixava tonta. Sussurrou algumas palavras carinhosas ao ouvido, e lhe deu um rápido beijo, antes de se afastar junto de seus colegas, cumprimentado quem estava ao redor.
Ela pode sentir seus pés levitando. Como se estivesse flutuando e saíndo da terra. Então foi trazida de volta por Letícia, que a agarrou, agitando seus ombros.
— Garota, você vai me dizer tudo agora — gritou Letícia, histérica, enquanto a chacoalhava.
— Chega, Lê, minha cabeça já tá doendo — reclamou, tentando se soltar.
O diretor começou a falar no microfone, saudando a todos que haviam comparecido. A escola havia aberto os portões para os de fora entrarem. Afinal, alguns familiares e ex-alunos sempre se faziam presente para assistir aos jogos. Depois anunciou as partidas que seriam realizadas no dia. Além da final do futsal, ainda haveria as finais de carimba e de futebol feminino. Júlia fez parte da equipe de carimba. Como as equipes eram mistas, meninos e meninas podiam participar. Eles haviam sido eliminados no segundo jogo.
Ela estava indo bem, já tendo carimbado duas garotas. Até ser acertada por um dos garotos da equipe adversária. Ela tropeçou e caiu antes da bola acertá-la, fazendo-o se desculpar enquanto a ajudava a levantar, pensando ser sua culpa. No outro dia, ele veio até ela pedindo para conversar e tentar recompensá-la pelo ocorrido. O interclasse acontecia durante um mês inteiro, com jogos sendo realizados em dois dias a cada semana. Isso ocorrera na primeira semana da competição. Agora, um mês depois, eles estavam namorando.
Ao fim de seu discurso, o diretor, por fim, deu início ao último dia dos jogos. Com o primeiro deles sendo a final de futsal feminino. Júlia não estava especialmente interessada. Preferindo picotar confete para jogá-lo após vencerem a final.
— O que vocês acham que aconteceu com o Fernando? Ele não aparece tem um tempo — disse uma das garotas que cortava o papel laminado junto dela.
— Eu sei lá — falou Carmen —, aquele garoto é estranho. Fica falando sozinho, e passa o intervalo inteiro olhando para o nada.
— É, mas, é raro ele faltar. E eu o vi chorando perto do canal semana passada… ah, droga — ela praguejou, derrubando o papel picotado no chão.
— Chorando? Por quê? — Júlia quis saber.
— Não sei — respondeu enquanto tentava apanhá-lo.
Júlia sentiu uma pontada de desconforto em seu estômago. Suas mãos começaram a tremer. Ela olhou para os garotos que se sentavam no fundo da sala. Eles estavam lá, brincando e rindo, enquanto se alongavam se preparando para a partida, como se não tivessem nada a ver com isso. Mas tinham. Ela sabia. E Jonas, que havia lhe contado tudo, estava entre eles como se não tivesse visto nada. Ela se levantou de repente, assustando uma das meninas ao seu lado. Quando percebeu, já o tinha puxado pelo braço, e o levado até o corredor abaixo da arquibancada.
— Que merda é essa? — Ele protestou, se soltando.
— Ah, finalmente você falou comigo — Júlia cruzou os braços em revolta.
Jonas bufou.
— Quê? Do quê cê tá falando? — disse, franzindo o cenho.
— De nada, deixa isso para lá — murmurou ela — Mas me fala, por que tu tá falando com aqueles caras? Você que me disse o que eles fizeram com o Fernando semana passada.
Jonas olhou para os lados e respirou fundo.
— Eu sei o que eles fizeram, tá bom. Não achei legal, mas também não é como se isso fosse algo que eu tenho a ver. Estamos no mesmo time e eu quero vencer essa partida — ele se virou.
— Mas… — Júlia estendeu a mão para o seu ombro.
— Se quiser falar algo sobre isso, fale pros professores, tá bom? E com quem eu converso é problema meu, assim como quem você beija é seu.
— Quê? Do que você tá falando? O que é que tem a ver? — Ela perguntou confusa.
— Nada, não tem nada — disse ele, com uma expressão desagradável no rosto. — Agora me deixa me preparar pro jogo. Seu namorado pode não gostar de te ver com outro cara.
Sem dizer mais nada, Jonas deu as costas para Júlia e seguiu de volta para onde os garotos estavam. Irritada, ela também voltou para o seu lugar, esbarrando com alguém no caminho.
— Opa, algum problema? — Era o professor de educação Física.
Ela o encarou atordoada.
— Não, nenhum — respondeu olhando para o chão.
Pouco depois, o jogo das garotas já havia acabado. Com uma goleada do terceiro B sobre uma turma do primeiro ano. Quatro a um. Uma garota, em especial, tinha se destacado, marcando três gols. Ela possuía um corpo atlético bem definido. Júlia se atentou mais a esse detalhe quando ela passou por perto de Eduardo, lhe dizendo qualquer coisa enquanto trocavam algumas risadas. Por um momento ela sentiu seu rosto queimar.
A final do carimba foi consideravelmente rápida também. Com a maioria dos participantes de um dos times sendo eliminados por um garoto de moicano de outra turma do segundo ano. Então finalmente chegara o momento da final do masculino.