Crônicas dos Caídos - Capítulo 10
Ela podia ouvir os sons do que pensou serem os berros das criaturas. Não conseguia dizer se estavam perto ou longe, o tronco oco em que se escondera abafava os ruídos ao seu redor. Não sabia a quanto tempo estava escondida ali. Pareciam horas, mas o suor frio ainda escorria por seu rosto. Conseguira, por pouco, fugir dos monstros, correndo para dentro da floresta. Ainda podia sentir suas mãos nojentas, seus dedos ossudos, e seus odores asquerosos. Eram eles, sabia. Estavam lhes observando desde a noite anterior. Tinha sentido seus passos leves em meio a quietude e escuridão da floresta. Eles não poderiam encontrá-la, certo? Ficaria tudo bem. Os garotos logo apareceriam e resolveriam aquela situação. Sim os garotos. Eles eram confiáveis. Júlia havia dito que eram confiáveis, e eles apareceram para salvá-las.
Júlia. Ela havia escapado? E Leticia?
Não sabia, não tinha como saber. Tudo o que Carmen sabia era o que os sons a sua volta lhe diziam.
Seu coração saltou quando algo estalou próximo a ela. Pareciam ser galhos, partindo e quebrando, mas o que os quebrava? A resposta veio na forma de vozes grotescas. Era como se suas gargantas se rasgassem a cada palavra. Ela se encolheu, abraçando os seus joelhos. Por mais que seu peito inflasse, o ar não parecia chegar a seus pulmões. Seu corpo tremia enquanto tentava prender a respiração.
Ouvia-os cada vez mais perto.
Não a haviam seguido, certo? Isso não era possível. Os garotos estavam lutando contra eles. Mas onde os garotos estavam? Por que não estavam ali? Por que não estavam ajudando-a?
Ela olhou através de algumas aberturas que havia no tronco, na direção em que ouvia os sons. Pode ver quatro figuras grotescas arrastando uma garota pelos braços. Era Júlia, percebeu. Parecia desacordada, sendo carregada como uma boneca de pano. A essa altura, seu corpo já estava cheio de cortes e terríveis hematomas roxos. As criaturas berravam entre si de forma agitada. Uma delas olhou em sua direção.
Carmen baixou o seu corpo instintivamente. Ela se encolheu, pondo as mãos sobre a boca, e prendendo a respiração. Seu movimento amassou algumas folhas, produzindo um barulho, alto demais para os seus ouvidos. Ficou imóvel por alguns segundos, sem escutar qualquer som. Ela passou a mão pela cintura, ficando aliviada por aquilo ainda estar lá. Decidiu segurá-la em sua mão, tirando-a da bainha. Ouviu novamente os berros das criaturas, e resolveu olhar de novo pelas brechas do tronco. Elas estavam paradas no mesmo lugar, olhando para todas as direções, como se procurassem por algo. Júlia estava caída aos seus pés.
Eles pareciam agitados antes, por que pararam?
Carmen os observava, segurando firmemente o que tinha em sua mão, atenta aos movimentos dos monstros. Quando então sentiu um hálito quente em seu ombro, que eriçou os pelos de seu pescoço. Ela se virou, para dar de cara com perversos olhos vermelhos, os mesmos que lembrava ter visto na escuridão da noite anterior. Por reflexo, ela pulou para trás, batendo com as costas no tronco oco. O monstro pulou em cima dela, tentando agarrá-la com suas mãos ossudas. Embora pequeno, ele era muito forte, conseguindo mantê-la presa abaixo de si. Carmen tentou empurrá-lo, mas a criatura não se movia. Sentiu o calor molhado de lágrimas escorrendo por seu rosto. O monstro soltou uma risada grotesca, como se aquilo o agradasse.
Ela apertou suas mãos.
Ainda sentia aquilo que havia pegado no pequeno riacho em que despertaram. Sem pensar muito, ela o enfiou no monstro. O punhal entrou em seu corpo sem muita resistência. O monstro gemeu de forma agonizante. Carmen sentiu o corpo dele tremer por cima dela. Ela o empurrou derrubando-o no chão, e se levantou, saindo de dentro do tronco. Ao ouvir os berros, percebeu que os outros a tinham notado, e logo viu dois deles correndo em sua direção, enquanto outros dois seguravam Júlia.
Não me pegarão, não desse jeito, pensou.
O punhal ainda estava em sua mão. Ela o apertou firmemente, o mantendo recuado próximo ao seu corpo para poder atacar rapidamente quando os monstros avançassem. O primeiro pulou em cima dela erguendo o porrete acima da cabeça, deixando seu corpo exposto. Em um movimento rápido, Carmen deu um passo para trás, virando de lado e deixando-o passar por ela. Logo depois espetou o punhal nas costas da criatura, que se afastou soltando uma espécie de rosnado. Andou alguns passos e caiu no chão, se debatendo.
Carmen observava a criatura lamentar quando sentiu algo acertando a lateral de sua barriga. Ela se contorceu, ficando de joelhos e derrubando o punhal de sua mão. Por pouco conseguiu saltar para o lado, a tempo de escapar do segundo golpe do porrete. Com passos desengonçados e largos, ela se afastou.
Ouviu uma risada grotesca. A criatura parecia se divertir com a sua dor.
O monstro que segurava Júlia resmungou algo para ele, que respondeu com outro berro grosseiro. Parecia ser alguma forma estranha de comunicação. Aparentava estar o mandando se apressar, ou fora isso que pareceu a Carmen, quando este caminhou em sua direção.
Ela respirava com dificuldade, se dobrando de dor, enquanto encarava o monstro prestes a lhe atacar. Mas dessa vez não havia nada em suas mãos, e mal podia se mover. Seu corpo começou a tremer quando pensou em ser tocada por aquelas mãos nojentas mais uma vez. Ou era isso o que pensava que ia acontecer até ouvir gritos estridentes, seguidos de outros monstros, pelo menos meia dúzia deles, alguns estavam enegrecidos. Berravam todos o mesmo som com vozes que de alguma forma pareciam mais esganiçadas do que antes.
Carmen sentiu o cheiro de carne queimada vindo deles.
Ela deu um passo para trás, pensando que também haviam chegado para atacá-la, mas ao invés disso eles continuaram correndo, desaparecendo de sua vista. Os outros dois monstros pararam, olhando um para o outro, repetindo o mesmo som que eles fizeram. Então outra coisa surgiu por entre as árvores, erguendo um porrete acima de sua cabeça com as duas mãos. Ele o bateu contra a cabeça do monstro mais próximo de Carmen, derrubando-o no chão. O bicho tentou se levantar, mas voltou a ser atacado, repetidamente, com golpes brutais. O outro, que estava próximo de Júlia fugiu, deixando-os para trás. O homem que aparecera se virou em sua direção, estava coberto de sangue.
Era Caio, o amigo louco do namorado de Júlia.
Incrédula, Carmen caiu de joelhos, tremendo, enquanto seu coração saltava em seu peito. Sentia como se um carro desgovernado tivesse parado completamente, centímetros antes de atropelá-la.
— Achei — ela o ouviu dizer.
Caio estava com marcas roxas por todo o corpo. Sem prestar a menor atenção em Carmen, ele correu diretamente para onde Júlia estava caída. Leticia chegou logo depois. Havia um arranhão em seu rosto, e seu corpo parecia tão machucado quanto o de Caio. Carmen correu para abraçá-la.
— Lê — disse a agarrando.
— Uou garota, o que foi?
— Eu tava tão assustada — A apertou com seus braços sentindo o calor de seu corpo.
— Calma, calma, você tá tremendo. Depois a gente fala, agora temos que tirar a Jú daqui — Leticia passou a mão em sua cabeça, e se desvencilhou.
Carmen a soltou.
— Aquelas coisas, elas quase… — disse sentindo sua respiração ficar mais fraca.
— Ei, me ajudem aqui — disse Caio. Ele estava ajoelhado, próximo a Júlia.
Leticia se afastou de Carmen, e foi até eles. Caio cobriu Júlia com sua camisa, e a pôs desacordada em suas costas.
— Nem sei como conseguimos alcançá-los — disse ele. — Eles do nada fugiram, caralho, que cansaço.
— Vamos, é melhor voltarmos para onde os meninos estão, aqueles monstros podem voltar — Leticia falou, ela estava cansada e ofegante.
Eles começaram a andar, sem prestar atenção em Carmen.
— Carmen, vamos — Leticia gritou, olhando para trás, sem parar de andar.
— Já… já vou — Carmen respondeu.
Ela olhou para o chão, procurando o punhal, até encontrar um brilho em meio as folhas caídas. Ela o apanhou e a escondeu novamente em sua cintura.
Eles retornaram ao rio, onde encontraram um amontoado de corpos de monstros sujos de sangue, que se espalhara pelas roxas e areia. Alguns estavam enegrecidos em uma grande mancha escura no chão, como se tivessem sido queimados. Theo e Eduardo estavam sentados em meio as rochas a uma certa distância dos corpos.
“Eles fizeram isso?”
Theo não parecia ferido, mas estava pálido. Ele arfava, enquanto suor escorria por seu rosto. Eduardo parecia estar com o corpo tão ferido quanto Caio e Leticia. Suas roupas estavam rasgadas, e havia hematomas, e enormes arranhões amostra em seus braços. Um dos lados de seu belo rosto parecia ter aumentado de tamanho, e seu olho esquerdo estava roxo. Tinha a imagem da dor estampada na face.
Isso mudou em poucos instantes, no momento em que os vira. Com o que pareceu ser um grande esforço, ele se levantou, e correu, mancando até eles. Até Júlia. A abraçando quando Caio a pôs no chão. Ficaram assim por alguns segundos, até que pelo que pareceu um espasmo de dor, ele soltá-la, e se sentar no chão, com a mão na barriga. Caio e Leticia repousaram Júlia deitada entre eles.
Carmen sentiu algo subir por sua garganta. Embora não tivesse comido nada, um sabor amargo jazia em sua boca. Parecia que tinha mastigado alho.
— Ela está bem? — Eduardo perguntou — Não acorda — tinha uma expressão nervosa em seu rosto.
Ele balançava seu corpo, na esperança de despertá-la.
— Veja se ainda está respirando — Theo sugeriu, se aproximando.
— Oh Theo, para de falar merda — gritou Caio.
— Eu tô falando sério.
— Como eu vejo isso? — perguntou Eduardo.
Carmen se aproximou, e pôs a sua mão próxima ao nariz de Júlia, e então sentiu seu pulso, e pescoço com os dedos, para conferir seus batimentos.
— Está respirando — disse —, e sua frequência cardíaca está normal também.
— Sério? — Eduardo perguntou.
Carmen assentiu com a cabeça, recebendo um sorriso de alívio em resposta.
— Como sabe isso? — Theo a questionou.
— Meu tio gostava de programas e séries de médicos, eu costumava assistir com ele.
Ela pesquisava para saber o que, daquilo tudo, era verdade, imaginando se esse conhecimento poderia ser útil algum dia.
Todos pareceram mais aliviados.
— Mesmo assim, ela não acorda — observou Caio.
— Garoto, calma, ela tá bem, certo Carmen? — Leticia olhou para ela, buscando aprovação.
— S… sim, claro — mentiu.
Embora fosse verdade que seus sinais vitais parecessem normais, Carmen não fazia ideia de quando Júlia fosse despertar.
— É melhor a tirarmos daqui. Não sabemos quando os goblins podem voltar — disse Caio.
— Goblins?
— É como os garotos estão chamando aqueles monstros — Lhe explicou Leticia.
— Mesmo assim, para onde vamos? — Theo indagou — Não conhecemos a floresta, e como estamos, aqueles bichos podem nos seguir para onde quer que formos.
— Não acho que vão voltar, pela forma como fugiram — falou Caio, cuspindo um pouco de sangue no chão.
O que Carmen achou nojento.
— Não devem ter só aqueles monstros nessa floresta — apontou Eduardo.
— Não importa, você viu o que o Theo fez? — Caio disse, sorrindo — Podemos lidar com qualquer coisa… e afinal como tu fez aquilo?
— Mesmo se me perguntar… — Theo parou para respirar — não sei exatamente como fiz… Só senti que podia.
— Mas, tu pode fazer de novo? — Leticia perguntou.
— Eu lá pareço com cara de quem pode fazer aquilo de novo? — disse limpando o suor de sua testa pálida — Quero dizer… não, pelo menos por enquanto.
Carmen puxou Leticia para perto.
— Fazer o que exatamente? — perguntou.
— Você não viu menina?
Carmen negou com a cabeça em resposta.
Leticia apontou para os corpos queimados em cima da mancha negra.
— Aquilo — disse.
Carmen abriu a boca, espantada. Ela intercalou seu olhar, entre Theo, e os corpos queimados, sem entender ao certo o que ocorrera.
— Ei galera, olhem ali — Caio gritou, apontando com a mão.
Carmen, assim como todos, ficou em alerta, pensando que os monstros haviam voltado. Mas percebeu que a direção apontada por Caio era outra. Oposta a floresta. Do outro lado rio, onde duas figuras jaziam em pé, os encarando. Havia uma pequena, e uma grande. Um homem e uma criança.
Caio acenou com as mãos, e foi respondido.