Crônicas dos Caídos - Capítulo 12
Tyler retirou algo do baú, e depois soltou no chão, grunhindo de dor.
— Merda, isso doeu — reclamou, com uma careta de dor no rosto.
— O que houve rapazes? Ouvi gritos — Pamela apareceu, vestindo a túnica que Tyler a havia dado.
Cobria-a dos ombros até os pés, tinha cor de vinho, com losangos pretos na altura das coxas. Embora não marcasse seu corpo como as roupas que usara antes, Ítalo as achou bem atraentes.
— Um bicho nesse baú mordeu a mim e o Tyler — respondeu Ítalo.
— Não tem bicho nenhum — Tyler o contrariou — o que fez isso conosco foi aquilo — acenou com a cabeça na direção do objeto que tirara do baú.
Ítalo, o olhou de perto, reconhecendo o objeto.
— Uma adaga? — observou.
Era pequena, um pouco maior que a sua mão, com um formato curvo na lâmina.
— O que quer dizer com, “fez isso conosco”? “Isso” o que, exatamente? — Perguntou Pamela.
— Toque naquela faca e saberá — disse Tyler, que continuava com a mão sobre o braço que enfiara no baú.
— Não, pera aí — Ítalo parou Pamela antes que ela pegasse a adaga.
Tyler estalou a língua, se afastando.
Ítalo se agachou, próximo a adaga, e a tocou, deslizando os dedos por sua lâmina gélida. Em poucos segundos sentiu os músculos de seu braço pareceram se contrair, enquanto uma dor subia pela sua mão até o seu cotovelo, como se uma agulha fina o atravessasse.
— É, é isso mesmo — disse, soltando.
Tentou mover seus dedos, agora dormentes. Algo estava diferente, como se a sensação de dor fosse mais amena do que na primeira vez.
— Eu ainda não entendi — Pamela cruzou os braços, e suspirou.
— Essa coisa nos deu um choque — resmungou Tyler, visivelmente mal-humorado.
Pamela continuava com um olhar confuso.
— E como isso pôde ter dado um choque em vocês? Eletricidade estática? — questionou gesticulando com os braços.
— Não parece ser isso — Ítalo refletiu, sentindo o movimento de seus dedos voltarem — E está fria, como se fosse feita de gelo.
— Se fosse feita de gelo, derreteria. Mas pelo menos teríamos água — apontou ela — Estou morrendo de sede — soltou um suspiro, fazendo uma careta claramente fingida.
— É, eu também — Ítalo respondeu, sentindo a secura de sua garganta — Mas é bastante dura, então não acho que seja — Por algum motivo ele não queria que a conversa terminasse.
— De qualquer forma deixe isso aí — resmungou Tyler —, é melhor só levarmos o necessário — disse, colocando o que pareciam ser moedas na trouxa que segurava.
Ítalo olhou para Pamela, que sorriu, e se levantou, afastando-se de ambos.
— Vai aonde? — Ele perguntou.
— Tentar fazer a Daisy vestir isso — Ela mostrou uma túnica em suas mãos — Tyler tinha razão, são bem confortáveis.
Virando as costas, Pamela subiu o aclive.
Ítalo suspirou ao vê-la sair. Então voltou sua atenção novamente para a adaga. Tateando pelo chão, juntou ao menos dez túnicas que estavam jogadas pelo chão, e envolveu a adaga com elas. Tomando cuidado para não a tocar diretamente, ele fez uma espécie bolsa, utilizando os tecidos mais grossos que pode encontrar, e a pôs em seu ombro, passando ao redor da cabeça. Talvez por isso, e por não a estar segurando, como Tyler fizera, Ítalo não sentira nenhuma dor.
— Vai levar isso? já disse para levarmos só o necessário — Tyler falou. Seu braço parecia melhor.
— Acho que é necessário, pelo menos para mim — respondeu.
— Você quem sabe — Tyler disse, dando de ombros.
Não era tão pesada. Mas era fria. Sentia isso mesmo através das camadas de tecido. Talvez fosse mesmo feita de gelo, como Pamela sugerira.
Eles checaram os baús restantes, pegando o que achassem valer a pena carregar. Pouco depois Pamela voltara com Daisy, que a essa altura tinha sido convencida a trocar o uniforme escolar pela túnica. Elas se dirigiram a um canto escuro e afastado da caverna. Ítalo se preparava para subir até entrada, na intenção de dar-lhes privacidade, quando Tyler o parou.
— É mesmo, eu quase esqueci — disse, estalando os dedos — Não acredito que ia deixando passar algo tão importante.
— De que? — Ítalo o perguntou, curioso por sua estranha reação.
— Precisamos de algo para guardar água — Tyler respondeu, voltando seu olhar pelo chão, como se procurasse por algo.
Ítalo o encarou como se ele tivesse perdido o juízo.
— Guardar a água? — franziu o as sobrancelhas.
— Sim, ou você planeja levá-la enrolada em panos também? — Ele se agachou em um canto, pegando um tipo de botija, que parecia feita de barro — Esses caras enterraram todos os tipos de coisas com eles, melhor pra gente.
Ele a destampou, derramou seu conteúdo, e a estendeu para que Ítalo segurasse. Talvez pela falta de resposta que demonstrou, Tyler tremulou a botija no ar.
— Que foi? Pega aí — Ele a jogou.
Ítalo a agarrou, saindo de seus pensamentos.
— Temos de arranjar mais — Tyler falava enquanto continuava remexendo as coisas jogadas pelo chão —, não sabemos quanto tempo vamos passar andando nessa caixa de areia.
— Mas… — Ítalo não sabia bem como dizer. Parecia uma coisa obvia demais para se falar.
— “Mas” o que? — Tyler pegou uma botija com o fundo rachado e a jogou para o lado.
Ítalo tentou encontrar as palavras certas.
— C… como assim água? — questionou, estendendo os braços — Estamos no meio de um deserto.
Tyler franziu as sobrancelhas.
— É exatamente por isso que precisamos de água — disse, voltando ao que estava fazendo.
— Tá, mas…
— “Mas”, “mas”, “mas” — Tyler revirou os olhos e balançou a cabeça — Mas o que? Fala logo, isso tá me cansando — gritou.
Ítalo sentiu a língua se enrolar antes de falar.
— O… onde a gente vai encontrar água? — desabafou.
Tyler o olhou, como se tivesse feito a pergunta mais idiota que ele já ouvira. Ficaram em silêncio por um tempo, apenas escutando o repetitivo e baixo som que ecoava na caverna.
— Não se preocupe com isso — disse finalmente, voltando a procurar por botijas.
— Como assim?
— Você vai ver, apenas me ajude — Ele respondeu com o mesmo sorriso incomodo nos lábios.
Após terminarem de juntar botijas, potes, e colocá-los em outra trouxa, as garotas apareceram. Daisy usava uma túnica verde, com cordões dourados amarrando o pequeno decote em volta do pescoço. Ela olhou para eles e rapidamente abaixou sua cabeça.
— Ela não ficou ótima meninos? — perguntou Pamela, piscando um olho.
— Err… sim, ficou muito bonita — respondeu Ítalo, entendendo o recado.
— Ah, sim, claro — Tyler falou, sem sequer olhar para Daisy.
Ele pôs ambas as trouxas com as botijas, e os outros utensílios que havia encontrado, por sobre os ombros e começou a subir o aclive em direção a entrada. Pela quantidade de coisas dentro, Ítalo pensou que poderiam estar pesadas, uma vez que a sua própria lhe era bastante incômoda, mesmo não tendo posto muita coisa, mas Tyler não demonstrou qualquer dificuldade em carregá-la enquanto subia.
— Imbecil — Pamela suspirou, com os ombros caídos.
Os três subiam logo atrás dele, quando ouviram gritos vindos do topo. Correram ao reconhecerem a voz. Lá em cima, se encontraram com Tyler que estava parado, assistindo com uma cara inexpressiva a cena que ocorria a sua frente.
Marcelo gritava e berrava de dor, enquanto um homem alto e gordo, segurava seu braço, aplicando-lhe uma espécie de golpe de submissão, o mantendo no chão.
— Porra, merda — berrava ele — Alguém… me ajuda… Tira esse filho da puta de cima de mim.
O enorme homem sobre ele grunhia como um animal selvagem. Marcelo não parecia ser fraco, e mesmo se debatendo como podia, era mantido preso, como uma criança sendo segurada por um adulto. Ver essa cena fez as mãos de Ítalo tremerem.
— O que tá acontecendo? — perguntou Pamela, atônita — Parem com isso — gritou.
O homem não pareceu dar qualquer importância.
— Me ajudem — Marcelo gemeu, enquanto seu braço era torcido em posição grotesca.
— Garotos, façam alguma coisa — Pamela berrou, olhando para eles.
Sua expressão era de pânico. Daisy se encolhia de medo atrás dela.
Eles precisavam fazer algo, mas apenas de ouvir as súplicas de Marcelo, e a grossura dos enormes braços do homem, Ítalo sentiu suas mãos gelarem, e suas pernas tremerem.
Olhou para o lado.
— Tyler — O chamou, mas ele não movia um músculo.
Seu rosto continuou inexpressivo, até vê-lo novamente, aquele sorriso que tanto o incomodava.
— Eu vou te ajudar — disse, atraindo o olhar de Marcelo, que se retorcia —, mas só se fizer tudo o que eu disser depois — seu olhar era o de mais jocoso deboche.
— O que? — Marcelo arquejou mais do que falou.
Aparentou querer falar algo em resposta, mas tudo que saiu de sua boca foi um grito de dor.
— Deixa disso — Ítalo bradou — ele pode estar com o braço quebrado… — Ele olhou mais atentamente para o homem em cima de Marcelo. Era o mesmo que ficara parado lá fora, em meio ao sol.
— E então? — Tyler perguntou novamente.
Marcelo não parecia poder responder. Um som de ossos se estalando podia ser ouvido em meio aos seus gritos de dor.
— Ah, saiam — Pamela passou por eles.
Correu até o homem, tentando puxar o braço que torcia o de Marcelo, mas foi jogada para trás com um empurrão de corpo, caindo no chão. Sem desistir, ela se levantou novamente. E tentou empurrá-lo, entretanto o homem não se movia e nem se incomodava mais em empurrá-la. O braço de Marcelo lembrava vagamente o número seis.
Ítalo agarrou o ombro de Tyler.
— Cara, sério, não é hora para isso?
Tyler o olhou nos olhos, e Ítalo teve a sensação de estar sendo visto de cima, como um inseto.
— Se quer tanto ajudá-lo, pode ir — disse, afastando a mão de Ítalo de seu ombro — mas não me obrigue a te ajudar. Crie coragem se é isso o que quer — Ele deu de ombros e cruzou os braços.
Pamela continuava tentando tirar o homem de cima de Marcelo, sem muito sucesso. Daisy soluçava sozinha, assistindo aquela cena. Ela olhou para ele. Algo em seus olhos fez com que Ítalo sentisse um gosto amargo no fundo de sua garganta. Sua cabeça tremulou involuntariamente, e ele fugiu daquelas janelas que pareciam julgá-lo.
Ítalo fechou os olhos, respirou fundo, e então os abriu. Com suas mãos trêmulas, e seu estomago se remexendo, ele correu em direção ao homem.