Crônicas dos Caídos - Capítulo 13
A última vez que havia entrado em uma briga fora no primeiro ano do ensino médio, contra um garoto dois anos mais velho que havia acertado sua cabeça com uma bola de basquete. Ítalo quis tirar satisfação, mas fora ao chão após um soco em seu rosto, ou fora em sua barriga? Não lembrava. Sabia apenas que, após isso, havia sido levado à diretoria. Seus pais foram chamados a escola para resolver a situação, junto aos pais do garoto que o havia batido. Eles se incomodaram em faltar o trabalho para comparecer, deixaram bem claro isso para ele depois, quando lhe deram um sermão sobre como o seu comportamento fora errado ao puxar uma briga. Ficara um mês de castigo por, na visão deles, ter iniciado todo o incidente, e perdera seu vídeo game, que fora dado ao seu irmão mais novo.
Desde então, nunca mais brigara ou discutira com ninguém, preferindo enfiar a cara nos livros quando se sentisse insultado, ou pressionado, se isolando de todos e evitando qualquer confronto. Isso poderia tê-lo tornado um alvo para bullying de seus colegas menos comportados, mas, em sua classe havia outra pessoa que eles gostavam de provocar. Além de Ítalo sempre lhes oferecer seu valioso caderno quando necessário. Talvez por conta disso nunca sentiu que precisava aprender a se defender. Nunca fora um problema, até aquele momento, quando ele correu o mais rápido que podia, se jogando sobre o grande homem que retorcia o braço de Marcelo, tentando usar o seu peso para, ao menos derrubá-lo no chão, deixando Marcelo livre de seu aperto.
Apesar da enorme diferença de peso entre ambos, seu plano deu certo, o homem caiu de lado no chão, soltando um estranho gemido. Começou a engatinhar, como um cachorro tentando se por de pé. Aproveitando-se dessa abertura, Ítalo tentou apertar seu pescoço por trás, o enforcando, na intenção de fazê-lo desmaiar, como vira tantas vezes em filmes. Mas o homem se levantou, com a parte superior do corpo inclinada para frente, e ergueu uma mão até as suas costas, alcançando Ítalo. Agarrando firmemente seu ombro, ele o puxou para frente.
Ítalo foi arremessado, batendo o rosto contra o chão rochoso da caverna, as trouxas se abriram com o impacto, espalhando moedas, pergaminhos e braceletes pelo chão. O gosto de sangue encheu a sua boca, coisa que nunca sentira antes. Tentou se levantar, no entanto, sentiu algo batendo contra sua barriga, fazendo-o rolar alguns metros para o lado, enquanto gemia de dor. Olhou na direção do homem, a adaga estava caída entre eles. Olhou para ela, dando a o homem a noção de sua existência. Correu para pegá-la, mas o homem percebeu sua intenção, e foi mais rápido, agarrando-a primeiro, apenas para berrar de dor logo depois, e jogá-la longe. Ítalo sorriu, aproveitando a oportunidade, tentou derrubá-lo, e segurá-lo, mas assim que se aproximou, foi recebido por uma cotovelada em seu rosto, seguida de um soco que acertou seu estômago.
Ele foi ao chão, arquejando, em uma tentativa desesperada de levar o ar novamente até os seus pulmões, no entanto algo se envolveu em torno de seu pescoço. Eram mãos, grandes e fortes, que apertavam sua garganta, o impedindo de respirar.
Tentou afastá-lo com os braços, chutá-lo com os pés, arranhá-lo com as unhas, enquanto debatia seu corpo debilmente, para fugir do aperto de seus grossos dedos. Quis chamar por ajuda, mas não conseguia emitir qualquer som.
Algo caiu em seu rosto, era quente e molhado. Uma gota, percebeu. Olhou para cima, mas tudo o que via era o rosto de quem o enforcava. Sentiu outra gota tocar sua pele, e então notou de onde elas estavam vindo. Dos olhos do homem. Ele estava chorando
Viu as lágrimas quentes escorrerem pelo rubro, e volumoso, rosto do homem, e caírem sobre ele. Mais uma caiu em seus olhos, embaçando a sua visão, que começava a escurecer. Estava apagando, sem conseguir sequer pensar direito.
Foi então que o aperto em volta de seu pescoço se desfez. Ele sentiu o ar invadindo novamente seus pulmões, o fazendo tossir violentamente. Ouviu um som seco de pancadas ecoar pela caverna, junto de gritos. Com a ajuda de alguém, ele ficou de joelhos, sem entender nada. Tentou ficar de pé, apenas para cair novamente, ou teria caído, se não tivesse sido segurado. Cuspiu o sangue em sua boca, ouvindo uma voz perto de seu ouvido, era difícil discernir as palavras ditas. Demorou para perceber que era Pamela quem o segurava, lhe perguntando se estava consciente. Quis lhe responder, mas acabou mordendo a língua na tentativa. Ouviu outra pancada ecoar pela caverna, então olhou em sua direção, onde o enorme homem, que o arremessara contra o chão e o enforcara, agora estava sendo socado por um cara usando um vestido. Era Tyler. Ele habilmente se esquivava dos ataques do homem gordo, desviando de seus pesados socos, e o acertando com golpes precisos, para logo em seguida recuar novamente. Na barriga, no rosto, nas costas, em suas costelas. Cada vez que Tyler se movia, um novo soco era desferido. Parecia um boxeador dançando em cima do ringue. Era incrível ver tal agilidade de alguém usando uma roupa tão longa.
Após receber vários socos, o homem gordo começou a cambalear. Ítalo conseguia ver as banhas de seu braço tremerem, enquanto seu corpo balançava. Ele gemia e grunhia, enquanto lágrimas continuavam a escorrer por seu rosto. Tentava acertar desesperadamente Tyler, que não lhe dava chances de revidar. Aparentando estar em pânico, o homem correu até um dos cantos da caverna, se encolhendo sobre si mesmo em posição fetal.
— Mama, Pá, socorro, onde vocês estão? — Choramingou.
— O que? — Tyler disse, franzindo as sobrancelhas, e pondo a cabeça de lado.
Ítalo compartilhou de sua reação. O homem, que um momento atrás estava prestes a matá-lo, agora chorava como um bebê.
— Por que parou? Acaba com ele — ordenou Marcelo. Ele estava agachado ao lado de Ítalo e Pamela, segurando seu braço machucado. Estava roxo na altura do ombro, onde o homem gordo torcera.
Ofegante, Tyler encarava o homem gordo com uma expressão de perplexidade no rosto. Ele deu um passo, caminhando em sua direção.
— Espera — Pamela gritou. Ela pôs Ítalo sentado no chão, e caminhou até ficar entre os dois.
Tyler parou, olhando para ela.
— Esperar? — Marcelo berrou — Esperar pelo quê?
— Ele parece… confuso — Ela disse, olhando para o homem.
Tyler estalou a língua.
— Confuso? Alguém confuso faz isso? — Ele a empurrou para o lado, a tirando de sua frente, e continuou seu caminho até o homem.
— Espera — Pamela o agarrou pelo braço, parando-o novamente — Vamos tentar conversar com ele.
— Conversar? Você tá brincando comigo? — Tyler soltou um riso cínico.
— Não, mas, ele não parece estar bem.
— Ele não está bem, mulher? Eu que não estou bem, esse filho da puta quebrou meu braço — Marcelo gritou novamente, grunhindo de dor após se mover de forma brusca demais.
Tyler suspirou pesadamente.
— Por mais que eu odeie concordar com o velho…
Ele parou de falar após algo acertar sua cabeça. Fora uma pedra, jogada pelo homem gordo, que tinha se levantado, e agora avançava contra um atordoado Tyler. Pamela tentou impedi-lo, mas foi jogada no chão como uma boneca de pano. O homem agarrou Tyler pela cintura, o ergueu no ar, e depois bateu seu corpo contra o chão rochoso da caverna. Pelo estrondo causado, Ítalo imaginou que a coluna de tyler tivesse quebrado naquele momento. Mas, para sua surpresa, as pernas de Tyler se moveram, quase mais rápido do que imaginava ser possível, enrolando-se em volta do pescoço, e ombro do homem, como duas jiboias.
O homem grunhia, gritava, e berrava, batendo em seu oponente de forma enlouquecida com o braço livre, porém Tyler continuava apertando, aguentado firmemente os socos recebidos. Ítalo estava impressionando com sua resistência. Se fosse ele, teria apagado no primeiro soco. O homem ficou mais silencioso, seus socos estavam mais lentos, e seu corpo parou de se mexer. Parecia que em breve ele desmaiaria, foi essa a impressão de ítalo até que, no que pareceu ser um último esforço, o homem começou a se levantar, erguendo Tyler até o alto. Iria tacá-lo mais uma vez no chão, e dessa vez, Ítalo não achava que ele conseguiria reagir a tempo.
Tyler parecia pensar isso também, pois estava forçando seu corpo, como se quisesse aumentar o aperto.
Foi então que o corpo de Ítalo se moveu. Havia uma botija de barro próxima a ele, que provavelmente havia caído quando ele fora arremessado no chão. Pegou-a e correu. Era robusta, e grossa, perfeito para o que Ítalo planejava fazer. Não iria cometer o mesmo erro ao se aproximar do homem, não iria tentar domá-lo. Ele simplesmente bateu a botija com toda a força em sua nuca, num ponto em que sabia ser vulnerável.
O homem caiu por cima de Tyler, que continuou com o aperto até que ele não se movesse mais, o soltando por fim. Ítalo permaneceu olhando para o homem com a botija em mãos, assobrado por sua força e resistência.
Pamela se aproximou, passando suas mãos sobre ele, como se estivesse conferindo se estava bem, ou ao menos vivo.
— Ele está vivo, não se preocupe — Tyler disse, se sentando com as pernas cruzadas ao lado do homem. Estava visivelmente machucado e cansado, com dificuldades para respirar. Uma linha de sangue desceu por sua boca, até que ele a limpasse.
Ítalo não se sentia muito melhor. Após finalmente perceber que acabou, a dor começou a incomodar novamente seu corpo. Ele se sentou no chão, limpando o suor de seu rosto com as mãos, então percebeu que seu nariz estava sangrando.
— A… acabou? — Daisy saiu de onde quer que tenha estado entocada. Seu rosto estava pálido como leite.
— Sim querida, está tudo bem agora, mas é melhor ficar um pouco longe — Pamela deu-lhe um sorriso cansado.
Obedecendo, Daisy permaneceu afastada, encolhida em seu canto, observando a todos, com um olhar ansioso no rosto.
A atenção de Ítalo se fixou em Tyler, que se levantou, caminhando até a sua trouxa, que estava caída no chão. A abrindo, tirou dela um tecido marrom bastante grosso, e o rasgou em dois. Depois seguiu até o homem gordo.
— O que vai fazer? — perguntou Pamela.
— Vou amarrá-lo se não se importa.
— Por que se importa com esse puto? — resmungou Marcelo — Veja o que ele fez conosco? — Mostrou seu braço, que estava inchado, havendo dobrado de tamanho.
Ítalo olhou para Pamela, que estava ajoelhada sobre o homem. Seu rosto enrubescera, como se estivesse envergonhada. Ela abriu a boca, no entanto, nenhuma palavra foi ouvida. Tyler gesticulou para que ela se afasta-se, enquanto ele mesmo se agachava para amarrar os braços do homem. Ela o fez.
— Ele estava chorando — falou Ítalo, sem mesmo saber o porquê, atraindo a atenção de todos.
— E daí moleque? — disse Marcelo franzindo as sobrancelhas.
— Talvez, ele estivesse confuso, não quero dizer, o que realmente aconteceu? Por que ele te atacou? — perguntou a Marcelo.
O homem retorceu os lábios, como se estivesse sentindo um sabor amargo em sua boca.
— E eu lá sei — cuspiu bruscamente — ele simplesmente enlouqueceu.
— Ele estava parado lá fora — Pamela ponderou — por que veio para dentro, não aconteceu nada?
Marcelo o encarou com uma carranca em seu rosto, que já havia enrubescido de raiva a essa altura.
— Como eu vou saber? — vociferou — E por que estão me questionando, acham que fiz alguma coisa? — grunhiu de dor mais uma vez, pondo a mão sobre o braço.
— Não dissemos que você fez nada, é que tu era o único aqui em cima — Ítalo explicou.
— Bom eu não sei o que aconteceu, o retardado apenas entrou e me atacou, e foi isso. Agora me deixem em paz — Ele se levantou, com certa dificuldade e se afastou de todos.
Após o homem se distanciar, Pamela se aproximou de Ítalo, que continuava sentado no chão.
— Você está bem? — perguntou ela.
Ele assentiu com a cabeça, sem falar mais nada, por algum motivo sentia-se envergonhado. Pamela então voltou sua atenção de volta para o homem gordo, que naquele momento, tinha seus braços e pernas amarrados para trás por Tyler.
— O que foi? — perguntou ele, apertando o tecido em um nó.
— Nada — respondeu ela, caminhando em direção em que Daisy estava.
Tyler continuou o que estava fazendo, sentando-se sobre o homem ao terminar. Ítalo não sabia o que pensar sobre ele agora. A forma como lutara, e a sua força o surpreendera. Assim como sua resistência, tendo suportado ser jogado contra o chão daquela forma, e ainda prendendo o oponente sobre suas pernas ao receber o golpe. Poderia ter morrido se Ítalo não tivesse interferido, e mesmo assim, sua expressão era incrivelmente indiferente, como se o que acontecera a pouco não lhe importasse.
— Ah, que merda — murmurou com uma voz lamentosa — está anoitecendo — disse com os olhos fixos no horizonte fora da caverna, que estava escurecendo.
Ele se levantou.
— Você — ele apontou o dedo para Ítalo — desculpa, mas eu esqueci seu nome — passou a mão sobre o rosto soado.
— Ítalo — respondeu, atônito demais para se sentir insultado.
— Ah sim, Ítalo, não dá para sairmos dessa forma — disse, olhando para si mesmo —, então vamos ao menos pegar um pouco de água.
Ítalo ficara mais perturbado. Ele deve ter batido a cabeça muito forte contra o chão, pensou.
— Desculpa — disse —, mas de novo, como assim água?
Tyler revirou os olhos e esbaforiu.
— É só me seguir, se quiser — Sem falar mais nada, ele pegou uma botija em suas mãos, e saiu em meio à noite.
— Não se preocupe, ele não vai se soltar, uma coisa que eu sei fazer é dar nó — Tyler disse, enquanto se afastava.
— Espera — gritou Pamela —, não pode sair assim.
Tyler não respondeu.
Ítalo se ergueu do chão, o que o fez arfar de dor, e começou a andar.
— Ítalo — Pamela disse em um tom de voz incerto — o que foi?
Ele olhou para ela. Seu corpo estava dolorido, o gosto de sangue ainda jazia em sua boca, sentia as costelas doerem onde o homem o acertara, e seu pescoço se recordava do aperto que sofrera. E ainda assim ele respondeu:
— Vou atrás dele.