Crônicas dos Caídos - Capítulo 14
O vento frio e seco da noite soprava contra eles. Ítalo sentia-o, junto da areia, que batia impiedosamente contra seu rosto, enquanto subiam um estreito corredor em meio aquela grande formação rochosa, que parecia não ter fim. O rochedo na qual a tumba estava era apenas uma parte dela. Mesmo assim, quando Ítalo olhava para atrás, tudo o que conseguia ver era uma deformada linha no horizonte, que cortava as escuras dunas do deserto, e o enorme véu negro, adornado com milhares de estrelas, acima delas. Nunca antes em sua vida Ítalo tinha visto algo semelhante. Antes sempre que olhava para o céu, via apenas algumas poucas dezenas, espalhadas e escondidas por entre as nuvens. Agora pareciam em uma enorme multidão, brilhando intensamente, como se para iluminar a escuridão da noite. E, entre elas, uma enorme lua azul como o céu da manhã, surgia no horizonte, tão grande que parecia a Ítalo poder alcançá-la se erguesse a mão. Mesmo em meio a tudo o que lhe ocorrera, ele não conseguia deixar de admirar o que estava diante de seus olhos.
— Ei, o que está fazendo, vamos logo — Apressou-o Tyler.
Em contraste a sua entusiástica admiração, estava ele, que caminhava com passos apressados, indiferente a tudo o que os cercava, exceto ao caminho a sua frente. Seu humor estava tão seco quanto a areia sobre seus pés, o sorriso debochado que tanto incomodara Ítalo havia sumido, dando lugar a uma expressão séria. Parecia ter trocado de lugar com outra pessoa.
— Vamos, quero terminar isso e voltar logo a tumba antes que o sol nasça — disse ele com uma voz autoritária.
— É por aqui mesmo — Ítalo perguntou sem obter qualquer resposta.
Ele não fazia ideia de quanto tempo havia se passado, desde que que haviam saído da caverna, mas fora o suficiente para que começasse a ofegar enquanto andava. Ele trouxera uma botija do tamanho de uma bola de futebol consigo. Teria trazido mais uma, se Tyler não lhe recomenda-se o contrário. Se perguntava se fora certo sair e deixar as garotas para trás daquela forma, o olhar de pânico de Pamela, ao vê-lo pegar uma botija e sair, ainda ficara gravado em sua memória. Mas já era tarde para se preocupar com isso, eles já deviam estar longe da tumba, e preferia não se afastar de Tyler enquanto percorriam aquele escuro caminho em meio as rochas. Fora da caverna, seguiram pelo sinuoso caminho na encosta do rochedo, o qual se dividia em dois a certa altura, com um levando para baixo, até as areias, enquanto o outro apontava para cima, para o rochedo. Esse fora o que Tyler escolhera.
Enquanto andavam, Ítalo reparou no que pareciam serem restos de várias construções cônicas, razoavelmente largas, espalhadas pela encosta. Era difícil vê-las direito, mesmo com a reluzente lua azul que lhes permitia enxergar alguma coisa. Estavam caídas e quebradas, sendo provavelmente apenas o contorno do que ele tomou por uma série de torres. Mais delas estavam podiam ser vistas ao longe. À primeira vista parecia pequenos montes irregulares, mas ao prestar mais atenção, ele podia reconhecê-los como partes das ruínas, o que o fez se perguntar o que de fato seria aquele lugar. Sua companhia, no entanto, pouco se importou com eles, afinal estava atrás de algo diferente das rochas e restos que Ítalo observar.
Achar água no meio de um deserto, esse era o objetivo, e Tyler havia dito isso da forma mais simples possível, como se não fosse nada. Para Ítalo, ele havia enlouquecido, mas depois de tudo o que vira, não se atreveria a duvidar disso. Mesmo assim algo o incomodava.
— Ei, Tyler — chamou.
— O que é?
— Esse é o caminho certo?
Tyler olhou para trás, Ítalo não conseguia ver seu rosto envolto em sombras.
— Sim, é — respondeu antes de continuar.
— Como pode ter certeza? Não conhecemos esse lugar.
— Eu tenho certeza porque sinto que é — ele respondeu de forma ríspida.
— Como assim? — questionou cobrindo o rosto com um manto. A areia batia contra os seus olhos, dificultando ainda mais a sua vista.
— Cala a boca e me segue, se não quiser é só voltar, não estou te obrigando a vir comigo — Tyler vociferou, mantendo o seu passo.
Ao ouvir sua voz, Ítalo sentiu-se diminuir. Suas mãos tremiam, mas não pelo vento frio da noite, seus pés de repente se tornaram pesados, e, no entanto, ele continuou seguindo Tyler, em completo silêncio.
A excêntrica lua já estava a meio caminho do topo do céu quando eles alcançaram o cume. O corredor continuou, mas dessa vez em uma descida, tão longa quanto Ítalo podia ver. Caminharam até que a lua, a qual Ítalo achara a órbita curiosa, estivesse próxima ao topo do céu, e então chegaram ao final, onde o corredor se abria, para revelar algo que o surpreendeu. Havia um lance de escadas descendo até uma construção repleta de pilares e paredes em ruínas. E bem no meio deles estava o que parecia ser um grande poço retangular, não, estava mais para uma piscina dada o formato e dimensões. Parecia ter pouco mais de dez metros de comprimento, e pelo menos a metade disso em largura. Ítalo não acreditou no que era, até que a água refletisse a pálida luz da lua, bem acima dela. Viu aberturas conduzindo à piscina, que deveriam servir para redirecionar a água para ele. Ficou parado por algum tempo até perceber Tyler na metade do lance de degraus, caminhando em direção à piscina. Ele correu para alcançá-lo.
Tyler se ajoelhou, fez uma concha com as mãos, enfiando-as na água, e depois levou-as até a boca, em seguida retirou sua botija, e a encheu.
Ítalo se aproximou da piscina.
A água limpa refletia perfeitamente a imagem da lua azul, exceto pelas pequenas ondulações causadas por Tyler.
— Vai ficar parado aí? — Tyler perguntou — Achei que tava com sede.
Como se tomado por um espírito sedento, Ítalo caiu de joelhos, e enfiou a cabeça na piscina. Ele bebeu, tanto quanto podia, sentindo a refrescante sensação em seu cabelo. Parecia que haviam se passado séculos desde a última vez que tocara em alguma gota de água. Ele levantou a cabeça e notou algo estranho em Tyler, sua boca se mexia sem que ele emitisse som, como se estivesse cochichando para alguém. Ítalo decidiu ignorar seu comportamento, não era incomum ver alguém falando sozinho, embora ainda achasse bizarro.
Ele pegou a botija que trouxera e estava prestes a pô-la na água, mas olhou para Tyler novamente, e sentiu a necessidade de dizer algo.
— Ei, valeu.
— Valeu o que? — disse Tyler, confuso.
— Por me salvar, não sei o que poderia ter acontecido se você não tivesse aparecido.
Tyler deu de ombros.
— Eu apenas me aproveitei que aquele balofo estava distraído, afinal talvez ele avançasse em mim em seguida — Ele tampou a botija com uma tampa que haviam achado na tumba.
— Onde aprendeu a lutar daquele jeito? — Ítalo perguntou.
— Onde aprendeu a perguntar tanto assim? — Tyler respondeu com um longo suspiro — Enche logo essa merda e vamos embora — Tyler se levantou caminhando de volta para os degraus.
Ítalo afundou a botija na piscina, terminando de enchê-la, quando algo o intrigou.
— Mas, vem cá, tem algo que ainda quero saber — disse.
— O que? — Tyler se virou.
— Como sabia que havia água aqui?
— Eu apenas chutei que aquele bastardo não nos mandaria direto para a morte por inanição — disse ele, apontando para cima — afinal ele ainda precisa de nós.
— Tá, mas como sabia onde encontrá-la.
A única luz que tinham era o pálido brilho azul, refletido na piscina, da estranha lua, que agora começava sua descida em meio ao céu estrelado, e mesmo assim, Ítalo viu seu rosto sério se transfigurar em um sorriso debochado quando respondeu:
— Digamos que eu apenas chutei — Tyler se virou novamente, subindo os degraus, deixando um confuso Ítalo para trás.